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CAPÍTULO II – NOVAS PROPOSTAS PARA A ACELERAÇÃO DA

1. Contributos teóricos na forma de medir e mediar o tempo

1.2 Ideologia de estrutura milenarista secularizada

Retomando em certa medida a discussão dos mitos, agora sob a égide da ideologia política, interessa-nos observar o conceito, conforme apresentam determinados estudiosos da matéria, com incidência em Sironneau.

Interessa-nos averiguar a ideologia política – enquanto elemento que comporta uma capacidade construtora –, o grupo social, bem como o imaginário social, que se assume como um elo mediador poderoso (Bourdieu & Passeron, 1970, pp. 230-256).

Sironneau debruça-se afincadamente sobre o propósito das ideologias políticas. Interessa-nos observar as suas conclusões no que respeita ao lado mítico das mesmas e como os pressupostos em pauta fornecem um substrato efetivo de transformação social, com incidência no calendário. A sua aproximação nessa vertente afigura-se mais consistente do lado das funções, nomeadamente cognitivas e sociológicas, porque quer o mito, quer a ideologia procuram explicar as origens primeiras e o desenvolvimento da sociedade, de forma inteligível e sustentada. Embora não descarte a possibilidade das funções de pendor psicológico ajustado a valores, como os da religião, nessa análise o autor entende que elas não

62 Numa conceção do mundo capaz de conferir coesão, embora não fossem ao extremo de Comte,

quanto à religião da humanidade, alguns subsídios teóricos foram aproveitados, nomeadamente a postura sentimental quanto à sociolatria, numa clara alusão aos lugares-comuns do positivismo historicista republicano. Veja-se o que Teófilo Braga (1884b) refere sobre isso mesmo: “Não acompanhamos a conceção sociológica de Comte quanto às suas formas religiosas, mas reconhecemos que nas sociedades modernas alguma coisa se passa que, tendendo a satisfazer necessidades de sentimento, vai ao mesmo tempo substituindo as religiões” (pp. 16-17).

67 estão ao mesmo nível (mito e ideologia), visto que o mito se vale de um papel mais psicológico, ao religar o homem a uma transcendência sobre-humana, enquanto a ideologia não atinge esses patamares com o mesmo nível de profundidade.63

Apesar disso, Sironneau defende que as ideologias políticas exercem funções semelhantes (mais do foro psíquico e social), ao contrário das religiões ditas tradicionais.64 Na vertente que mais nos interessa, importa-nos perceber se o discurso racional da Primeira República é passível de conter traços míticos suficientes para produzir uma mundividência dominante com reflexos no calendário.

Sironneau (1988) elucida-nos que as temáticas da ideologia se conjugam com estruturas míticas, dando-nos como exemplo a semelhança existente entre a estrutura milenarista, que foca temas como a chegada de um novo mundo, o que em termos políticos se assemelha à ideologia marxista, onde existe a necessidade de um resgate de uma harmonia social. Estes são elementos constantes numa ideologia que a priori em nada se parecem com mitologia. Contudo está impregnada desse veio, como aconteceu no período por nós estudado:

O dinamismo energético do mito encontra-se ligado, fechado na capa racional da ideologia como num espartilho; perdendo a sua intensidade a equivocidade, a espessura de sentido que caracterizam todo o simbolismo e todo o discurso mítico cedem lugar a um conceptualismo que se dirige para a univocidade. Em resultado dessa racionalização e desta secularização, o imaginário ideológico aparece como um imaginário empobrecido e, segundo nós, degradado. (pp. 50-51)

Há uma necessidade premente dos grupos que se instituem em recorrer a um determinando conjunto de estereótipos retóricos, mas também simbólicos, como o calendário que se incorpora de referências, com claros intuitos de persuadir publica e socialmente uma sociedade, condicionando a visão que possa ter de si mesmo e do mundo envolvente.

Será pertinente observar a conjuntura histórica, onde a afetividade grassa, muito por culpa de uma época de sensibilidade exacerbada.

Os séculos XVIII e XIX, sobretudo o XIX, foram extremamente ricos em simbologia, podendo, por isso, fornecer-nos elementos e indicadores preciosos para o estudo da história das ideias ou das mentalidades. Efetivamente, os novos ideais e expressões-chave resultaram

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Os seus estudos dedicados a essa problemática foram: Sironneau (1980, 1988).

68 num processo razoável, tendo sido verificados nos campos da cultura, da arte e da tecnologia, potenciando mudanças drásticas nos comportamentos coletivos e eclodindo na Revolução Francesa. Essa época é marcada de forma indelével por este acontecimento, no qual se detetam traços de continuidade secular em muitos movimentos populares, camponeses ou urbanos, que ocorreram noutras épocas (Vovelle, 1985, pp. 95-101).

A Revolução Francesa encarregou-se de acrescer um conjunto de valores e temas que se mostraram mobilizadores da sociedade (Vovelle, 1985). Nesse húmus herdado e confluente advindo da filosofia das Luzes, esta Revolução recebe um incremento novo, ao nível das ideias, resultando numa nova forma de interpretar o mundo. Deve-se ter o cuidado de não cometer um erro metodológico, de partir do princípio que isso contribuiu na plenitude para a existência de um consenso em França (mesmo em Portugal) em torno de uma mentalidade coletiva única e estável para o período em apreço. A época em causa, quer em França, quer em Portugal, foi um período marcado por profundas clivagens sociais. Contudo, a Revolução apelou a um conjunto de expressões e estereótipos retóricos para apelar à unanimidade (Vovelle, 1985, pp. 187-222).

Maria Cândida Proença, a propósito desses aspetos confluentes e conflituantes, expõe em A Primeira Regeneração que o termo regeneração, que entrou no léxico político através do liberalismo nascente, teve aplicações políticas noutros quadrantes ideológicos, especificamente no republicanismo. Embora fosse um vocábulo estritamente católico, foi utilizado por movimentos e governos nos dois últimos séculos, tendo o seu primado em França, na Revolução Francesa (pp. 33-46), como polo mobilizador e aglutinador, devido ao seu carácter ambíguo e abrangente.65 Este termo pode ser capaz de consensualizar o corpo social, ocultando clivagens existentes, até porque é um termo moderado e utilizado por sectores moderados, por implicar uma mudança significativa.

Neste trabalho, a investigadora elucida-nos que, para os franceses, a regeneração era associada a uma Constituição em que se fixavam as novas bases do regime, sendo definido pelos mentores como a condição indispensável e imprescindível da regeneração de França. Terminada a Constituição de 1791, para determinados estratos políticos franceses, em termos

65 No presente, o termo reveste-se de versatilidade, com conteúdos que Proença (1990) dividiu em cinco

grandes grupos, a saber: o seu conteúdo original, ou seja, religioso – renovação espiritual consubstanciada na penitência e no batismo cristão; conteúdo moral – renovação de valores morais; conteúdo cientifico – regeneração do tecido muscular, reprodução, formação de tecidos e até de órgãos completos à custa de células ou tecidos vivos preexistentes; conteúdo histórico – movimento político português iniciado em 1851 e o conteúdo político – restauração e reforma (pp. 30-32), onde cabe a nossa análise de vertente ideológica.

69 políticos e revolucionários a França estaria regenerada. Apoiados nesta experiência, este desiderato tornou-se o primeiro e principal objetivo dos movimentos liberais desde a Revolução Francesa.

Face à descristianização preconizada pelas hostes revolucionárias, tornou-se premente e relevante uma sensibilização coletiva, numa vertente de regeneração moral, à medida que também progrediam o culto da razão e do Ente Supremo e que o novo conjunto de valores trazidos pelos revolucionários se ia sedimentando (Proença, 1990). Perante isto, não só se continuou a fazer uso do vocábulo, que deixara de acentuar as suas características originalmente católicas, como, devido à sua polissemia, se acentuavam drasticamente no discurso aspetos morais e cívicos de uma nova religiosidade que pretendia sacralizar determinadas práticas sociais.

Proença (1990) não hesita em referir que a dialética entre os tempos curtos e longos da história das mentalidades (Vovelle, 1985) se problematiza, ao afirmar:

Do ponto de vista do tempo longo, a festa revolucionária seria apenas uma herdeira do sistema de festividades do Antigo Regime (as romarias ou festas vocativas) em que havia uma forte participação popular e a que se não podiam negar as características religiosas e etnográficas. Abordada numa perspetiva de tempo curto a nova festa seria diferente. (p. 42)

A festa revolucionária, fosse no caso francês ou no português, na sua versão liberal e na tardia republicana, especificamente em Portugal, é em si um discurso validado. A consensualidade da expressão apela no discurso a uma unidade sensitiva da revolução e à pureza das intenções, numa espécie de novo nascimento. A festa revolucionária aparecia como uma encenação alegórica de um batismo revolucionário, em que a regeneração é peça central nesse transfert e em que todos os participantes foram simultaneamente espectadores e atores. Perante tal Proença (1990) frisa que:

A festa revolucionária vai inserir-se nesta evolução, concretizando o desiderato da total participação dos espectadores, através duma série de práticas simbólicas, duma encenação alegórica e dum percurso que se escolhia com o fim de despertar nos assistentes vivos sentimentos de adesão, pela passagem nos locais mais representativos da revolução e de maior impacto na sensibilidade coletiva. (p. 42)

70 Podemos encontrar um fio condutor dessa simbologia da regeneração,66 nos grandiosos festejos promovidos pela vaga republicana. Por isso, parece-nos vantajoso e absolutamente essencial enveredar pelo campo figurativo, em que também se situa o grande capital do tempo67 que é o calendário, visto que o mesmo se organizou em torno da ideia de regeneração da sociedade e da nação portuguesa. O vocábulo regeneração podia ser simultaneamente utilizado em diversas vertentes, desde que envolvesse uma dinâmica de mudança, o que lhe conferia o alargamento substancial do campo de aplicação, permitindo-lhe aliar outras implicações de carácter social, moral e comportamental. Nas festas, como no calendário, que se permutava mutuamente, procurava-se encenar e descrever a própria Revolução, fosse em França, fosse em Portugal, no período da Primeira República. Revolução essa que se via narrada em cortejos e no calendário, num itinerário que correspondia a uma regeneração que havia depurado de certos elementos não só políticos como sociais.68

Para finalizar, verifica-se que o país passaria por sérias convulsões de ideologia política, na senda da regeneração, embora esta venha a assumir diferentes matizes conforme a época, o movimento revolucionário e o Governo a que serviu de lema.69 A mensagem

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Nesta matéria, o pensamento verbal não foi o único meio pelo qual a divulgação do conceito de regeneração foi transmitido. A imagem esteve na linha da frente na divulgação do conceito e dos valores determinantes das várias épocas em estudo. O conjunto de signos inerentes à imagem foi revelador das perceções e dos sentimentos da sociedade francesa, mas no que a nós mais interessa, na portuguesa, concretamente no triénio liberal, mas sobretudo na fase de maior incidência do republicanismo e da Primeira República. Em quase todas as representações alegóricas da época, onde importa incluir o calendário, estabelece-se uma associação clara e inequívoca entre regeneração e liberdade, contrapondo-se a Monarquia Constitucional. As grandes virtudes morais são artisticamente elaboradas, sejam por atos, personagens e feitos heroicos para transmitir a ideia de concórdia em torno do movimento e regime republicanos, que operavam a regeneração da nação. Há trabalhos compilatórios neste campo reveladores desse quadro: Ventura (2009, 2010a), O. Sousa (2010), A. Pinto e Fernandes (2010).

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Os diferentes domínios da sociologia do imaginário estão a levar a que muitos sociólogos contemporâneos atribuam um lugar de relevo ao ato de repensar o capital simbólico, pelo peso do seu papel na ideologia na dinâmica social. Joga-se, portanto, o legitimar das práticas sociais de uma classe ou de um grupo, perante outras classes e grupos. A ideologia participa na luta simbólica que caracteriza qualquer sociedade, na imaginação de uma outra sociedade, que não aquela que vive e precisa de ser depurada, atuante em utopias milenaristas e revolucionárias, que concebem, entre outros capitais simbólicos, o próprio calendário (Arsant, 1990, pp. 170-189).

68 Proença (1990) explora que o termo regeneração poderia ter sofrido uma primeira influência do

discurso da Maçonaria. Com efeito, ela expõe que apesar de não haver uma resposta objetiva e esclarecedora sobre a questão, em virtude da falta de elementos documentais e do próprio carácter secreto da Maçonaria, há elementos que favorecem o pensamento de um envolvimento da Ordem. Desde logo, pelo facto dos seus membros estarem quase sempre na primeira linha desses movimentos revolucionários. No nosso país, segundo a autora, o termo regeneração foi compatível com a simbologia de algumas cerimónias do seu ritual e com os seus fins políticos de pendor humanitário. Outros aspetos contundentes fazem-na concluir acerca do empenhamento, ainda que indireto, dos elementos que compunham a Maçonaria na Revolução Vintista (pp. 51-60).

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Veja-se o caso do liberalismo: Diário das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação

71 veiculada pelos canais privilegiados da Primeira República é a de redenção nacional ou salvação pública. Isto pode ser exemplificado numa intervenção parlamentar de Costa Lobo, em 1908, a propósito do monumento em memória de D. Pedro IV e das implicações deste facto no estado da educação:

É preciso que estes acontecimentos estejam sempre na nossa lembrança, é preciso que por toda a parte se encontrem monumentos que avivem a recordação dos martírios que nos legaram, a fim de que também nós pugnemos constantemente e com a maior coragem, para as podermos transmitir intactas, se não aumentadas, aos nossos filhos. (Câmara dos Senhores Deputados da

Nação Portuguesa, [CSDNP], 1908, p. 8).

Costa Lobo remata o assunto, ligando-o à regeneração que acreditava estar em curso: “É indispensável a primeira para se realizar a obra da regeneração e progresso em que estamos empenhados, mas só poderá produzir resultados úteis e profícuos se estiver ao serviço de uma ação francamente liberal e patriótica.” (CSDNP, 1908, p. 8).

Assim se transmitia a ideia de que a regeneração era uma dinâmica de mudança que implicava a cessação de antigos predomínios e a reorganização de uma nova ordem social, que passara forçosamente pelo grande regulador do tempo quotidiano – o calendário. As representações que convocavam para uma regeneração não se esgotaram no discurso ideológico, mas consubstanciava-se em aspetos simbólicos como quadros, gravuras, estampas, medalhas, monumentos, sem esquecer o valor apelativo e representativo que se assumirá no calendário.

Em suma, como agentes de regeneração, os políticos conotados com as ideias republicanas tinham como primeiro objetivo o derrube da Monarquia Constitucional e o estabelecimento da República, bem como a apresentação de um conjunto de propostas que implicavam drásticas reformas em todos os sectores da vida nacional, neste caso, com relevo para a agricultura, o comércio, a indústria, a educação, a sociedade, a administração pública. Todas estas propostas, como outras, fundamentaram-se em ideias, que se resumem numa palavra abarcante – regeneração. Analisemos agora um pouco melhor alguns aspetos do

Portuguesa (1821, 3 de dezembro); Diário das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa (1822, 20 de fevereiro).

72 ideário republicano, de estrutura milenarista, e como este se projetou entre outros veículos com peso referencial, como o calendário.70

Se procurarmos caracterizar um pouco mais o republicanismo português, percebemos que os republicanos assumiam uma postura vanguardista no sentido de formar um novo homem português, evidentemente regenerado e milenarista, de pendor secular.71 Assim, a pátria seria reerguida, segundo os valores por eles defendidos, e o país entraria num tempo absolutamente novo.

Podemos asseverar pelo conjunto de trabalhos já realizados, entre eles os de Catroga, que o republicanismo português como ideologia é uma síntese de uma revolução cultural, alicerçada em bases político-sociais e espirituais, objetivando principalmente o anticlericalismo. Para além destas e doutras ideias já apresentadas, não será demais referir que o seu cientismo padece do imperialismo das ciências naturais (especialmente da biologia nos fenómenos sociais), muito em voga por toda a Europa72 (Catroga, 1991; Araújo, 1997, p. 122).

Nesta perspetiva, somos levados a concluir que a ideologia republicana, no seu esforço de laicização da sociedade, ultrapassou as características do projeto político73 e assumiu-se de

70 A pluridimensionalidade da realidade social assenta no facto de que uma estrutura com fator

predominante como um calendário refeito de novas significações reflete uma mudança social, resultante de diversos fatores estruturais e culturais, que agem e retroagem uns sobre os outros. Os trabalhos de Georges Gurvitch, de Georges Balandier ou de Edgar Morin são, em França, a ilustração mais patente desse facto, validando, no fundo, o caminho por nós seguido na matéria relativa ao calendário republicanizado. Alguns destes trabalhos são: Gurvitch (2007), Balandier (2000) e Morin (1979).

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Nas palavras de Karl Manheim, o papel da ideologia não se compadece de uma epistemologia que unicamente se explica pela função de mudança (reflexo invertido da realidade social) ou na função de legitimação (ideologia que justifica a dominação de uma classe social), como creram Marx e os epistemólogos do tempo de Manheim. A seu ver, em conformidade com as nossas asseverações em estudo, a ideologia comporta uma função mais premente, a de integrar os indivíduos num grupo. Como se pode depreender, a ideologia deve ser compreendida a partir do carácter simbólico da vida social. Deste modo, um grupo não pode ser constituído sem produzir uma imagem de si próprio, sem se representar, sem se encenar. É, na verdade, o que Manheim pretende designar ao falar da função conservadora da ideologia, embora não sendo a única, à semelhança do mito, que não é somente a narração das origens, mas o modelo exemplar para a ação vindoura. Nestes termos, a ideologia é simultaneamente a justificação da existência de um determinado grupo e projeto mobilizador, com um dinamismo que se organiza com tendências futuras. Para isso, recorre a uma esquematização das suas crenças elaboradas mais ou menos de forma estereotipada, sendo o calendário referendado na ressaca da implantação da República (Manheim, 1987).

72 O progresso científico, com base nas ciências naturais e físico-sociológicas, era defendido por

proeminentes republicanos de vertente positivista, como Júlio de Matos, Teixeira Bastos, Teófilo Braga, Emídio Garcia, Elias Garcia e Miguel Bombarda.

73 Os estudos relativos aos mitos políticos são um trabalho com largo lastro, sobretudo na sociologia

francesa; contudo, a unanimidade não era consistente. Tal facto devia-se à própria definição de ideologia política e às relações existentes entre mito e ideologia. Pese embora todos fossem capazes de reconhecer na ideologia política uma dimensão soteriológica, nem todos evidenciavam concordância em relacionar ou desvendar um parentesco e uma estrutura entre a ideologia e o pensamento de cariz

73 uma forma muito mais abarcante, onde as festas cívicas tiveram um papel determinante para o incremento dos dias feriados.

No caso específico português, estamos em condições de aceitar, na linha de Fernando Catroga e de Raymond Aron, que as ideologias políticas estão munidas de laços de integração social como as religiões: “As doutrinas que tomam as almas dos nossos contemporâneos o lugar da fé evaporada e situam aqui em baixo, no futuro longínquo, sob a forma duma ordem social a criar, a salvação da humanidade” (Aron, 1946, p. 288), lembrando-nos que “a criação de uma nova espiritualidade, capaz de determinar corretamente a vontade popular e de exercer uma ação vigilante sobre os negócios políticos, era uma tarefa prioritária” (Catroga, 1991, p. 324).Retendo as citações, observando as suas análises, encaramos a mundividência ideológica republicana, salientando que ela procura ocupar o lugar da religião católica como elemento integrador na sociedade, sem descurar que procurou preencher o lado afetivo das populações mediada pelas representações coletivas, tais como mitos, ritualizações, cerimónias e as comemorações, que muitas vezes constituíram uma etapa final, para figurar no regulador do quotidiano. O lado em questão é funcional: “A ideologia política funciona essencialmente como justificação dum poder (da tomada de poder antes da revolução e do exercício do poder depois da Revolução)” (Sironneau, 1980. p. 24). Nesta toada: “Os movimentos políticos tomaram formas religiosas (míticas, rituais, e comunitárias, por exemplo, nos períodos hitleriano e estaliniano) que foram essencialmente os substitutos de legitimação da política tradicional” (Sironneau, 1980, p. 24).

Parece-nos que do lado afetivo pretendia preencher o lado mais paternalista, oferecendo esquemas e quadros aliciantes, totalizantes, promotores de lealdades, como as noções de raça, nação e pátria (Sironneau, 1982, pp. 513-517), enquanto do lado mais cognitivo, a ideologia republicana surge como uma narrativa que explica e justifica quase cientificamente as causas dos males que acometem a sociedade por um modelo de moral social laica,74 indo nesta lógica ao encontro das necessidades existenciais das massas.