• Nenhum resultado encontrado

Em primeiro lugar, tratemos da maneira pela qual Hobbes desenvolveu uma meta invenção, na qual atribuiu, à própria invenção humana, a invenção da linguagem e o nascimento das artes. Em outras palavras, a invenção humana que possibilitou a definição de todas as coisas foi a invenção da linguagem. Esta descoberta, esta inventio, é a maior e mais profícua de todas porque foi esta invenção que possibilitou a invenção da existência de todos os outros seres. Trata-se da invenção que permitiu o acesso a todas as outras invenções humanas, por isso também configura-se como o caracter humano por excelência. Se há algo que proporciona ao homem, ser descrito como homem, é a invenção da linguagem. Hobbes afirma que as faculdades que parecem características somente dos homens, procedem todas da “invenção da linguagem e do discurso21.” (Hobbes, Leviatã, 1997, I, III, p. 42). No texto latino de Hobbes, encontraremos “inventione vocabulorum sermonis” (Hobbes, Leviatã, 1841, I, III, p.20). O termo discurso, que em latim encontramos sermão, é o meio pelo qual a linguagem se efetiva. Atentemos ao fato pelo qual Hobbes, que poderia empregar o termo criação da linguagem, vale- se do termo invenção.

A invenção da ideia da invenção de linguagem e principalmente do discurso é a grande base da filosofia hobbesiana, uma vez que, segundo o filósofo, a existência e a verdade só ocorrem na linguagem expressa em discursos. Como veremos no

21 Em inglês, na passagem traduzida por invenção das palavras e discurso encontramos

capítulo IX deste estudo, há duas maneiras de se designar a existência para Hobbes: por cópula ou por nomes e no capítulo V aprofundaremos o que se entende por verdade em sua filosofia, mas neste momento, cabe ressaltar que a verdade e a falsidade não estão nas coisas, mas na proposição que as definem (Hobbes, De Corpore, 2009, I, 3, 7, p.77 e 79) e “onde não houver linguagem, não há verdade nem falsidade” (Hobbes, Leviatã, 1997, I, IV, p.46). A invenção da ideia de invenção da linguagem em Hobbes opera como o princípio de todas as coisas. Se pensarmos a partir da categoria do Mito, esta seria a entidade que deu origem a dia e noite, e a todas as coisas, a partir do recurso linguístico da descrição.

No supracitado capítulo III do Leviatã, no qual Hobbes descreve a natureza dos homens, encontraremos a inventio descrita como uma faculdade, como naquelas ocasiões em que elaboramos discursos mentais governados pelos desígnios ou desejos, buscando causas e efeitos ou os não efeitos e as não causas. O exemplo hobbesiano nos transporta para a situação de procura de um objeto perdido, onde conjecturamos e rememoramos o caminho, para encontrá-lo, uma espécie de método de busca. Na edição latina, encontraremos termos interessantes para expressar Discourse of the mind, para o qual teremos discursos da alma ou dos ânimos, se optarmos para uma tradução fora do campo semântico cristão “Discursus animi” (Hobbes, Leviatã, 1841, I, III, p.17); para seeking, encontraremos investigação, “investigationem” (Idem, Ibidem) em destaque e para faculty of invention, faculdade da invenção “facultatem inveniendi” (Idem, Ibidem), com o inveniendi em eloquente destaque. A palavra investigationem aparece em destaque porque, parágrafos antes, Hobbes explicava o que diferenciava os homens dos animais, justamente a capacidade investigativa sobre as causas e efeitos e vice versa. Não sabemos ao certo porque Hobbes teria ressaltado o termo inveniendi, talvez por conta das mesmas razões que diferenciam os homens dos animais, por poder aplicar o aprendizado da investigação através da invenção. Na edição inglesa encontramos em destaque somente a investigationem. O motivo do destaque do conceito de invenção aos leitores letrados, não sabemos, mas apresentaremos neste capítulo uma série de hipóteses acerca da importância desta ideia na filosofia de Hobbes:

In sum, the discourse of the mind, when it is governed by design, is nothing but seeking, or the faculty of invention, which the Latins called sagacitas, and solertia; a hunting out of the causes, of some effect, present or past ; or of the effects, of some present or past cause. (…) in which to begin a method of seeking22 (Hobbes, Leviatã, 1966, I, III, p.14)

À noção de invenção de Hobbes atribuímos ainda uma referência àquela arte pela qual os homens recorrem quando desejam convencer, ou seja, a invenção é uma parte imprescindível da eloquência, marcada pela razão. Hobbes trata da inventio em sua Arte Retórica. Nesta obra, a inventio é apresentada dentro do contexto da definição da arte, que é ganhar a crença do ouvinte no que concerne sobre qualquer assunto (Hobbes, Whole Art of Rhetoric, 1966, I, II, p.424). As crenças são geradas por duas fontes: sem nossa invenção (testemunhos, evidências e similares) e a partir da arte, isto é, as provenientes de nossa invenção (Idem, Ibidem). A invenção é a fonte da arte retórica.

Ao desenvolver a definição da arte, Hobbes nos diz que essas crenças, geradas pela inventio, são baseadas parcialmente no comportamento de quem fala, parcialmente a partir das paixões de quem ouve e especialmente, das provas que elegemos. Sobre as provas, em retórica, Hobbes as define como entimemas ou exemplos, como em lógica, indução ou silogismos, para as quais o entimema é um silogismo reduzido e o exemplo uma indução reduzida. (Idem, Ibidem).

Of those things that beget belief, some require not the help of art, as witnesses, evidences, and the like, which we invent not, but make use of; and some require art, and are invented by us. The belief that proceeds from our invention, comes partly from the behaviour of the speaker, partly from the passions of the hearer; but especially from the proofs of what we allege. Proofs are, in rhetoric, either examples or enthymemes; as in logic, inductions or syllogisms. For an example is a

22 Em suma, o discurso da mente, quando está governada pelo seu desígnio, não é nada além

da investigação, ou a faculdade de invenção, que os latinos chamaram de sagacitas e solertia; uma pesquisa das causas, de algum efeito, presente ou passado; ou dos efeitos, de alguma causa presente ou passada. (...) pelo qual se inicia um método de investigar. (Nossa tradução)

short induction, and an enthymeme a short syllogism;23 (Hobbes, Whole Art of Rhetoric, 1966, I, II, p.424)

No trecho acima se verifica que a invenção é de natureza estritamente humana, ou seja, criada por nós e pode figurar como uma das duas causas das crenças. A crença em Hobbes desempenha um importante papel político, pois, juntamente com a opinião, são fontes de poder e governam o mundo24, o que confere à ideia de inventio uma caraterística marcante dentro de sua filosofia. Encontramos uma definição de inventio em Hobbes, e ela diz respeito às possíveis não causas e não efeitos. Há uma valorização tão grande da inventio por parte de Hobbes que a denomina como um tipo de refutação na qual há a primavera das razões. Em seu tratado sobre sofística, Hobbes apresenta uma definição de inventio ao tratar da refutação de um argumento duvidoso. Há um tipo de refutação, denominada por Hobbes como especial, que pode se referir a certas partes da lógica.

Special are those, which may be referred to certain

parts of logic, and they are of two sorts. Such as are referred to the spring of reasons, called invention; or to judgment. (…) Those referred to invention, are when anything is put for a reason, which is not; as no cause for a cause, no effect for an effect; and so of the rest.25 (Hobbes, Art of Sophistry, 1966, p. 533)

Vejamos o exemplo abaixo, dado por Hobbes.

Aquele que diz que não há sete sacramentos, diz a verdade.

23 Das coisas que geram as crenças, algumas não requerem o auxílio da arte, como os testemunhos, evidências e similares, que nós não inventamos, mas, no entanto, fazemos uso. Por outro lado, algumas requerem arte e são inventadas por nós. A crença que procede de nossa invenção provém parcialmente do comportamento do falante, parcialmente das paixões do ouvinte, mas, sobretudo, especialmente das provas do que alegamos. (Nossa tradução)

24 Hobbes em seu diálogo Behemoth, ao apontar o poder dos religiosos nos conflitos da guerra civil, afirma que “Pois o poder dos que o detêm não possui outro fundamento que a opinião e a

crença do povo” (Hobbes, Behemoth, 2001, p.48). Além disso, a imagem do poder edificado na

opinião e na crença seria uma máxima corrente na Inglaterra de fins do século XVII. (Idem, Ibidem). Observamos também que no Elementos da Lei Hobbes já havia afirmado que “o mundo é governado

pela opinião” (Hobbes, Elementos, 1969, I, XVII, 6, p. 63). Todas estas passagens conferem grande

poder às artes retóricas, a arte de gerar as crenças nos ouvintes.

25 Especiais são aqueles [argumentos] que podem se referir a certas partes da lógica, e eles

são de dois tipos: tais como são referidos à primavera das razões, chamado invenção ou para o julgamento [de sentenças] (...) Aqueles referidos à invenção, ocorrem quando algo, que não é, é colocado pela razão: como não causa, para a causa, não efeito para um efeito, e assim para o restante. (Nossa tradução).

Aquele que diz que há somente três, diz que não são sete.

Ademais, aquele que diz que são três, diz a verdade.26 Para responder a esta falácia, a argumentação deve incidir sobre a não causa, ou seja, o fato da não existência de sete sacramentos ser a verdade (a não causa), não admite como efeito que aquele que afirma que há somente três, dizer a verdade. Ademais, Hobbes afirma, ainda que a última sentença reafirmasse a primeira, mesmo assim configuraria uma não causa, porque são sete os sacramentos católicos. (Hobbes, Art of Sophistry, 1966, p. 533)

Ao condicionar a causa das artes à invenção da linguagem e do discurso, Hobbes opera, em verdade, uma meta invenção, na qual se atribui à invenção da ideia de invenção da linguagem e do discurso as causas de tudo aquilo que torna um homem, homem, diferindo-o dos demais animais. A linguagem e o discurso aparecem ainda como condição descritiva do ser, como causa primeira.

Esta ideia é marcadamente inspirada por Cícero. A inventio, primeira parte da retórica em Cícero, significa a invenção ou a descoberta de algo, cujo efeito no discurso seja capaz de transformar a causa em algo plausível:

Invenção, disposição, elocução, memória,

pronunciação. Invenção é refletir acerca das coisas verdadeiras ou verossímeis que tornem provável a causa (...) elocução é a acomodação das palavras idôneas para a invenção (Nossa tradução do latim)27 (Cícero, 1932, I, VII, 9, p. 14).

A reflexão que a inventio exige possibilita alcançar um conhecimento de algo que, a partir de argumentos verdadeiros ou verossímeis, transforme a causa em algo provável e, portanto, persuasivo. Em outras palavras, a invenção tanto é mais poderosa quanto formos capazes de produzir, no ouvinte do discurso, a sensação de que a causa defendida é válida. A este conhecimento poderoso, conhecimento que produz determinados efeitos a partir do conhecimento de suas causas, ou o seu contrário, remontar as causas a partir dos efeitos, Hobbes deveu o princípio de sua

26 He that saith there are not seven sacraments saith true. He that saith there are only three saith there are not seven. Therefore he that saith there are three saith true. (Hobbes, Art of Sophistry, 1966, p. 533)

27 inventio, dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio. Inventio est excogitatio rerum verarum

aut veri similium, quae causam probabilem reddant (...) elocutio est idoneorum verborum ad inventionem accomodatio (Cícero, 1932, I, VII, 9, p. 14)

filosofia. Aqui apresentamos como a inventio de Hobbes é cara a Cícero. A seguir, veremos como esta noção foi fundamental na edificação da filosofia de Thomas Hobbes.