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Para personificar coisas, como um múltiplo que se torna uma única pessoa, Hobbes desenvolve a ideia de pessoa. Ao que tudo indica, a definição de pessoa em Hobbes possui uma necessária ficção. Há uma enigmática frase, na qual a pessoa, para quem ações ou palavras são atribuídas, o é por ficção ou verdadeiramente111.

Uma pessoa é aquele (sic) cujas palavras ou ações são

consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com verdade (truly) ou por ficção (fiction).

(Hobbes, Leviatã, 1997, I, XVI, p. 135)

Hobbes afirma que uma pessoa pode basear seu ser em verdade ou ficção. Num primeiro momento, chama-nos a atenção este caráter ficcional. Cremos trata-se de uma ideia da retórica, em especial a de Cícero. O orador num tribunal, a fim de ganhar sua causa, deve valer-se de argumentos verossímeis, que eventualmente podem ser verdadeiros, mas não necessariamente. O orador latino, na ocasião de

110 Verso 116 da Teogonia de Hesíodo.

111 A edição latina não possui esta frase. O título do capítulo suprime as coisas personificas, mas trata delas em seu interior. A definição de pessoa é mais direta, sucinta e já introduz a ideia de representação: “Persona est is qui suo uel alieno nomine res agit: si suo, persona propria, sive

naturalis est: si alieno, persona est ejus, cujus nomine agit, representativa.” (Pessoa é aquele que faz

as coisas em seu nome ou no de outrem; se em seu, é pessoa própria ou natural; se outro, a pessoa é aquela em cujo nome se age, representativa.) (Nossa tradução do latim). (Hobbes, Leviatã, 1841, I, XVI, p. 123). A noção de representação é posterior no trabalho de Hobbes e pretende explicar o então novo governo parlamentarista que se instituía na Inglaterra de seu tempo. Esta interpretação é de Ostrensky (Ostrensky, 2010).

defesa ou acusação, representa uma pessoa. Quando ele representa a si próprio com palavras ou ações, dirá Hobbes, é uma pessoa natural. Quando representando outrem, uma pessoa artificial ou fictícia (feigned) e esta última é portadora de autoridade ao executar ações do representado. Em geral, os comentadores observam nesta pessoa de Hobbes somente o aspecto jurídico112, apagando seu caráter eloquente. A noção de pessoa de Hobbes é a mesma de Cícero, cuja referência, em raros momentos de citação e atribuição de ideias, ocorre em Hobbes:

E personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro; e daquele que representa outro diz-se que é portador de sua pessoa, ou que age em seu nome (sentido usado por Cícero quando diz: Unus sustineo três personas; Mei, Adversarii, et Judicis – sou portador de três pessoas; eu mesmo, meu adversário e o juiz). (Idem, Ibidem)

Esta passagem de Cícero está no De Oratore (Cicero, 1967, II, 24, 102, p.274) e refere-se a um dos muitos procedimentos prescritos pela arte da eloquência que devem ser adotados pelo orador. No caso, Cícero relata como ele próprio age ao representar alguém em um tribunal. Deve-se deixar o autor da ação, o representado, à vontade para que ele fale livremente sobre o assunto. Em solidão, o orador, em perfeita imparcialidade, deve imaginar-se como cada uma dessas três pessoas, o próprio orador, o oponente e o juiz. A partir desta fantasia de um diálogo entre três, deste embate, formulado em suas minúcias, o orador deve considerar o que for mais útil que embaraçoso para discussão. O que for mais prejudicial que benéfico deverá ser descartado.

Em verdade procuro que cada um me instrua acerca de seu assunto sem que ninguém mais esteja presente, para que possa falar com maior liberdade e conduzir a causa do adversário e para que ele conduza a sua e exponha o que considere o quer que seja acerca do assunto. Desta maneira, quando ele retira-se, desempenho com a mais alta equanimidade o ânimo das três pessoas: o meu mesmo, o do adversário e o do

112 Dentre estes comentadores, Franck Lessay é bastante representativo desta tese. Após citar uma passagem do Elementos da Lei de Hobbes, na qual se lê que “uma corporação é uma pessoa

jurídica” (II, VIII, 7), diz Lessay que “la juridicité est ici clairement posée, de même que l’enracinement dans la tradition du droit anglais. Cette personne est dite civile: elle se distingue de la personne naturelle qui, elle, renvoie au premier sens mentionné.” (Lessay in Zarka, 1992, p.157)

juiz113. (Nossa tradução do latim). (Cicero, 1967, II, 24, 102, p.274)

Hobbes, ao ler esta passagem, muito provavelmente recordou-se da lição de Tucídides, dos argumentos calculados, os favoráveis e os desfavoráveis, suas consequências e a exigência de um leitor que julgue o escrito. Até nossos dias, o linguajar jurídico preserva esta noção de pessoa hobbesiana, como portadora de autoridade. O indivíduo que move uma ação é o autor da ação. O advogado irá representá-lo juridicamente. É importante notar aqui que a ideia de soberano representante em Hobbes guarda aquele orador, portador das três pessoas de Cícero e de Tucídides. Cícero em muito louva Tucídides em seu De Oratore e há indícios de que tenha emulado, sobretudo, sua arte, ou seja, sua técnica de construção da argumentação. Esta técnica é justamente a que expusemos linhas acima, na qual há a descrição mais equânime possível dos dois lados da contenda aduzido da suposição decisória de um árbitro, no caso, o juiz. Cícero destaca a clareza dos argumentos combinadas à exposição dos argumentos de Tucídides.

Tucídides supera a mi juicio con holgura a todos em arte. Pues este es tan denso por la concentración de contenidos que llega casi a igualar el número de palabras con el número de pensamientos; y hasta tal punto es preciso y conciso que no sabes si los contenidos reciben luz del estilo o las palabras del pensamiento. (Cícero, De Oratore, 2002, II, 13, 56, p. 226, tradução de José Javier Iso).

A pessoa artificial, para Hobbes, representa as ações de um autor. Assim como o direito de posse se chama domínio, o direito a agir se chama autoridade, de modo que “por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ação e feito

por autoridade significa sempre feito por comissão ou licença daquele a quem

pertence o direito” (Hobbes, Leviatã, 1997, I, XVI, p. 136).

Tendo esta ideia por fundamento, Hobbes a transpõe para o plano da República: ao afirmar que cada um na multidão confere ao representante comum sua própria autoridade, seja em caso de autoridade ilimitada ou com limites, numa ação

113 Equidem soleo dare operam, ut de sua quisque re me ipse doceat et ut ne quis alius adsit, quo

liberius loquatur, et agere adversari causam, utille agat suamet quicquid de sua re cogitarit in médium proferat: itaque cumille discessit, tris personas unus sustineo summa animi aequitate, meam, adversari, iudicis.

específica114 e assim, transmutada em uma única pessoa, nasce a pessoa artificial ou fictícia do Estado (Idem, Ibidem, p.137).

Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. (...) Dado que a multidão naturalmente não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome. (Hobbes, Leviatã, 1997, I, XVI, p. 137)

Hobbes inventou um tipo de representação, uma representação da multidão. Importa–nos aqui o ficcional desta questão. Quando atribuída a autoridade ao soberano representante, esta pessoa artificial agirá com verdade ou ficção (Hobbes, Leviatã, 1997, I, XVI, p. 135). Desta maneira, temos literalmente uma filosofia da ação política, uma filosofia baseada em autores que autorizam as ações de seu soberano representante, ações estas ficcionais ou verdadeiras. Ao definir o termo ficção (fiction), Hobbes apreende-a como ficção mental. Ficção mental corresponde a uma imaginação composta (como quando um homem imagina-se a si próprio como Hércules ou Alexandre) e se opõe à imaginação simples, que é lembrar-se de um objeto qualquer que foi apreendido pela sensação (Hobbes, Leviatã, 1966, I, II, p.6). É ficção para Hobbes quando o homem fantasia com coisas que nunca viu, como quando compõe uma figura com partes de diversas criaturas: centauros, quimeras e outros monstros nunca vistos (Idem, Ibidem, IV, XLV, p. 45). Compreendemos assim que, embora estranhamente colocada como uma exigência ontológica da pessoa artificial do soberano, a ficção é de fácil compreensão: trata-se de algo criado pela imaginação humana. A pessoa artificial ou fictícia é o que contemporaneamente denominamos como pessoa jurídica, uma pessoa criada (persona ficta115) pela mente humana e sua existência é efetivada através da lei. O intrigante é o fato de a ficção desempenhar um papel equivalente à verdade (evidenciado pela partícula ou (Hobbes, Leviatã, 1997, I, XVI, p. 135)) na compostura de um soberano. Assim, resta-nos saber, o que é a verdade em Hobbes.

114 Tal qual aquela procuração que assinamos aos nossos advogados representantes, cedendo poderes ilimitados em nossa representação jurídica, circunscrito pela ação a ser movida.

115 Segundo Otto von Gierke, a concepção de persona ficta ou uma pessoa imaginada de uma corporação ou, ainda, uma pessoa jurídica aparece a primeira nos escritos jurídicos do Papa Inocente IV (1243-1254). (Koessle, 1949, p.437)