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humana, demasiado humana

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O pintor para quem posei desistiu das linhas,

abandonou as tintas: meu retrato é uma tela branca (p. 143).

Maura Lopes Cançado definitivamente não é um corpo translúcido. Os feixes lânguidos do olhar transparente dos códigos encontram nela uma grande barreira de trajetória. Paradoxalmente, sua opacidade se faz no momento em que se revela. É justamente ao contar sua história que Maura se constitui como resistência e desafio aos códigos.

Trata-se de uma história autobiográfica retratada em dois livros: Hospício é Deus (escrito em 1959 e 1960 e publicado em 1965) e O Sofredor do Ver (1968).

Hospício é Deus foi escrito por Maura enquanto interna da seção Tillemont Fontes,

Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Este livro, basicamente, estrutura-se em duas partes: na primeira, Maura fala de sua vida pessoal, de sua infância, adolescência, contextualizando o leitor para que compreenda melhor a segunda e maior parte de seu livro, um diário, que registra um determinado momento de sua vida no hospício, suas reflexões e visão aguçada sobre as relações humanas, base das relações sociais que produzem, entre outras coisas, a loucura. Maura assim o faz por meio de suas memórias, intercaladas por pequenos trechos de poemas e pensamentos de autores como Fernando Pessoa e Nietzsche.

Já O Sofredor do Ver é uma coletânea que reúne muitos de seus contos publicados,

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Este título, uma menção óbvia ao clássico de Nietzsche (1879) Humano, Demasiado Humano, já foi utilizado por Luzilá Gonçalves Ferreira (2000) ao escrever uma biografia sobre Lou Salomé.

principalmente, no caderno dominical do Jornal do Brasil, nas décadas de 50 e 60. São contos auto-referenciados, na sua maioria, com destaque para No Quadrado de Joana,

Introdução a Alda e O Sofredor do Ver.

Trazer seus textos para o presente trabalho é, antes de tudo, resgatar a obra de uma talentosa, porém, esquecida escritora brasileira, prestando-lhe uma merecida homenagem. É, também, valer-se de um precioso instrumento para continuar a reflexão sobre os elementos “negativos”, apresentados no Capítulo 2, que encerram um sentido não aprisionável.

Apesar de ter querido registrar sua vida e seu cotidiano em um hospital público, Maura não o fez por se achar uma figura exemplar. Ela não quis, com seu texto, deixar referências de uma caminhada de sucesso, como o fez Rousseau, por exemplo, com suas

Confissões. Não; é exatamente o contrário.

Maura (1979) escreveu sobre sua angústia, suas dificuldades, sem um desfecho positivo de superação. Escreveu sobre uma vida que não correspondeu às expectativas da família e dos amigos, sobre uma promessa que não se cumpriu. Comenta, ao terminar sua rápida narração da infância e da adolescência, ainda na primeira parte do livro: “Apresentei

a moça de dezesseis anos, bonita, rica, aviadora; sem futuro ― mas uma grande promessa”14 (p. 28) e escreve, nas últimas frases do livro: “Como é terrível ficar sozinha.

E como é desgraçado estar na situação em que estou” (p. 201).

Essa característica da narrativa da Maura, de se mostrar mediana, comum, inferior ou superior em alguns momentos, todos acompanhados de medo, insegurança ou arrogância e vaidade, lembra-me o personagem Brás Cubas de Machado de Assis (1881:2001) que, ao contar sua história, iniciada após sua morte, narra a vida de uma pessoa medíocre que teria um saldo nulo para com a vida, não fosse o fato de não ter tido

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Os trechos extraídos das obras da escritora Maura Lopes Cançado estarão destacados em itálico, diferentemente das outras citações desta dissertação.

filhos, de não ter transmitido sua herança de mediocridade. Nas inteligentes, elegantes e irônicas palavras do autor:

somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo (...): – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria (p. 159).

O leitor que se envolve com o diário da Maura não espera um final feliz; aliás, dela não se espera qualquer final. Maura não demonstra a necessidade de contar nenhuma história, de desenvolver nenhum enredo. Ao optar por um diário, dá ênfase aos fatos corriqueiros, cotidianos, passados no hospício, como os atos de outras internas, problemas com as guardas, com as instalações, suas sessões com o médico. A cada dia que escreve, inicia sua história.

Uma história contada em tempo real, com data e hora marcada; um tempo bastante diferente do tempo de uma obra de ficção, de um romance. E mais: com um cenário real, possuidor de endereço passível de confirmação. Este é o “problema” de seu livro: real, demasiado real.

Um tempo real, no entanto, que graças ao talento da escritora, parece estendido ou acelerado em alguns momentos. Quando escreve: “um momento fosco se estendeu trêmulo,

o alto-falante gritava música seca, fazendo o corredor dançar quieto e quase vazio, enquanto as mulheres se olhavam, andando lentas e sacudidas” (1979, p. 36). Maura

provoca uma alteração no tempo, que pára com o intuito de acompanhá-la na descrição. Sua história é também contada com muita lateralidade. Maura não assume a “autoridade” de que geralmente se investe um autor. Maura não tem a onisciência de um autor de ficção, por exemplo, que conhece o fim da história que revelará. Ao contar-se por

meio de um diário, Maura, assim como o leitor, também desconhece o que está por vir. Sônia Roncador (2002), ao discutir o tempo na narrativa derradeira de Clarice Lispector, abordando, antes, as diferentes estratégias de narração romance e diário, informa:

Essa é a razão pela qual um diário é normalmente definido como a forma de escrita que por excelência carece de uma “necessidade interna”: os eventos registrados em um diário pessoal estão justapostos de maneira casual; aquele que os lê – com ou sem permissão do(a) seu/sua autor(a) – não tem a impressão de que os fatos aí revelados seguem “necessariamente” uns aos outros. Desse modo, o diário desafia a ausência, própria do romance clássico, de um tempo “real”, ou puramente cronológico. O diário subverte a supremacia que no romance o tempo “lógico” tem sobre o “cronológico” (p. 125).

A leitura de um diário pode ser uma leitura muito mais inquietante, ou mesmo “perigosa”, como nos alerta Reynaldo Jardim, no prefácio de Hospício é Deus (1979):

O melhor para continuar dormindo tranqüilamente, é não virar a página. Mais que um prefácio, isto é uma advertência: este é um livro perigoso, feito para comprometer irremediavelmente sua consciência. A tranqüilidade dos que se julgam impunes e lúcidos, dos que ainda não sabem, porque ainda não olharam para dentro de si mesmos, que Deus também pode ser o inferno, ou o hospício (p. 10).

Maura se retrata arrogante, mimada, carente, preconceituosa, invejosa, confusa, indecisa, inconseqüente, irritada, deprimida, medrosa. Não são essas as características de um herói, mas podem ser essas as características de um anti-herói que se somam à Maura generosa, inteligente, lúcida, sensível, bonita, sensual, culta.

Herói ou anti-herói, ainda a mesma estrutura. Pólos extremos, termos, de um mesmo eixo, de uma mesma racionalidade, de um mesmo código. Entre esses dois opostos,

uma vida inteira, a vida de Maura, que em alguns momentos desempenhou esses papéis, ajustou-se aos modelos identificatórios, enquadrou-se na referência ou na contra- referência, mas que também se fez fugidia, surpreendente, plena, viva.

Maura nasceu no interior de Minas Gerais, em uma suntuosa fazenda próxima da cidade de Patos de Minas. Era filha de um rico e poderoso fazendeiro, condição que lhe gerava sentimentos de tudo poder. Percebe-se, inicialmente, como uma criança bonita que foi amada e protegida por sua família, mas logo esse sentimento passa a conviver com o medo. Medo das pessoas, da noite, enfim, do que lhe era desconhecido e que estava além do quintal de sua casa.

Então ansiava ardente por crescer, viver um pouco cega e surda como as pessoas grandes: que não percebiam os rumores, não enxergavam o escuro, na sua densidade e perigo. Como? se eu era ainda completamente sem palavras

(Cançado, 1979, p. 18).

A solidão, o desamparo, juntamente com o medo, vão-se constituindo a tônica de sua existência. Os episódios que se sucedem no desenrolar de sua vida passam, na sua maioria, a ter essa marca. Maura utiliza uma metáfora muito interessante, “uma parede de vidro”, para expressar sua falta de integração, estranhamento e inadequação perante as pessoas, inclusive familiares. Em suas palavras: “Desde menina experimentei a sensação

de que uma parede de vidro me separava das pessoas. Podia vê-las, tocá-las – mas não as sentia de fato” (1979, p. 27). Esse sentimento acompanhou a autora ao longo de todo o seu

diário e, portanto, ao longo de sua vida registrada.

Aos quatorze anos de idade, logo após sua entrada em um aeroclube, casou-se com um jovem aviador de 18 anos. Seu casamento teve a duração de um ano e, assim, aos quinze anos, Maura estava separada e com um filho. Esta condição fez-lhe testemunhar algumas amarras sociais, quando vítima de muitos preconceitos. A partir dessa fase, ao

medo, Maura (1979) juntou a insegurança, conforme sua análise, e acrescenta:

desde então tudo tomou caráter mais grave e penoso; passei a sofrer com brutalidade os reflexos do condicionamento imposto a uma adolescente numa sociedade burguesa, principalmente mineira – e principalmente quando esta adolescente julga perceber além das verdades que lhe impõem, e tem, ela mesma, sua própria verdade (pp. 27-28).

Nesse ponto de desenvolvimento da sua vida, aos dezessete anos, Maura encerra a primeira parte do livro Hospício é Deus (1979), iniciando o diário. Retoma, no entanto, algumas memórias, diluídas no relato cotidiano.

Sabemos, dessa forma, que com dezessete anos mudou-se para Belo Horizonte e que se dedicou a muitos estudos e aulas de artes, individuais, pois sempre era negada sua matrícula em colégios internos. Vivia, então, para suas leituras e aulas, insistindo sempre em estabelecer contato com outras pessoas. Nesse período, já com dezoito anos, devido à enorme solidão e sentimentos de medo e insegurança, Maura internou-se pela primeira vez em um sanatório. E, depois, como ela mesma conta:

Após a experiência do sanatório, desisti de insistir na vida em que antes me obstinava. (...) Não era a mocinha moradora em pensionatos, a “Minas-girl” como são chamadas as moças do Minas Tênis Clube. Mudei-me para um hotel de luxo, travei conhecimento com moças consideradas mais ou menos livres, que me aceitaram sem restrições, conheci rapazes, que também me aceitaram (...). Deixava-me levar em turbilhão ― mas parecia buscar ainda algo” (1979, p. 70).

Maura viveu neste hotel, segundo seu relato (1979), por dois anos. Nessa fase, suas crises convulsivas se agravaram e passaram a ser mais freqüentes. Teve também várias crises depressivas, vivendo sua primeira tentativa de suicídio. Em meio a tantas perguntas “― Para quê? Até onde chegarei? E o que é isto? Quem é essa gente e quem sou eu? Que

estou fazendo?”, parou de beber e mudou-se para o Rio de Janeiro.

Maura (1979) inicia seu diário com um grande presente para o leitor: sua comparação entre loucura e morte, e sua distinção entre loucura e doença mental.

Apesar de ver semelhanças entre a morte e a loucura, Maura (1979) enfatiza mais suas diferenças. Para ela, o que mais distingue os dois termos é a distância, ou melhor, a eternidade. Maura vê mais eternidade na loucura que na morte. A morte é “cava,

subterrânea, desintegração, fim” (p. 28), enquanto que na loucura, “o louco é divino (...) é eterno” (p. 28).

Na aproximação dos dois termos (loucura e morte), o poético: “os dormitórios

vazios e impessoais são cemitérios, onde se guardam passado e futuro de tantas vidas. Cemitérios sem flor e sem piedade: cada leito mudo é um túmulo, e eu existo entre o céu e esta dormência calada” (1979, p. 78).

Unindo os termos, também, a luta para fugir desses destinos. Uma luta que, segundo Maura (1979), é nauseante, vergonhosa, pois para a autora, a luta é para que não se perca “o lugar no mundo, afetividade, direitos (direitos?)” (p. 28). A luta se faz vergonhosa, leva-nos Maura a refletir, pela pequenez do prêmio.

Em uma bonita passagem de seu diário, Maura confirma essa idéia quando justifica o modo de ser das pessoas pela mediocridade. Impressiona, dizendo:

e a maneira de ser deles deve fazer parte da sua mediocridade. Percebo certa imoralidade na luta que caracteriza as pessoas para conseguirem um lugar no mundo. Que falta total de pudor – como se esforçam. Ainda têm coragem de dizer que nesta luta está o valor. Quanto a mim, sou demais orgulhosa para lutar. Tudo me vem por acidente. Aceito as coisas imediatas e geralmente consideradas simples (p. 149).

pertence a outra ordem; uma ordem mais elevada que a normal. Ocupa, dessa forma, um lugar sagrado, semelhante ao ocupado por volta do século XV, quando detinha a sabedoria. A loucura, pensava-se, acessava um saber oculto, secreto, “arrancado das entranhas da terra”, informa Foucault (1972:2000, p. 21).

Nossa autora denomina a loucura, então, de Santidade, caracterizando um estado em que há uma total ausência de medo, um grau de liberdade absoluto, uma condição de inviolabilidade do ser que poucos têm a coragem necessária para atingi-lo. O doente mental, em contrapartida, é aquele que vive mergulhado no medo, “o medo de se perder de

todo antes de se encontrar” ( p. 29).

Em seu conceito, a loucura é impenetrável, não se pode traduzi-la, nem conhecer seu âmago. “Acaso alguém tocou o abstrato?” (p. 29), pergunta-se a autora (1979). O único jeito de conhecer esse estado de santidade é tornar-se louco, um caminho sem volta, mesmo porque, segundo Maura, nem se tem esse desejo.

Como os mortos, [os loucos] nada fazem para voltar ao estado primitivo – e embora todos tenhamos de morrer um dia, poucos alcançam a santidade da loucura (e quem prova estar o louco sujeito à morte, se passou para uma realidade que desconhecemos) (p. 29).

A loucura, dentro de sua visão, está absolutamente fora da possibilidade de ser enquadrada, capturada, o que não ocorre com a doença mental. Nesse aspecto, Maura (1979) antecipa a abordagem da loucura apresentada neste trabalho.

A autora constata outras facetas da loucura. Em um discurso poético, Maura (1979) fala de seu aspecto social, antecipando, também, a análise de Foucault (1972:200015). Assim o faz ao retomar o cenário do pátio do hospício. Atribui responsabilidades para a constituição da loucura, que se faz por um processo sutil, lento, cruel e anônimo. Apesar de

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É preciso lembrar que o livro Hospício é Deus, de Maura L. Cançado, foi escrito no final de 1959 e começo de 1960.

extenso, faz-se importante apresentar16 esse trecho, tamanha sua beleza e precisão. Maura (1979) grita ao escrever:

Não continuarei. Não sairei louca gritando. Até quando haverá pátios? Mulheres nuas, mulheres vestidas – mulheres. Estando no pátio não faz diferença. Mas esta mulher, rasgada, muda, estranha, um dia teria sido beijada. Talvez um bebê lhe sorrisse e ela o tomasse no colo, por que não? Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um. Que fazer para que todos lutem contra isso? Não acho que os médicos devam conservar ocultos os pátios dos hospícios. Opto pelo contrário; só assim as pessoas conheceriam a realidade lutando contra ela. ENTRADA FRANCA AOS VISITANTES: não terá você, com seu indiferentismo, egoísmo, colaborado para isto? Ou você na sua intransigência? Ou na sua maldade mesmo? Sim, diria alguém se pudesse: recusaram-me emprego por eu ter estado antes internado num hospício. Sabe, ilustre visitante, o que representa para nós uma rejeição? Posso dizer: representa um ou mais passos para o pátio. – Eu quis, mas não posso viver junto deles. Que fazer? Odeio-os então por isto. Trancar-me – voltar para o pátio, onde não serei recusada. Fugir. Fuga na loucura” (p. 161).

“Fuga na loucura”, encerra Maura. Não a loucura-santidade falada na página 28 de seu diário, mas, sim, a doença mental, para usarmos sua definição. O trecho acima descreve, como poucos, a relação entre a dinâmica social moderna e o hospício. Maura denuncia o quanto o indiferentismo, o egoísmo, ou mesmo a maldade, como nos diz, são produtores de doença. De um modo geral, pode-se dizer que o individualismo, importante peça na engrenagem social moderna, é, por si só, promotor de doença.

Maura sugere “entrada franca aos visitantes”. Ocorre que os visitantes estão longe dos pátios não pelas dificuldades de seu acesso. Mesmo se os pátios estivessem abertos à visitação, continuariam habitados apenas pelos loucos. Se já nos é muito difícil lidar com a loucura, mais ainda é encarar os maus tratos de que é vítima. Quanto a essa repulsa,

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O trecho apresentado, devido a seu tamanho, não está seguindo a formatação padrão das citações utilizadas nesta dissertação.

Baudrillard (1976:1996) apresenta uma interessante explicação17.

Para esse autor, essa insuportabilidade se ancora nos aspectos moral e ritual dessas práticas. Moral, quando atribuímos irresponsabilidade aos loucos e, portanto, ausência de consciência de sua “culpabilidade” (que pode ser pensada, aqui, como “desvio”, ou mesmo “doença”), o que lhes impede de articular uma defesa. Ritual, quando o cerimonial dos maus tratos (como as correntes do século XVII) confere, de alguma forma qualidades do humano (no caso, punição de um humano) a quem, de fato, é vítima de um desprezo radical, a quem já pertence à categoria de “inumano18”.

Atira Baudrillard (1976:1996):

o desgosto que nos inspira a execução de um animal [ou os maus tratos com os loucos] tem a razão direta do desprezo que temos por ele. É porque o relegamos, o que é próprio da nossa cultura, à irresponsabilidade, ao inumano, que o animal se torna indigno do ritual humano: basta então que aquele seja aplicado para nos causar náusea, não por causa de algum progresso moral, mas devido ao aprofundamento do racismo do humano (p. 225).

Atualmente, como bem percebeu Maura já no início da década de 60 e como nos avisa Baudrillard (1976:1996), os maus tratos vêm sendo progressivamente substituídos pela terapêutica e pela reciclagem social. Essas formas compõem o quadro da normalização e socialização da sociedade que empregam o discurso de que todos são livres e iguais perante a lei. Ocorre que só nos igualamos na cegueira às diferenças e, assim, o

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Baudrillard (1976:1996) estabelece essa explicação ao analisar a morte em suas diversas expressões sociais como, por exemplo, a pena de morte. Inicia esse texto por meio da repulsa das pessoas diante dos maus tratos infligidos aos animais, sobretudo, o desconforto observado quando da execução de animais, como as ocorridas até o século XVIII, após o julgamento e condenação dos animais envolvidos na morte de algum ser humano. Nesta dissertação, faz-se uma extrapolação dessas considerações para o incômodo provocado pelos maus tratos aos loucos, evidenciado, ainda, na atualidade.

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Para Baudrillard (1976:1996), a universalização do conceito de “humano” é a responsável pelo assunção desse conceito à força de lei moral e, conseqüentemente, ao seu próprio princípio de exclusão: o inumano. Progressivamente, fomos diminuindo a extensão do “humano” e aumentando a categoria do inumano, que antes tinha elementos como os deuses, a natureza, os animais, por exemplo, e que passou a abarcar, também, os loucos, os homossexuais, as crianças, os pobres, os subdesenvolvidos, os idosos, entre outros.

louco e o morto, por exemplo, não têm direito a uma existência enquanto na loucura e na morte.

Maura (1979), com a sagacidade e coragem de suas denúncias, investe-se de grande responsabilidade. Fala o que pensa e paga o preço por isso. Não se esconde por trás de um anonimato, ao contrário, assina com muita personalidade todos os seus atos.

Constituir nichos notórios de “irresponsabilidade”, como os hospícios, por exemplo, para com isso as pessoas normais, melhor seria dizer normalizadas, viverem a ilusão da responsabilidade é um mecanismo já denunciado por Baudrillard (1976:1996). Com a Maura, no entanto, esse esquema não tem sucesso. Com o melhor de sua responsabilidade, ela devolve responsabilidade para o sistema, mas uma responsabilidade que ele não suporta, posto que não ilusória, posto que demasiado real e incapaz de ser operacionalizada (já que uma responsabilidade demanda ações) pelo código.

Em seu diário, Maura (1979) comenta sobre a irresponsabilidade atribuída à loucura. Seu comentário se constrói paralelamente a sua indignação perante o padrão comportamental exigido do louco e punição do mesmo diante de seu previsível não enquadramento nesses padrões. Pode-se dizer que sua indignação também tem como base

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