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A lição de Maura Lopes Cançado: entre a alteridade da loucura e a normatização dos códigos

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

A LIÇÃO DE MAURA LOPES CANÇADO:

ENTRE A ALTERIDADE DA LOUCURA E A

NORMATIZAÇÃO DOS CÓDIGOS

SÍLVIA MARIA RONCADOR BORGES

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

A LIÇÃO DE MAURA LOPES CANÇADO:

ENTRE A ALTERIDADE DA LOUCURA E A

NORMATIZAÇÃO DOS CÓDIGOS

SÍLVIA MARIA RONCADOR BORGES

PROFESSORA ORIENTADORA: DRA. ONDINA PENA PEREIRA

Dissertação apresentada à Universidade Católica de Brasília como parte dos requisitos à aquisição do título de Mestre em Psicologia

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B732l Borges, Silvia Maria Roncador.

A lição de Maura Lopes Cançado: entre a alteridade da loucura e a normatização dos códigos / Sílvia Maria Roncador Borges. – 2008. 98 f. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2008. Orientação: Ondina Pena Pereira.

1.Cançado, Maura Lopes, 1930-1993.2.Alteridade. 3. Doenças mentais. I. Pereira, Ondina Pena, orient. II. Título.

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AGRADECIMENTOS

Ninguém nunca deu um passo sozinho. Eu, tampouco. Minha dissertação de

mestrado foi construída sob sólidas cumplicidades, solidariedades, parcerias.

Tive a sorte e a honra de poder contar com o apoio e testemunho de algumas

pessoas muito especiais em minha vida.

É o caso da Ondina Pena Pereira. No início, minha orientadora, apenas. No final,

uma grande amiga. Ondina foi responsável por Jean Baudrillard, neste trabalho, e por dar

um tom muito especial na construção da relação orientadora/orientanda, pautada na

admiração, respeito e amizade.

Meus amigos, os poucos e bons que tenho, me acompanharam também em toda

essa trajetória. Agradeço, especialmente, à Márcia, pelo carinho e pelo espaço de desabafo,

e à Angelina, pelo lado-a-lado na dissertação, desde o momento da constituição da questão,

abordada aqui, até a impressão das palavras finais.

Da minha mãe e irmãos, a oportunidade de verificar a constância e qualidade do

amor que têm por mim. Sempre muito pacientes com algumas ausências em nossos tão

divertidos almoços de domingo.

E, por fim, Henirdes e Gustavo, meus mais queridos e preciosos companheiros.

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(6)

RESUMO

Este trabalho estabelece um espaço dialógico entre Maura Lopes Cançado, Jean

Baudrillard e Michel Foucault. Um diálogo, no entanto, que tem um tema determinado: a

crítica à racionalização dos códigos e à conseqüente expulsão da alteridade, observada na

modernidade. De nossos interlocutores, destaca-se: a interpretação de um momento

hegemônico, em que reinam os sistemas positivados, os códigos, apontados por

Baudrillard; a detalhada descrição da progressiva instalação da racionalidade normatizada

e a denúncia dos processos de subjetivação e objetivação do indivíduo moderno feitas por

Foucault; e a refinada sensibilidade e inteligência de Maura que ao retratar-se, por meio de

um texto autobiográfico, denuncia a sutil cultura da diferença que paradoxalmente elimina

a alteridade. Dentro deste contexto, alguns elementos desconsiderados na construção dos

positivados códigos modernos, como a morte, o feminino e o poético, conforme aponta

Baudrillard, e a loucura, como acrescento nesta dissertação, são apresentados como

(7)

ABSTRACT

This dissertation’s main purpose is to foster a certain dialogue between the writing of

Maura Lopes Cançado, Jean Baudrillard, and Michel Foucault. In order words, it examines

a specific theme pivotal in the texts of these three writers: their criticism against

modernity’s rationalization of codes and its consequent denial of alterity. Some of these

writers’s main contributions to a revision of such denial include: the interpretation of a

hegemonic moment, or one in which positivist systems, or codes, predominate

(Baudrillard); a detailed description of the gradual establishment of normatized rationality,

as well as Foucault’s rejection of the modern individual’s processes of subjectivization and

objectivization; and, finally, Cançado’s sophisticated ability to denounce, by means of her

self-representational text, the subtle culture of difference, one which paradoxically

eliminates alterity. In this context, several elements Baudrillard claims are excluded from

modern, positivist codes, such as death, the feminine, the poetical, and – this dissertation’s

main focus – madness, are all presented as possible ways of breaking away from such

(8)

SUMÁRIO

Introdução ...08

Capítulo 1: a transparência dos códigos ...17

Capítulo 2: o lado oculto da lua ...33

Capítulo 3: humana, demasiado humana ...63

Considerações finais ...86

(9)

INTRODUÇÃO

Este trabalho é uma reflexão a respeito de nosso tempo atual, um tempo no qual

vivemos submetidos a certo tipo de racionalidade normatizada, que tende à produção

exacerbada de códigos e, conseqüentemente, à expulsão da alteridade. Com esse

posicionamento, uma determinada concepção da modernidade fica claramente demarcada:

justamente, o entendimento de estarmos sob a égide da razão universalizada,

caracterizando um momento de absoluta hegemonia dos códigos.

Apesar disso, pode-se encontrar, na paisagem contemporânea, discursos que

dificultam um enquadramento, que se volatilizam frente à fina malha dos códigos,

possibilitando uma expressão original, não normatizada.

Nesta dissertação, valoriza-se um desses discursos. Precisamente, o de Maura

Lopes Cançado, que dialoga diretamente com Jean Baudrillard e Michel Foucault. Ocupa

tão destacada posição teórica por promover em sua obra a construção de um sentido que

transpõe o caráter ficcional e que se localiza em uma dimensão filosófica do pensamento.

Não se trata, pois, de analisar a obra de Maura a partir de um sistema teórico dado, mas, ao

contrário, de fazê-la dialogar, a partir de sua própria voz, com as vozes dos autores

mencionados.

Em comum, esses três autores têm a postura com relação à modernidade: são todos,

cada um a seu modo, críticos desse tempo. Suas críticas são temas centrais dos capítulos

deste trabalho, mas convém antecipar algumas palavras sobre os aspectos importantes de

suas obras para esta dissertação.

De Baudrillard, uma importante interpretação da sociedade moderna. Para este

(10)

“negativos” como a morte, o feminino, a loucura, por exemplo, de suas constituições e que

se tornaram referência maior para a construção dos nossos discursos, valores, identidades,

ideais etc. Este sistema tem a capacidade de assimilar, processar e incorporar todos os

elementos que a ele se contraponham, com exceção dos elementos banidos, alijados de sua

construção e que, por isso mesmo, provocam sua interrogação.

Foucault enriquece este trabalho com sua minuciosa clareza. Ao estabelecer o

contexto sócio-histórico para o surgimento da psiquiatria, ou mesmo, ao refletir sobre as

causas históricas de nosso sistema disciplinar, desnuda a progressiva construção do sujeito

moderno em um indivíduo “dócil e útil”, orgulhoso de sua identidade.

Já, Maura1, comparece com sua própria história, seus relatos autobiográficos escritos enquanto interna de um hospício. Sua crítica tem como marca principal a

sensibilidade de perceber o desprezo sutil que é desferido pela sociedade normatizada

àqueles “desviantes”. Sua denúncia tem também o traço da coragem de se retratar com

todos os conflitos e mazelas advindos da inquietação por que passam algumas pessoas

diante de tão dissimulado sistema.

Há uns dez anos, tive o prazer de ler seu diário, Hospício é Deus (1979). Em outro trabalho (2003), articulei seus textos com a História da Loucura de Foucault (1972:2000), pois me pareceu que ilustrava bem a construção social da loucura, quer em sua forma

conceitual e de valor, quer em sua classificação punitiva atendendo à exclusão de pessoas

“perigosas”.

Maura aparece, neste contexto, como foco de resistência à razão dominante. Razão

esta que se concretiza nos discursos médicos, detentores do saber sobre a loucura,

construtores do limiar de julgamento entre a sanidade e a loucura.

1

(11)

Ouvir essa voz, que sempre esteve à margem da história oficial, pareceu-me

constituir um resgate da alteridade. Entender o outro por sua perspectiva, configurou-se na

forma mais legítima de conhecimento. E Maura justifica plenamente essa posição. Permite

uma revelação da loucura como possibilidade de ser.

Junto com os loucos, como nos mostra a autora, é a própria loucura que é afastada;

não pertence ao universo do sujeito moderno. É segregada em espaços determinados e,

juntamente com outras funções consideradas ameaçadoras dentro do processo de

positivação desse sujeito, como a morte, o feminino e o poético, objetos do Capítulo 2, é

banida da circulação da “vida”.

Ao escrever sobre sua vida e, conseqüentemente, ao provocar a discussão sobre a

loucura, Maura resgata uma dívida da humanidade contemporânea com a loucura. Atua no

sentido de restituir ao ser humano, devolver à sua totalidade, seu lado dito “negativo”.

Como, nessa perspectiva teórica, a modernidade aparece como o momento histórico

de apartação radical da loucura e de sua domesticação em doença mental, investigá-la,

assim como suas bases fundantes, tornou-se imperioso.

Foi aí que surgiu Baudrillard. Este sociólogo francês não poupa críticas à

modernidade. Da mesma forma que Maura e Foucault, o autor consegue, enraizado na

atualidade, estabelecer um espaço destacado para problematizá-la. Diante de sua teoria,

mais especificamente, diante de sua descrição do sistema hegemônico e de sua sofisticada

visão de ruptura a este sistema, vi-me compelida a tratar o tema por meio de outro viés.

Expressões como “dar voz a Maura”, “considerá-la dentro de sua diferença”,

“entender a voz do louco como resistência ao sistema de dominação”, por exemplo,

assumiram outros significados, fazendo-se necessária outra abordagem.

Parti, então, para uma leitura diferenciada da obra da Maura, destacada pela clareza

(12)

gerenciadores.

Maura, Baudrillard e Foucault, repito, têm em comum a crítica e a denúncia de seus

tempos. Cada qual a seu modo, recebem também a resposta a essa crítica, resposta dada

pela tentativa de cooptação do que expressaram.

Maura, por exemplo, escreveu seu diário dentro de um contexto sócio-político

propício a ouvir a voz de uma interna de hospício. Naquele momento, final da década de

50 e início da década de 60, o Brasil cantava sua entrada na modernidade.

As mudanças na cultura nacional em geral eram

interessantes, pois juntamente com a "jovem guarda", que

caracterizava uma versão nacional do rock, a bossa nova

renovava o pessimismo instalado nos velhos sambascanções,

provando a disposição da classe média nacional, apta a

enfocar a vida por outros prismas muito mais positivos. No

esporte, a conquista da Copa do Mundo pela primeira vez

revelava valores como Pelé, que simbolizava a jovialidade de

um país que, por fim, vivia um projeto democrático

partilhado. Outros esportistas se projetavam no tênis, no

boxe e na natação. Eram esses nomes nacionais que

metaforizavam um país remoçado pela promessa de

progresso econômico (Meihy, 1998, p. 4).

Esse período, que tanto favoreceu o surgimento de expressões populares

alternativas, como a publicação do diário da doméstica Carolina de Jesus (1960), Quarto de despejo, não foi capaz de dar continuidade ao alvoroço inicial. Segundo Meihy (1998), o sucesso de Carolina “fora superficial e externo à própria Carolina, que se viu

transformada em uma espécie de bonequinha negra de uma sociedade que aprendera a ser

flexível” (p. 5).

Maura também foi vítima desta “flexibilidade” da sociedade da época, dessa

(13)

vários contos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Seu sucesso, assim

como o de Carolina de Jesus, durou pouco tempo e, apesar de ter nascido rica, teve um fim

trágico.

Oliveira (2002) reproduz, em seu livro de crônicas, um trecho escrito pela jornalista

Margarida Autran (1978), publicado no jornal O Globo, que diz:

Há duas semanas, após uma insuportável dor de cabeça, a

escritora Maura Lopes Cançado acordou cega do olho

esquerdo, como pouco antes já havia acontecido com o

direito. Cega, presa num cubículo de um metro por um

metro, imundo e infestado de percevejos, abandonada pelos

amigos, esquecida pelos que a apontavam como a melhor

escritora de 68 por seu livro O sofredor do ver, ela é um ser humano em desespero. Física e psicologicamente doente,

desnutrida, olhos e dentes exigindo cuidados imediatos, sem

nenhum tratamento psiquiátrico, da Maura que surgiu como

revelação no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, em

58, resta apenas a desconcertante lucidez e a surpreendente

inteligência (pp. 65-66).

“A desconcertante lucidez e a surpreendente inteligência” é que fazem de Maura

uma importante voz no diálogo que aqui se propõe. Deixo, por ora, o terrível aspecto do

seu sofrimento descrito acima, para explorar o outro lado dessa dor, que é o da lúcida

crítica que faz à modernidade, na medida em que “sofre ao ver”. É preciso, apenas, ter o

cuidado de não transformá-la “em uma espécie de bonequinha louca”, absorvendo e cooptando sua fala, pela mais “moderna” forma de controle de um discurso: a dádiva sem

espaço para uma contradádiva.

Foucault (1971:2004) já nos dizia do controle que toda sociedade tem de sua

produção de discursos. Identificou, inclusive, algumas formas de controle que foram e

(14)

O discurso do louco, se examinado ao longo de uma linha do tempo, como o fez

Foucault (1972:2000) em sua História da Loucura, mostra-nos as possíveis formas de exclusão externa de um discurso. O adjetivo externo se justifica, dentro da didática de

Foucault (1971:2004), à medida que revela sistemas de exclusão exteriores ao discurso,

haja vista que o discurso, em conformidade com procedimentos internos, pode exercer seu

próprio controle. Pode-se ver, então, com essa análise, a “interdição”, a “separação”

seguida de “rejeição”, e a classificação, historicamente construída, do verdadeiro e do

falso, portanto, do crível, do objetivo, do natural e científico, determinados pela “vontade

de verdade”.

O discurso do louco, desde a Alta Idade Média não é, de fato, considerado. Já foi

aceito como um discurso revelador do futuro, como uma palavra que pela ingenuidade

recebia a graça de acessar verdades mais sutis, mais veladas, ou, em um outro extremo, era

negado, percebido como falso, errático, desconectado. De um ponto a outro, o que se tem é

a desconsideração deste discurso em sua singularidade e diferença radicais (Foucault,

1971:2004).

Na contemporaneidade, outras modalidades de exclusão se apresentam. É claro que

ainda percebemos o veto às palavras do louco e às de todos aqueles que constituem a

subalternidade e que de forma explícita ou dissimulada não têm um espaço real de

expressão, mas vemos também um curioso movimento social que nos faz crer que a essas

pessoas é concedida a fala.

Pode-se constatar o surgimento de vários testemunhos de pessoas que de alguma

forma foram socialmente subjugadas. Editoras, ONG’s, OSCIP's, jornalistas, enfim, todo

um aparato concreto está incentivando e apoiando a realização e divulgação da fala dessas

pessoas. São domésticas, presidiários, moradores de favelas violentas, adolescentes

(15)

À reflexão sobre este movimento, caracterizado por uma “dádiva”, uma concessão

de fala, impõe-se a pergunta emprestada de Gaiatri Spivak2: pode, de fato, o louco falar? Pergunta esta que pode ser reconduzida para: ocupa o louco uma posição de fala? Pode ele,

de fato, ser considerado em sua alteridade radical?

Muitas vezes, para continuar o processo de desqualificação do outro, é preciso

dar-lhe fala. Essa “dádiva” pode ser perpetuadora da posição de inferioridade do outro que tem

sua capacidade de resistência diminuída na apropriação de seu discurso.

Baudrillard (1976:1996), em sua descrição do sistema hegemônico atual, objeto do

Capítulo 1, destaca a antecipação de modelos, códigos, à realidade. Modelos esses que são

construídos com a exclusão de determinados elementos, justamente aqueles considerados

“negativos” e que não puderam, por esse motivo, pertencer à configuração artificial dos

códigos. Modelos que cooptam a resistência, logo após sua expressão, inserindo-a, como

mercadoria, na circulação do capital.

Contra a determinação dos códigos, ainda nos diz Baudrillard, é preciso restituir o

que foi originalmente desconsiderado. Às amarras da lei hegemônica, escapa apenas o que

lhe foge à captura, como a morte, a poesia e o feminino. Somente os elementos negativos,

ou seja, os que foram banidos, desde o Renascimento, da construção dos códigos.

Nesta dissertação, adiciono outro importante elemento à lista de Baudrillard: a

loucura. Adição esta que é justificada no Capítulo 2 e que já em Foucault (1972:2000)

aparece estreitamente ligada à morte, sugerindo sua inclusão neste grupo baudrillardiano.

A loucura torna-se, a partir do final do século XV, a protagonista do medo obsessivo da

humanidade. Substitui a morte, então, como um novo perigo vindo “do interior, e, por

assim dizer, de uma fenda secreta da terra; esta invasão, (...) coloca o outro mundo no

2

(16)

mesmo nível que este e de modo chão” (Foucault, 2000, p. 88).

A loucura se constitui, dessa forma, em um importante pilar de apoio para a

construção da reflexão desejada. Ela, que possui vários vieses para análise, é aqui

investigada sob um olhar político, dentro de uma ótica social.

Para tal, novas perguntas se fazem necessárias: o discurso do louco é louco? Até

que ponto seu discurso se constitui como resistência a um determinado código? E, se assim

é, que código é rompido com sua expressão?

Certamente que Maura não rompe com o código lingüístico. Ao contrário, foi

jornalista e escritora nas décadas de 50 e 60, tendo contos bastante elogiados no meio

literário. Por não romper com o código lingüístico e por se tratar da escrita autobiográfica

de uma louca, Maura nos presenteia com o texto que pode incitar a busca de elementos de

ruptura com o código médico, ao mesmo tempo em que nos ajuda na reflexão sobre a

hegemonia da racionalidade normatizada e a conseqüente expulsão da alteridade na

sociedade moderna.

Para expor de maneira mais clara o conteúdo das reflexões aqui propostas,

apresento-o da seguinte forma:

No primeiro capítulo, falo principalmente sobre a transparência dos códigos,

abordando conceitos essenciais da obra de Baudrillard como, por exemplo, a troca

simbólica, a morte, a lei e a regra. Se inserido em um desenho mais global, o da dissertação

como um todo, pode-se dizer que este capítulo inicial tem por objetivo familiarizar o leitor

com a abordagem baudrillardiana, que se constitui como referência para a construção dos

elementos que se contrapõem à positividade do sistema.

No segundo capítulo, aparecem os elementos que rompem com o código.

Elementos esses que não se restringem aos apontados por Baudrillard. À sua visão,

(17)

artificialidade da construção do sujeito moderno e a ausência de alteridade. Com este

capítulo, preparamo-nos para uma leitura particular dos textos de Maura, qual seja, uma

leitura que a posiciona diante da crítica à sociedade moderna.

No terceiro capítulo, porém com aspectos já antecipados nos dois primeiros,

apresento a obra de Maura Lopes Cançado. Mais particularmente, a tensão característica de

sua escrita, seus conflitos e posicionamentos diante do poderio médico que ganham, aqui,

uma conotação de quão subversivos se apresentam.

Neste ponto do presente trabalho, parto para algumas considerações finais, onde

aponto a relação que se estabelece entre as obras dos autores no que concerne ao

(18)

CAPÍTULO 1

a transparência dos códigos

Qual será o rótulo com o qual me obsequiará? (p. 42)3.

A pergunta acima foi feita por Maura Lopes Cançado (1979) a seu médico. Um

questionamento que poderia ter sido feito, também, ao diretor da instituição psiquiátrica

em que se encontrava, ou mesmo, à dona da pensão em que se hospedou, quando aos

dezessete anos tentou retomar seus estudos na cidade de Belo Horizonte.

Essa questão, certamente, não pode ser respondida. Ela nos desafia a uma

compreensão da sociedade moderna, ela nos compele à busca de “uma visão de nós

mesmos e do mundo”, a partir de outro ponto de vista, pois como nos diz Baudrillard

(1999:2002):

É só a partir de uma alteração radical de nosso ponto de vista

que podemos ter uma visão de nós mesmos e do mundo, não

para cair em um universo do não-sentido, mas para encontrar

a potência e a originalidade do mundo antes que tome força

de sentido e se torne simultaneamente o lugar de todos os

poderes (p. 22).

Lançado o desafio de Maura, parte-se para uma determinada descrição da

modernidade. Com a palavra, então, Jean Baudrillard.

Baudrillard é um crítico4 do seu tempo. Do nosso tempo. Um crítico severo e intolerante com a contemporaneidade. Francês, de família camponesa, designado a ser o

3

Todas as frases utilizadas como epígrafe, nesta dissertação, foram retiradas do livro da Maura Lopes Cançado (1979), Hospício é Deus.

4

(19)

filho intelectual, Baudrillard não se contentou com seu destino; foi muito além, criticando

fortemente a própria intelectualidade, a academia e todo sistema social, político e

econômico modernos.

Sua crítica tem um tom pesado. E, aí, pode-se dizer, o peso de sua denúncia está na

exata medida da leveza e assepsia do sistema hegemônico que se faz na ilusão da

transparência.

Em sua ótica, um ponto muito interessante: Baudrillard percebe elementos comuns,

poucos, por sinal, determinantes da qualidade de todos os tipos possíveis das atuais

relações e expressões sociais. Neste capítulo, que certamente não apresenta sua teoria por

completo, pretende-se destacar a base de seu pensamento, fundante de sua visão da

modernidade.

Destaco, aqui, intitulando o capítulo, a transparência dos códigos. Palavras que

merecem um maior detalhamento e que são cruciais para o entendimento da obra do nosso

autor. Nesse esclarecimento, outros conceitos, igualmente importantes, surgem, dando o

desenho do capítulo.

A cultura da transparência é aquela que antecipa todas as coisas. É aquela na qual

os modelos estão à frente da realidade, só sendo possível essa inversão graças à

dissociação (libertação) entre os signos, as coisas e as ações de suas idéias, referências,

conceitos, finalidades. Quando os signos, os valores, as coisas perdem seu lastro de

referência, passam a reproduzir-se indefinidamente, constituindo a grande era do simulacro

(Baudrillard, 1976:1996).

A transparência, conforme pensa Baudrillard, é uma moeda muito valiosa na

modernidade. Vivemos em um mundo que torna tudo visível, que exacerba a revelação, o

aparecimento, a confissão, a comunicação de tudo. Em contrapartida, à obscuridade é

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pessoas, assim como as sociedades, são julgadas sob esse crivo.

Aubenas e Benasayag (1999:2003), jornalistas franceses, com um apurado senso de

observação, esclarecem:

Se uma ditadura elimina em segredo seus opositores, o mais

alto grau de horror é atingido. Já se uma grande democracia,

como os Estados Unidos, entrega pizzas a seus condenados à

morte e depois difunde imagens de sua execução, em nome

da transparência, permanecemos no registro do suportável.

Quando um banqueiro britânico enriquece por meio da

corrupção, passa a encarnar a imagem do mal social. Serão

consideradas bem menos condenáveis, pelo contrário,

imposições econômicas do FMI enunciadas às claras durante

uma reunião com a imprensa, depois publicadas em relatório,

que, no entanto, condenarão um país à miséria (p. 65).

Citar esses dois autores ajuda-nos no entendimento da crítica que Baudrillard faz à

sociedade moderna. Para eles, a imprensa, importante braço de poder nas sociedades

contemporâneas, cria modelos identificatórios que servem de referência para os

enquadramentos dos cidadãos. Assim, uma dona de casa ou mesmo um estudante, por

exemplo, podem comparar e “ajustar” suas existências aos padrões que lhe foram

impostos.

Essa mesma idéia é encontrada na obra de Baudrillard, quando enfoca a

antecipação dos modelos à realidade. Na impossibilidade de conhecermos o real em sua

totalidade, criamos modelos que passam a ser investigados e conhecidos. Dessa forma,

numa grande confusão do modelo com o real, cremos, ilusoriamente, tudo conhecer.

Pode-se dizer, no entanto, que a realidade permanece opaca enquanto que transparentes são

apenas os modelos.

Esses modelos são entendidos, aqui, dentro de uma grande abrangência. Não se

(21)

modas, idéias, ideologias, referenciais morais, éticos e, mesmo, padronizações de

percepções e emoções. São as representações sociais, os códigos, como os denomina

Baudrillard.

Utilizando-se da metáfora do código genético e, portanto, de algo imóvel, fixo,

rígido, alheio à nossa vontade, que determina antecipadamente o ser que surgirá e que, se

reproduzido indefinadamente, gerará seres idênticos, como os que vemos fruto das

clonagens, Baudrillard apresenta sua visão da modernidade.

Os códigos são matrizes, são sistemas de pensamento, como esclarece Ondina

Pereira, “(...) que, em vias de positivação total, de dessimbolização, tendem a expulsar

todos os elementos negativos, aqueles cuja opacidade resiste aos comandos codificados de

transparência” (1990, p. 7).

Para Baudrillard, na atualidade5, signos esvaziados, descomprometidos de seus sentidos originais, vão sendo reproduzidos indefinidamente. Perdemos o vínculo com

nossas histórias pessoais, nossa origem, que fornecia amparo, continente para nossas ações,

conflitos e sofrimentos.

Nas palavras do autor, com uma certa insistência: “acabam os referenciais de

produção, de significação, de afeto, de substância, de história, toda essa equivalência a

conteúdos ‘reais’ que ainda lastreavam o signo com uma espécie de carga útil, de

gravidade – sua forma de equivalente representativo. É o outro estágio do valor que

prevalece sobre ele, o da relatividade total, da comutação geral, combinatória e simulação”

(1976:1996, p. 16).

Os códigos vão sendo, assim, reproduzidos ao infinito, sem que seja possível

5

(22)

rastrear o vínculo com sua origem.

Denuncia, também, Baudrillard, que os códigos comutam entre si, caracterizando

sua indeterminação. Os referenciais já não têm realidade antagônica como, por exemplo,

direita e esquerda na política. Não se constata mais mudanças fundamentais de condutas

políticas e econômicas com a assunção de um governo opositor ao anterior.

Novamente com Baudrillard: “É essa indeterminação de termos, essa neutralização de uma oposição dialética em uma pura e simples alternância estrutural, que produz esse efeito tão característico de incerteza sobre a realidade da crise” (1976:1996, p. 47, destaque do autor).

Dessa forma, não se tem mais certeza sobre a procedência dos acontecimentos.

Uma explosão de bombas em uma estação de metrô, ou em um show popular, por

exemplo, pode tanto ser de autoria de um grupo radical terrorista quanto de execução de

um grupo da situação, com pretensões a responsabilizar o grupo adversário. Direita e

esquerda, na política, verdadeiro e falso, na informação, não se opõem mais.

Independentemente de seus atores, reinam os códigos.

Baudrillard (1976:1996) remonta à renascença para descrever o processo de

construção do pensamento moderno, na verdade, a irrupção dos códigos, e expressar sua

leitura da modernidade; um caminho visto sob o mote da simulação, denominado por ele

de “espiral do simulacro”. Este caminho, este viés de análise, mostra-se extremamente

interessante e pertinente, quando constatamos que, para o autor, “os simulacros não são

apenas jogos de signos, eles implicam relações sociais e um poder social” (p. 66).

Inicia sua descrição do código pelo viés econômico, por considerar ser este o

determinante histórico dos últimos séculos.

Segundo o autor, tivemos, desde o momento que seleciona para marco inicial – a

(23)

simulacros6 descritas por ele.

A primeira delas, a contrafação, que opera sobre a lei natural do valor, foi instituída com o declínio do feudalismo, prolongando-se até a revolução industrial, momento

histórico no qual se inicia a segunda ordem de simulacro.

Na primeira fase, então, os signos não mais obedecem a uma reciprocidade entre

castas, clãs ou pessoas, compromisso que os tornavam mais claros, restritos e “seguros”.

Em vez de comprometidos, tornaram-se “livres e emancipados”, em conformidade com a

principal precação ideológica da burguesia: liberdade e emancipação. Assim como os

signos, as relações também iniciaram seu processo de descompromisso e perda de

referenciais de significação e história. Inaugura-se, assim, o falso, o artificial, o que copia o

natural; natural este tido como referência maior do período.

A cópia instaura-se como valor. Com o domínio de novos materiais, como o

estuque e a argamassa, por exemplo, os objetos passam a ser modelados. E, de certa forma,

até “melhorados”, pois os objetos manufaturados duravam mais que os objetos naturais.

Na produção, com a era industrial, um acréscimo: não apenas se copia o “real”, mas esta cópia é reproduzida em série. Esta nova forma de produção estabelece a lógica de

mercado como referência e, com ela, as reproduções circulam em larga escala e em menor

tempo. Com a máquina, instaura-se a equivalência geral. Equivalência de objetos, que se

estende para a equivalência de valores, de sentidos e, claro, das relações entre os seres

humanos. Esta fase logo é sucedida7 pela terceira ordem, a da era pós-industrial, no momento em que a produção serial dá lugar à geração por modelos.

Entramos, assim, na terceira ordem de simulacro, a simulação. Nesta fase, o eixo

6

Baudrillard, em seu livro A Transparência do Mal: Ensaio sobre os Fenômenos Extremos (1990:2004), atualiza sua “espiral de simulacros”, apontando uma quarta ordem de simulacro, onde opera a lei fractal do valor. Nessa ordem, não há mais referências, “o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios (...) por pura contigüidade” (p. 11).

7

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referencial se transfere para a criação de modelos positivados, que tiveram sua fase

embrionária na modelagem do estuque. Com um grau a mais de sofisticação, esses

modelos, agora, produzem o “real”.

A “espiral dos simulacros”, na verdade, indica o progressivo caminho da instituição

da lei do valor, da ordem de produção dos significados e sentidos como mercadoria. Indica

a escalada que atribui e molda valores a fim de eternizar, contrariamente à ordem natural,

as coisas e os seres. E a “ordem do valor”, observa Baudrillard (1976:1996), faz-se nos

escombros da morte, isto é, aparece na medida em que se extingue o espaço onde o ritual é

a expressão natural de significação, testemunhado pela comunidade, em suas vivências

naturais de perda, efemeridade e morte. Na progressiva retirada desse espaço vivo, o

simbólico deixa de atender a sua função originária, onde um caráter resolutivo de fato

acontece.

E o simbólico, é preciso deixar claro:

(...) não é um conceito, nem uma instância ou categoria e

tampouco uma “estrutura”. É um ato de troca e uma relação social que leva o real ao fim, que resolve o real e, ao mesmo tempo, a oposição entre o real e o imaginário (Baudrillard, p.

181, 1976:1996, grifo do autor).

É uma forma de relação social baseada na dádiva e contradádiva, uma equivalência

absoluta que, sem determinação prévia, inscreve-se no tempo presente de seu

acontecimento. Uma troca que não deixa restos a contabilizar (Baudrillard, 1976:1996).

Uma troca que não se baseia na construção de polaridades disjuntivas, como o faz o modo

de pensar moderno. Uma forma de relação na qual a morte e a vida não mais se excluem.

A morte, da mesma forma que outros elementos ditos “negativos” como o

feminino, o poético e a loucura, objetos de análise no Capítulo 2, foi banida dos construtos

(25)

sociedade e dos sujeitos, obsedando-os. É a “lei fundamental da obrigação simbólica”,

como denomina Baudrillard, mostrando-nos que a morte separada, extirpada,

obrigatoriamente gera o equivalente de uma vida morta.

Seu desaparecimento do plano coletivo é o indicativo de sua internalização. Se

antes era trocada nas festas, cerimônias e rituais coletivos, agora é solucionada em um luto

individual. O sujeito moderno fica, dessa forma, absolutamente solitário em sua dor.

Internalizar sua alma é, principalmente, o que lhe dá a ilusão de independência, autonomia

e tudo poder.

Na base do esvaziamento dos signos e perdas de referenciais, na base da linearidade

da construção dos significados e sentidos, portanto, da construção de valor, está a

supressão da morte, da finitude, da reversão, do cíclico. Daí em diante, acompanhando a

escalada de simulacros, a morte foi sub-valorada em detrimento de uma super-valorização

da vida.

É na suspensão entre uma vida e seu próprio fim, quer dizer,

na produção de uma temporalidade literalmente fantástica e

artificial (porque toda vida já está lá a cada instante, com sua

própria morte, isto é, sua finalidade realizada no instante

mesmo), é nesse espaço esquartejado que se instalam todas as

instâncias de repressão e de controle (Baudrillard,

1976:1996, p. 177).

“É na suspensão entre uma vida e seu próprio fim”, começa Baudrillard na citação

acima, que se cria a vacância necessária para a instalação dos dispositivos de controle.

Podemos extrapolar sua frase e entender que é na suspensão de qualquer relação, de

qualquer poder, com seu próprio fim, quer dizer, é na extinção da reversibilidade, da

transmutação de um estado a outro, que o controle se estabelece. E o mais importante a

destacar é que essa “suspensão” é absolutamente artificial, “porque toda vida já está lá a

(26)

Vivemos, então, sob uma lei artificial. Vivemos, como já dito, sob a hegemonia dos

códigos, de forma desencantada, já que na mais extrema transparência, de forma

dessimbolizada, já que sem a reversibilidade entre vida e morte.

Ocorre que, ao banirmos a morte, afastamos a vida. Afastamos a vida na sua

concepção e possibilidade de expressão plena, assunção plena de todos os seus possíveis.

Afastamos também outros elementos, como o sensível, conforme nos alerta

Angelina Vargas (2005). Em um importante trabalho sobre o resgate do sensível como

linguagem confiável e legítima para nossa relação com o mundo e produção de

conhecimento científico e entendendo, junto com Baudrillard, que é justamente na

ausência dessa qualidade, ou melhor, na super-valorização da racionalidade, que

“perdemos a noção do efêmero” e, portanto, da própria vida e da própria morte, a autora

nos diz:

Depois de tantos séculos, vivendo sem atenção ao sensível,

portanto sem corpo, constatamos com facilidade, nos escritos

de Baudrillard (1976:1996), os efeitos dessa desatenção. Sem

o sujeito da percepção, temos o sujeito da simulação, o

sujeito da dissuasão, o sujeito da reprodução, o sujeito do

simulacro. Sem um corpo sensível, é fácil perdemos a noção do efêmero. Na ausência da percepção da sensação,

não somos plenamente vivos. Não nos sentindo vivos, não

pertencemos mais à categoria de mortais. Não pertencendo

mais à categoria dos mortais, portamo-nos como deuses

(2005, p. 49, destaque da autora).

Portar-se como um deus é o grande prazer do sujeito moderno. Construir-se

absoluto pelo afastamento dos elementos negativos, como a própria morte, é sua grande

ilusão. Ilusão esta orquestrada pelos códigos. E, assim, esse sujeito positivado assume-se

como original, criativo, autêntico, autônomo, responsável único por sua própria vida. Já

(27)

Mesmo.

Essa cisão entre a vida e a morte funda todas as outras disjunções observadas no

mundo moderno, como a cisão sujeito/objeto tão característica da atualidade. Não se trata

simplesmente de uma separação, mas, sim, novamente, de uma distinção valorativa. A vida

ocupa um papel diferenciado dentro da relação morte/vida, assim como o sujeito fica em

uma posição superior diante do objeto, que se encontra, dentro dessa concepção, passivo, a

espera de ser conhecido e dominado pelo sujeito.

Baudrillard, desnudando o posicionamento do sujeito moderno frente ao mundo,

põe em cheque o sujeito do humanismo, que tudo pode conhecer e que se relaciona com

um objeto (o mundo) passivo que fica à sua espera e disposição. Revê, também, o

enquadramento do mundo nos “modelos representativos e explicativos”. Para esse

pensador, o objeto escapa a esse revestimento, mas, não por uma provável falha de

instrumental ou mesmo por uma imperfeição do modelo, mas por circunscrever-se em uma

regra veiculada secretamente e que, portanto, é inapreensível.

Nesse ponto, quer dizer, na reflexão sobre a construção do sujeito moderno, faz-se

importante a contribuição de Foucault. Este brilhante pensador descreveu, como ninguém,

as diversas formas de exercício de poder e dominação, presentes na história da

humanidade, utilizando-se de algumas formações históricas como os sistemas punitivos e

os processos e mecanismos de objetivação e subjetivação do indivíduo moderno, isto é, os

mecanismos disciplinares que constituíram o indivíduo moderno em objeto dócil e útil, ao

mesmo tempo que em sujeito preso à identidade que lhe é atribuída como própria.

Particularmente, dos processos e mecanismos de objetivação descritos por Foucault

(1975:2005) no clássico Vigiar e Punir, interessa para essa dissertação a constituição da individualidade moderna. Uma individualidade que confere um sentimento de ser único e

(28)

indivíduo moderno tem o status de possuir uma identidade, de não ser um “elemento anônimo de uma massa amorfa”. Crê-se, assim, singular. Uma singularidade, porém,

ilusória, celular, pois que produto de atribuição espacial específica, produto, portanto, de

seu endereço residencial, de seu local de trabalho, de seus produtos preferidos de consumo,

de seu lixo etc.

Uma singularidade, também, absolutamente diferente da singularidade observada

na alteridade radical, tema central das Considerações Finais.

Dos processos e mecanismos de subjetivação do indivíduo moderno, Foucault

(1976:1985) destaca a impulsão à confissão. Confissão que fica mais bem retratada como

tecnologia da confissão. O sujeito moderno é compelido a falar a “verdade” que só pode

aparecer se precedida de um exame de consciência. Sua revelação, no entanto, não se deve

restringir a seus atos, mas, também, à descrição de seus pensamentos, intenções, prazeres,

sonhos. E, aqui, voltamos ao tema da transparência, observando que incitar a exposição da

“verdade” é um ponto importante e facilitador das políticas de dominação e controle.

Ao sujeito moderno cabe, então, mostrar-se por dentro, revelar minuciosamente seu

interior. Essa revelação, que inicialmente era feita no âmbito religioso, logo sai dos

confessionários das igrejas, e passa para as salas de aula, para as prisões, para os

consultórios médicos e psicoterapêuticos.

Com relação especificamente à confissão dos prazeres sexuais, mas com um

“mecanismo” que pode ser estendido para outras esferas, Fonseca (2003), referindo-se à

teoria foucaultiana, aponta:

É a transferência da confissão sexual para a matriz do poder

que suscita a adequação das práticas confessionais a uma

forma de discurso já institucionalizado naquele momento: o

discurso científico. Tal adequação será possível graças à

(29)

discursividade científica, reunidas sob a matriz comum de

modalidades produtoras de verdades, fazendo com que os

ritos confessionais comecem a funcionar segundo modelos

científicos (p. 96).

As verdades produzidas por modelos, ou por discursos, para usarmos um termo

mais próximo de Foucault, não são tão inocentes ou neutras como se fazia crer.

O sujeito moderno, na concepção de Foucault, atende a um exercício de poder que

está intimamente ligado a uma produção de saber. Da mesma forma, pode-se dizer, dentro

da concepção baudrillardiana8, que o sujeito moderno atende a um referencial de modelos que está estreitamente ligado aos códigos, às leis hegemônicas. Das duas visões, uma

conclusão: o sujeito moderno, ou melhor, sua constituição, está presa a relações de

produção e de significação que correspondem às expectativas de acumulação e gestão útil

dos indivíduos.

Retomando o posicionamento de Baudrillard sobre a disjunção moderna

sujeito/objeto, vê-se claramente que não caberiam essas posições, muito menos a de um

sujeito “superior” ao objeto, que pode controlá-lo e conhecê-lo plenamente. Somos todos,

como diz o autor, “parceiros de um jogo”, submetidos à mesma regra inalcançável. Se

parceiros, encontramo-nos em uma relação dual, sem estarmos individualizados. Nessa

qualidade de interação impera a paridade, muito diferente da igualdade, pois a igualdade

pressuporia uma separação, uma individualização.

O objeto foge aos mecanismos de análise do sujeito, “desafiando o sujeito a

abandonar o seu universo regulado por leis (universais e transcendentes), para entrar em

um universo das regras (arbitrárias e imanentes), onde a polaridade sujeito/objeto dá lugar

a uma relação dual, antagonista, feita de signos secretos que circulam entre os parceiros do

8

(30)

jogo” (Pereira, 1990, p. 8).

É extremamente interessante a caracterização e definição dos dois universos

apontados na citação acima: o das leis e o das regras.

As leis, como nos diz Baudrillard (1979:2004), são universais e transcendentes.

Surgem dos processos de produção de valor e sentido, seguindo, conseqüentemente,

encadeamentos costurados por relações lineares e sucessivas de causa e efeito. Se assim,

nutrem-se de signos da ordem da representação e, portanto, sujeitos à interpretação e

deciframento. “Ela [referindo-se à lei no singular] é um texto que cai sob o peso do sentido e da referência” (p. 150). Se um texto, palavra destacada pelo próprio autor, é uma

narrativa, um discurso e, portanto, produtora de outros textos, referenciais e “verdades”.

Justamente por produzir essas “verdades” e por pretender-se elevada ao status de “instância legal”, a lei estabelece o permitido e o proibido, possibilitando a transgressão.

Ou, mesmo, possibilitando ilusoriamente a transgressão, pois como aponta o próprio autor,

normalmente estamos sob a hegemonia da lei, mesmo quando tentamos transgredi-la.

No universo das regras, não. Não há espaço para a transgressão, pois não há a

distinção entre o latente e o manifesto, não tendo, assim, uma fronteira a ser transpassada

entre as duas condições. Não faz sentido, então, conjecturar uma transgressão da regra.

Simplesmente, na ausência de sua observância, abandona-se o jogo. E, ao sair de um

universo, entra-se no outro.

No universo das regras tem-se o “encadeamento imanente de signos arbitrários”

(Baudrillard, 1979:2004, p. 150), tem-se o seqüenciamento desprovido de finalidade e

sentido universal, tem-se o seqüenciamento ritualístico que encerra sabedoria pontual e

fechada a determinado cerimonial.

Os signos, nesta qualidade de relação, não se prestam à interpretação, mas, como já

(31)

Entrar na regra, portanto, não significa exercer uma liberdade, valor este que se

configura como grande ideal da modernidade. Entrar na regra, sim, significa entrar em um

ritual de obrigação. Uma obrigação, porém, que se inscreve na artimanha do desafio e que,

apesar de não explicitada, compele o outro a uma resposta. E, assim, a cada resposta dada,

mais um desafio é lançado, correndo-se sempre, nesse seqüenciamento, o risco do

acolhimento, ou não, do desafio ofertado.

O trecho abaixo é bastante esclarecedor sobre o entendimento dessas duas formas

de interação.

A Lei descreve um sistema de sentido e de valor virtualmente

universal. Ela visa a um reconhecimento objetivo. Na base

dessa transcendência que a fundamenta, constitui instância de

totalização do real; todas as transgressões e revoluções abrem

caminho à universalização da lei ... A Regra, por sua vez, é

imanente a um sistema restrito, limitado; ela o descreve sem

transcendê-lo e, no interior desse sistema, é imutável. Não

visa ao universal nem tampouco instaura uma cisão interna. É

a transcendência da lei que embasa a irreversibilidade do

sentido e do valor. É a imanência da Regra, sua

arbitrariedade e sua circunscrição que acarretam, na sua

própria esfera, a reversibilidade do sentido e a reversão da

Lei (Baudrillard, 1979:2004, p. 153).

O universo das regras é o universo da sedução que se contrapõe ao da produção.

No sentido original dessas palavras, aponta Baudrillard (1977:1984), encontramos esse

antagonismo.

Pro-ducere significa tornar visível, fazer aparecer e comparecer. É o mundo-máquina da transparência, cujas engrenagens são os códigos. “Produzir é materializar pela

força o que pertence a outra ordem − a ordem do secreto e da sedução”, começa nos

(32)

seu caminho. “A sedução é, em toda parte e sempre, o que se opõe à produção: a sedução

retira qualquer coisa da ordem do visível” (pp. 31-32).

Na sedução, portanto, temos o oculto, o segredo, a opacidade, o insolúvel que opera

numa ordem circular, reversível, em oposição à linearidade e irreversibilidade da crescente

acumulação da produção. Acumulação de sentido, de valor, de capital. Acumulação

artificial, pois que fere a ordem natural da reversão, da morte e do cíclico.

No modus da produção, então, acrescenta-se uma dimensão à ordem do real, faz-se aparecer e comparecer. Na sedução, ao contrário, retira-se uma dimensão dessa ordem.

Voltando à citação de Baudrillard em que diz ser no “espaço esquartejado”, ou seja, na

separação entre uma vida e seu fim, que se “instalam todas as instâncias de repressão e de

controle”, podemos acrescentar que é na ordem da produção (justamente o mecanismo que

extirpa a morte e a reversibilidade), com a fabricação do hiper-real, pois que possui mais

elementos que o próprio real, com a dádiva de tudo (todas as informações, todos os

detalhes, todas as nuances – a transparência absoluta), não restando, conseqüentemente,

nada para ser trocado, que essas instâncias de repressão e controle encontram seu melhor

terreno.

Baudrillard usa o termo sedução com uma conceituação particular. A sedução,

como ocorre normalmente, não deve ser confundida com a sexualidade. “Trata-se de um

processo circular, reversível, de desafio, de tramóia e de morte. Ao contrário, o sexual é a

sua forma reduzida, circunscrita em termos energéticos de desejo” (1977:1984, p. 73).

O universo das leis é o mundo da produção. Na lei, o sujeito é regente. Controla e

domina o objeto. Na regra, simplesmente, essas posições não fazem sentido. Sujeito e

objeto (se é que se pode falar assim) não estão separados, mas participam conjuntamente

de uma relação dual e agonística.

(33)

intolerância com a modernidade. Entrar em contato com sua teoria é por demais

angustiante. Resistimos a perder nossa “verdade”, tão bem consolidada e comungada. Essa

angústia, no entanto, se considerarmos a concepção trágica de Clément Rosset

(1988:2002), pode ser inevitável. Segundo este autor:

o conhecimento constitui para o homem uma fatalidade e

uma espécie de maldição, (...) sendo ao mesmo tempo

inevitável (impossível ignorar inteiramente o que se sabe) e

inadmissível (impossível igualmente admiti-lo inteiramente),

ele condena o homem, isto é, o ser que se aventurou no

reconhecimento de uma verdade à qual é incapaz de fazer

frente (...) a uma sorte contraditória e trágica (p. 22).

Diante da angústia de nos defrontarmos com a realidade, ou com a incerteza,

preferimos uma “verdade aparentemente segura”, cujo conteúdo não se coloca em questão.

De uma certeza, “pede-se apenas que seja certa”, diz Rosset (1988:2002, p. 38).

Assim, contrapondo-se ao Baudrillard-sedução, aparece o Baudrillard-produção,

promovendo um grande desconforto. O desconforto de tanto desnudamento, de tanta

revelação. Uma revelação passível de captura, de cooptação. Para que sua teoria não seja

um buraco negro que acabe por tragá-lo também, questiona-se de várias formas a mesma

coisa: é possível romper com os códigos? É possível sair do universo das leis? Podemos

(34)

CAPÍTULO 2

o lado oculto da lua

Nós, mulheres soltas, que rimos doidas

por trás das grades – em excesso de liberdade (p. 78).

Este capítulo já começa com uma grande responsabilidade: responder às perguntas

propostas no final do capítulo anterior. Por isso mesmo, um lindo e apropriado trecho da

Maura, numa rara exaltação à “liberdade” da loucura, ou, quem sabe, à “liberdade” de estar

por trás de um código que “permite muito mais que outros”, ou, finalmente, um hino à

“liberdade” de mesmo estando enquadrada em um código, “por trás das grades”, “sentir-se

solta e rir doida”.

Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. Ou não choramos, como suprema força ― quando o coração se apequena a uma lembrança no mais guardado do ser. Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades ― em excesso de liberdade (p. 78).

Para a resposta necessária, faz-se importante resgatar outros pontos da teoria de

Baudrillard. Esse resgate, no entanto, aparece apenas como ponto inicial para essa reflexão,

sendo importante a ajuda de autores como Foucault, Schopenhauer, Heidegger, entre

outros grandes nomes. Autores esses que dialogam com Maura Lopes Cançado, cuja obra é

apresentada no Capítulo 3.

(35)

conhecimento, capaz de dominar o mundo (o objeto), acabou por instaurar um sistema com

pretensões a uma positividade absoluta, cuja hegemonia se fez com a expulsão de todos os

elementos considerados negativos, isto é, aqueles que não se integram ao modelo criado

pelo sujeito. Dessa forma, criou-se um mundo paralelo, mais “real” que o real, ao qual

nosso autor denomina hiper-realidade ou simulacro. Nesse mundo, os modelos antecedem

à realidade, o que cria a ilusão de que vivemos na transparência absoluta, isto é, podemos

tudo conhecer.

Avançando em sua denúncia do código, Baudrillard (2002:2003) faz a distinção

entre um sistema de dominação e outro, hegemônico, nosso sistema atual. Não vivemos

mais, segundo o autor, em um sistema de dominação, contra o qual esperava-se uma

revolução comandada por agentes de ação social (sujeitos históricos), indivíduos, grupos

ou classes sociais que, localizados em contextos históricos, exprimem suas qualidades, na

liderança de lutas para transformações mais amplas ou mesmo de ação em esferas

cotidianas. Não podemos mais ter a esperança de uma revolução, pois essas ações, hoje,

alimentam ainda mais o sistema.

Tudo o que se insere no espaço-tempo desfinalizado do

código [diz Baudrillard] ou tenta nele intervir é

desconectado de suas próprias finalidades, desintegrado e

absorvido – trata-se do efeito bem conhecido de assimilação,

de manipulação, de ciclagem e reciclagem em todos os

níveis (1976:1996, p. 10).

Tudo que se opõe ao sistema hegemônico – ao código – toda a crítica ou a

desconstrução de seus elementos constituintes, não é suficiente para alterá-lo. Ou pior:

tudo que vem de fora acaba virando alimento para esse mesmo sistema. É o caso de muitos

(36)

“liberdade”, que era uma das grandes motivações do movimento, acabou virando “uma

calça velha, azul e desbotada, que se pode usar do jeito que quiser”; jingle publicitário de uma empresa que produzia e comercializava calças jeans. Só há então uma possibilidade de quebra da hegemonia: uma reversão de dentro para fora.

A expressão “reverter de dentro para fora”, mais que um sentido, indica uma forma,

uma anomalia na ordem preponderante (hegemônica), que pode provocar a implosão do

sistema e sua conseqüente reversão para o mundo das regras, para o modo da sedução, para

o modo simbólico.

Contra os códigos, somente os elementos ditos negativos, somente a morte, o

feminino e a poesia (como aponta Baudrillard), da mesma forma que a loucura (como

acrescento nesta dissertação), elementos que não podem ser capturados por esses códigos,

pois que foram suprimidos da construção destes.

A única solução, conforme nos diz Baudrillard (1976:1996), é voltar contra o

sistema o princípio mesmo de seu poder: a impossibilidade de resposta e de réplica. Uma

impossibilidade estabelecida dentro do seu modo de operação, isto é, uma impossibilidade

de resposta no mundo das leis, na esfera da produção. Diante de tal impedimento, mas

completamente seduzido pelo desafio, seduzido por responder, o sistema tropeça em si

mesmo, em sua linearidade artificial, e se vê obrigado a “morrer” e a “nascer” em outra

qualidade de relação que possibilite a integração dos elementos antes usurpados.

Se liberado da lei, cai-se na obrigatoriedade da regra e, portanto, no modo finito,

mortal da sedução. É preciso, então, desafiar o sistema “mediante uma dádiva à qual ele não possa responder exceto com sua própria morte e sua própria aniquilação” (p. 51, destaque do autor).

Desafiar o sistema, no entanto, ainda parece ser uma ação, uma atuação intencional,

(37)

assim só estaria contribuindo para reforçar a lei.

Desafiar o sistema, então, é preciso esclarecer, é instaurar surpreendentemente uma

espécie de relação que contemple a inteireza de seus envolvidos. Uma relação na qual os

elementos se manifestem com todas as suas qualidades, que já não se apresentam como

positivas ou negativas, mas, que, simplesmente, comparecem; um modo de interação que

possibilite a reversibilidade, pois que há morte na vida, da mesma forma que há vida na

morte. Uma relação que circule sob as palavras, sob o sentido artificialmente construído,

sob o significado passível de captura e resposta; uma relação, enfim, fundamentada em

uma regra imediata e em sua secreta observância.

O desafio presentifica, dessa forma, uma obrigação de lances e sobrelances, de

dádivas e contradádivas, de trocas simbólicas. Assim o faz secretamente, sem que seja

necessário ser externado, o que, aliás, se acontece, transforma o desafio e o segredo em

outra coisa; sai do modo da sedução e entra no significado, na exposição, no modo da

produção.

Segundo Baudrillard, apesar de normalmente as formas sociais de relação e

interação se darem na esfera das leis, ou seja, se darem no modo linear de acumulação

infinita, elas sempre procuram seu fim. “Algo no fundo de todo o sistema de produção

resiste ao infinito da produção – sem o que já estaríamos todos soterrados sob isso”, nos

diz o autor (1977:1984, p. 64). Algo resiste à acumulação infinita, à artificialidade da

ausência da morte.

Na lei, todos os espaços, todos os interstícios são preenchidos, na tentativa de se

eliminar a regra. Ocorre que o preenchimento de tudo impede o vazio e a ausência do vazio

(38)

como diz Lao Tsé (~650 a.C.:2001)9, em seu clássico taoísta Tao Te King: O vaso é feito de argila,

mas é o vazio que o torna útil”.

Assim, pode-se afirmar, o vazio permite a troca, a circulação (Baudrillard,

1979:2004).

E é esse movimento circular, qual seja, a imposição da finitude, da morte, a

imposição do real, que se constitui na verdadeira ameaça ao modo de produção. Uma

ameaça que pode, em um primeiro momento, parecer despropositada, haja vista a

hegemonia dos códigos. Porém, lembra-nos Baudrillard (1977:1984), “se injetarmos uma

mínima dose de reversibilidade em nossos dispositivos econômicos, políticos,

institucionais, sexuais, tudo ruirá imediatamente” (p. 73), tamanha a fragilidade destes

sistemas, na justa medida da suntuosa, porém, falaciosa, construção que os ergueu, pois

que alicerçada sobre uma artificialidade.

A morte, bem como outros elementos, pode se constituir em lances preciosos que

obriguem à revisão dos códigos.

Se “somos todos parceiros de um jogo”, retomo a frase de Baudrillard, somos

cúmplices no atendimento à regra que se estabelece e sela nossa interação paritária. Uma

interação que não comporta posições de superior ou inferior. “Assim como não há ativo

nem passivo na sedução, não há sujeito nem objeto, nem interior ou exterior; ela atua nas

duas vertentes, e ninguém as limita ou separa” (1979:2004, p. 92).

Estar nesse modo de relação, atuar na regra, é subverter o discurso universalizante

da razão moderna. Acreditando que a separação entre vida e morte é a separação fundante

9

(39)

de todas as outras da modernidade, a morte se constitui, para Baudrillard, em elemento por

excelência desafiador desse discurso universalizante, desse discurso “verdadeiro” dos

códigos. Com a morte, apresenta-se a reversibilidade simbólica que se estabelece aquém do

valor. Para o autor, como já mencionado, o feminino e a poesia também se furtam à

captura pelos códigos, não se filiam à ordem da produção de significado. O feminino, que

na obra de Baudrillard aparece com uma conceituação particular, que não se reduz à

oposição do masculino, subverte a razão sexual, e a poesia, tal qual a encontrada nos

anagramas de Saussure, constitui-se em uma abordagem, um princípio de funcionamento,

antagônico e externo à economia política da linguagem.

Nesta dissertação, outro elemento é apontado como desafiador para os códigos: a

loucura. Foi e é alijada da construção do sujeito moderno, bem como de outros pilares da

modernidade e, justamente por isso, não é passível de captura e cooptação pela lei

hegemônica, pois que obriga à revisão dos códigos. Muitos podem ser esses elementos,

mas é necessário, primeiramente, tecer algumas considerações gerais.

Quando dizemos que esses elementos foram alijados da construção do sujeito

moderno, melhor seria dizer que, ao longo desse processo, algo deles foi subtraído, foi

desprestigiado, desconsiderado. Os construtos modernos foram erigidos com a larga

predominância de um determinado viés, o olhar objetivo-científico da modernidade.

Ocorre que um saber dificilmente se constitui em um bloco maciço e homogêneo

sobre o qual se possa ter um único olhar. Em torno de uma verdade transparente, por mais

coerente e fechada que seja, gravitam sempre “formas mais ou menos obscuras da

consciência prática, mitológica ou moral”, lembra-nos Foucault (1972:2000, p. 165). São

formas que impõem uma relação com o olhar hegemônico e, nessa imposição, desafiam o

código vigente a uma reversão.

(40)

de perceber exatamente que “porção” de suas totalidades não é passível de captura e o que,

de fato, pode romper com os códigos que, dentro dessa análise, já começam a ser

especificados.

A morte, como já apresentado no Capítulo 1, foi separada, banida da vida, não

mais circula simbolicamente no espaço social. Essa separação se instala no momento em

que se institui a lei do valor10, com a sobrevaloração da vida. “Estar morto hoje [diz-nos Baudrillard com o melhor de sua ironia] é uma anomalia inconcebível (...). A morte é uma

delinqüência, um desvio incurável” (1976:1996, p. 173).

Se banida, a morte vira um fantasma a obsedar a vida. Um fantasma gerado pelo

próprio princípio da obrigação simbólica que, como nos mostra Baudrillard (1976:1996),

opera em todos os sentidos, transformando nossa vida, essa vida positivada-separada, em

uma morte equivalente. É o “preço” que a vida paga por querer-se viva com a exclusão da

morte.

Excluir um termo da equação é a origem da positivação da sociedade moderna, é

seu padrão de funcionamento. Dessa forma, construímos nossa “realidade”. É o código

disjuntivo que separa vida e morte, feminino e masculino, homem e natureza, corpo e

alma, e tantos outros termos. É com o estabelecimento dessa linha divisória que se

constituem “reais” os lados demarcados. Assim como na disjunção vida e morte, o

masculino se constitui enquanto negação do feminino, estabelecendo-se como termo de

maior valor sobre um desprestígio do outro. Da mesma forma, o conceito de homem emana

do estabelecimento de uma linha divisória entre ele e a natureza. Separação esta que, como

as demais, é acompanhada da positivação do primeiro termo sobre o segundo. É sempre o

mesmo modus operandi que muda a qualidade ambivalente de uma constituição una para o estabelecimento de extremidades separadas que não mais se trocam.

10

(41)

Lao Tsé (~650 a.C.:2001), mais uma vez, com sua incrível capacidade de síntese,

aponta em um trecho de sua obra única, o já citado Tao Te King, outras possibilidades de estabelecimento de relações entre dois elementos que não o exclusivo antagonismo do

ocidente moderno. Recita o autor:

Ser e Não-ser engendram-se mutuamente.

Fácil e difícil completam-se.

Longo e curto delimitam-se.

Alto e baixo regulam-se.

Tom e som harmonizam-se.

Antes e depois sucedem-se.

Com o simbólico, “a implicação dos seres e das coisas não é a da diferença

estrutural. (...) Não são diferenciados dentro da mesma escala de valores; são solidários

numa ordem imutável, num ciclo reversível como o do dia e da noite”. Com esta

afirmação, Baudrillard (1990:2004, p. 134) aproxima-se bastante da visão de Lao Tsé. A

relação entre o dia e a noite, seu exemplo citado, é como a do antes e depois do texto

taoísta. Dia e noite, assim como feminino e masculino e tantos outros pares, são “apenas

momentos reversíveis, que se sucedem e se trocam, numa sedução incessante” (p. 134).

O modo simbólico, tão ausente de nossas relações atuais, não opera sobre o código

disjuntivo. Ele põe fim a essas disjunções, a essas “realidades” separadas.

Assim, não há distinção, no plano simbólico, entre os vivos e

os mortos. Os mortos simplesmente têm outro estatuto, o que

exige precauções rituais. Mas visível e invisível não se

excluem, trata-se de dois estados possíveis da pessoa. A

morte é um aspecto da vida (Baudrillard, 1976:1996, p. 181).

Na operação simbólica, a morte é resgatada. Resgatada como “estado possível”, na

mais plena concepção dos termos. No simbólico, trocando ritualisticamente com a vida, a

morte deixa de ser um termo, uma extremidade de uma relação, para, simplesmente, ser

(42)

como uma unidade, mas que, ao contrário, forma esta unidade na qualidade de sua

interação com a vida.

Essa morte, vale ressaltar, essa forma de relação social, é uma ameaça para os

códigos: produz a reversão deles. Contra essa ameaça, a resposta dos códigos: a subtração

da vida na morte, a supremacia do olhar objetivante da ciência moderna, a redução à

irreversibilidade da morte biológica.

A morte deixou de ser social e virou biológica, exatamente quando é pinçada e

retirada de todos os lugares para se concentrar no corpo. Deixou de ser morte e virou um

simples falecimento, não sendo mais considerada um atributo essencial do ser humano.

Virou, inclusive, um “acidente”, daqueles que acontecem todos os dias, mas apenas com os

outros. Esse entendimento da morte como um acontecimento que sobrevém do exterior,

esse deslocamento da morte do eixo da vida, gera o sentimento de imortalidade tão

pertinente para nossa sociedade pós-industrial, caracterizada pelo acúmulo linear de bens e

capital.

E esse sentimento de infinitude opera tanto na vida quanto na morte. Pode-se

pensar, então, após a separação morte/vida, em uma morte e em uma vida imortais.

Quando os mortos estão presentes, parceiros dos vivos nas trocas simbólicas, não é

necessário conceber a imortalidade da alma, tanto que, como nos fala Baudrillard

(1976:1996), o direito a essa imortalidade foi uma conquista social, uma espécie de justiça

espiritual compensatória de um mundo de injustiça social.

Essa compensação, no entanto, nunca se fez por completo, pois a imortalidade de

todos aqueles que compõem a subalternidade, como os loucos, por exemplo, não foi

alcançada.

A morte, então, passou a ser pontual, ficou reduzida a um momento que é

(43)

deixa de funcionar. Como máquina, só resta ao corpo funcionar ou não funcionar. Essa

concepção é relativamente recente: pertence ao quadro da ciência moderna e é um legado

da visão mecanicista iniciada por Galileu, fortalecida por Descartes e, finalmente,

consagrada por Newton (Burtt, 1983).

Galileu deixa para a ciência moderna a concepção de que a natureza é um sistema

simples e ordenado, no qual todos os acontecimentos são absolutamente regulares e

necessários. E mais: todos esses acontecimentos podem e devem ser descritos

matematicamente.

A visão matemática da natureza e o experimentalismo sensorial de Galileu

certamente influenciaram Descartes na elaboração de seu dualismo metafísico. Para este

pensador, existem duas entidades fundamentais e mutuamente independentes que são a res extensa e a res cogitans. Existe, então, um reino de corpos, cuja propriedade essencial é a extensão. Este reino (res extensa) é o mundo da matéria, um mundo geométrico, cognoscível apenas pela matemática pura. Por outro lado, existe também um reino do

interior, cuja essência é o pensamento, acompanhado pela percepção, vontade, sentimento,

imaginação etc. Este mundo (res cogitans) é o da mente e encerra todas as qualidades reconhecidas pela experiência que não são matematicamente redutíveis e que se tornam

pouco confiáveis para a obtenção de conhecimento, pois que passam pela mediação

confusa e enganosa dos sentidos.

Descartes, com o dualismo corpo/mente, inaugura um modo de conceber e produzir

a realidade; um modo fundamentado no estabelecimento de pólos independentes. Dentro

de sua visão mecanicista,

a totalidade do mundo espacial torna-se uma vasta máquina,

que inclui mesmo o movimento dos corpos animais e os

processos da fisiologia humana que são independentes da

Referências

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