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Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em excesso de liberdade (p. 78).

Este capítulo já começa com uma grande responsabilidade: responder às perguntas propostas no final do capítulo anterior. Por isso mesmo, um lindo e apropriado trecho da Maura, numa rara exaltação à “liberdade” da loucura, ou, quem sabe, à “liberdade” de estar por trás de um código que “permite muito mais que outros”, ou, finalmente, um hino à “liberdade” de mesmo estando enquadrada em um código, “por trás das grades”, “sentir-se solta e rir doida”.

Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. Ou não choramos, como suprema força ― quando o coração se apequena a uma lembrança no mais guardado do ser. Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades ― em excesso de liberdade (p. 78).

Para a resposta necessária, faz-se importante resgatar outros pontos da teoria de Baudrillard. Esse resgate, no entanto, aparece apenas como ponto inicial para essa reflexão, sendo importante a ajuda de autores como Foucault, Schopenhauer, Heidegger, entre outros grandes nomes. Autores esses que dialogam com Maura Lopes Cançado, cuja obra é apresentada no Capítulo 3.

conhecimento, capaz de dominar o mundo (o objeto), acabou por instaurar um sistema com pretensões a uma positividade absoluta, cuja hegemonia se fez com a expulsão de todos os elementos considerados negativos, isto é, aqueles que não se integram ao modelo criado pelo sujeito. Dessa forma, criou-se um mundo paralelo, mais “real” que o real, ao qual nosso autor denomina hiper-realidade ou simulacro. Nesse mundo, os modelos antecedem à realidade, o que cria a ilusão de que vivemos na transparência absoluta, isto é, podemos tudo conhecer.

Avançando em sua denúncia do código, Baudrillard (2002:2003) faz a distinção entre um sistema de dominação e outro, hegemônico, nosso sistema atual. Não vivemos mais, segundo o autor, em um sistema de dominação, contra o qual esperava-se uma revolução comandada por agentes de ação social (sujeitos históricos), indivíduos, grupos ou classes sociais que, localizados em contextos históricos, exprimem suas qualidades, na liderança de lutas para transformações mais amplas ou mesmo de ação em esferas cotidianas. Não podemos mais ter a esperança de uma revolução, pois essas ações, hoje, alimentam ainda mais o sistema.

Tudo o que se insere no espaço-tempo desfinalizado do código [diz Baudrillard] ou tenta nele intervir é desconectado de suas próprias finalidades, desintegrado e absorvido – trata-se do efeito bem conhecido de assimilação, de manipulação, de ciclagem e reciclagem em todos os níveis (1976:1996, p. 10).

Tudo que se opõe ao sistema hegemônico – ao código – toda a crítica ou a desconstrução de seus elementos constituintes, não é suficiente para alterá-lo. Ou pior: tudo que vem de fora acaba virando alimento para esse mesmo sistema. É o caso de muitos movimentos de contra-cultura. O movimento hippie, por exemplo, inspirou e aqueceu o mercado de roupas e acessórios, e se transformou em um grande padrão de modismo. A

“liberdade”, que era uma das grandes motivações do movimento, acabou virando “uma calça velha, azul e desbotada, que se pode usar do jeito que quiser”; jingle publicitário de uma empresa que produzia e comercializava calças jeans. Só há então uma possibilidade de quebra da hegemonia: uma reversão de dentro para fora.

A expressão “reverter de dentro para fora”, mais que um sentido, indica uma forma, uma anomalia na ordem preponderante (hegemônica), que pode provocar a implosão do sistema e sua conseqüente reversão para o mundo das regras, para o modo da sedução, para o modo simbólico.

Contra os códigos, somente os elementos ditos negativos, somente a morte, o feminino e a poesia (como aponta Baudrillard), da mesma forma que a loucura (como acrescento nesta dissertação), elementos que não podem ser capturados por esses códigos, pois que foram suprimidos da construção destes.

A única solução, conforme nos diz Baudrillard (1976:1996), é voltar contra o sistema o princípio mesmo de seu poder: a impossibilidade de resposta e de réplica. Uma impossibilidade estabelecida dentro do seu modo de operação, isto é, uma impossibilidade de resposta no mundo das leis, na esfera da produção. Diante de tal impedimento, mas completamente seduzido pelo desafio, seduzido por responder, o sistema tropeça em si mesmo, em sua linearidade artificial, e se vê obrigado a “morrer” e a “nascer” em outra qualidade de relação que possibilite a integração dos elementos antes usurpados.

Se liberado da lei, cai-se na obrigatoriedade da regra e, portanto, no modo finito, mortal da sedução. É preciso, então, desafiar o sistema “mediante uma dádiva à qual ele

não possa responder exceto com sua própria morte e sua própria aniquilação” (p. 51,

destaque do autor).

Desafiar o sistema, no entanto, ainda parece ser uma ação, uma atuação intencional, uma responsabilidade de sujeito com clareza e domínio meticuloso da situação. Um ator

assim só estaria contribuindo para reforçar a lei.

Desafiar o sistema, então, é preciso esclarecer, é instaurar surpreendentemente uma espécie de relação que contemple a inteireza de seus envolvidos. Uma relação na qual os elementos se manifestem com todas as suas qualidades, que já não se apresentam como positivas ou negativas, mas, que, simplesmente, comparecem; um modo de interação que possibilite a reversibilidade, pois que há morte na vida, da mesma forma que há vida na morte. Uma relação que circule sob as palavras, sob o sentido artificialmente construído, sob o significado passível de captura e resposta; uma relação, enfim, fundamentada em uma regra imediata e em sua secreta observância.

O desafio presentifica, dessa forma, uma obrigação de lances e sobrelances, de dádivas e contradádivas, de trocas simbólicas. Assim o faz secretamente, sem que seja necessário ser externado, o que, aliás, se acontece, transforma o desafio e o segredo em outra coisa; sai do modo da sedução e entra no significado, na exposição, no modo da produção.

Segundo Baudrillard, apesar de normalmente as formas sociais de relação e interação se darem na esfera das leis, ou seja, se darem no modo linear de acumulação infinita, elas sempre procuram seu fim. “Algo no fundo de todo o sistema de produção resiste ao infinito da produção – sem o que já estaríamos todos soterrados sob isso”, nos diz o autor (1977:1984, p. 64). Algo resiste à acumulação infinita, à artificialidade da ausência da morte.

Na lei, todos os espaços, todos os interstícios são preenchidos, na tentativa de se eliminar a regra. Ocorre que o preenchimento de tudo impede o vazio e a ausência do vazio impossibilita a função, da mesma forma que a excessiva proximidade ofusca a visão. Ou,

como diz Lao Tsé (~650 a.C.:2001)9, em seu clássico taoísta Tao Te King:

“O vaso é feito de argila,

mas é o vazio que o torna útil”.

Assim, pode-se afirmar, o vazio permite a troca, a circulação (Baudrillard, 1979:2004).

E é esse movimento circular, qual seja, a imposição da finitude, da morte, a imposição do real, que se constitui na verdadeira ameaça ao modo de produção. Uma ameaça que pode, em um primeiro momento, parecer despropositada, haja vista a hegemonia dos códigos. Porém, lembra-nos Baudrillard (1977:1984), “se injetarmos uma mínima dose de reversibilidade em nossos dispositivos econômicos, políticos, institucionais, sexuais, tudo ruirá imediatamente” (p. 73), tamanha a fragilidade destes sistemas, na justa medida da suntuosa, porém, falaciosa, construção que os ergueu, pois que alicerçada sobre uma artificialidade.

A morte, bem como outros elementos, pode se constituir em lances preciosos que obriguem à revisão dos códigos.

Se “somos todos parceiros de um jogo”, retomo a frase de Baudrillard, somos cúmplices no atendimento à regra que se estabelece e sela nossa interação paritária. Uma interação que não comporta posições de superior ou inferior. “Assim como não há ativo nem passivo na sedução, não há sujeito nem objeto, nem interior ou exterior; ela atua nas duas vertentes, e ninguém as limita ou separa” (1979:2004, p. 92).

Estar nesse modo de relação, atuar na regra, é subverter o discurso universalizante da razão moderna. Acreditando que a separação entre vida e morte é a separação fundante

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O ano de nascimento de Lao Tsé, da mesma forma que o do aparecimento de sua célebre obra é incerto. Estima-se, no entanto, que o Tao Te King tenha sido escrito por volta do ano 650 a.C., no momento em que Lao Tsé atravessava a Grande Muralha para abandonar a China. Nesse momento, teria sido interpelado por um guardião para que deixasse um registro de sua doutrina. Segundo seus principais biógrafos, teria surgido, nessa circunstância, a obra suprema do taoismo.

de todas as outras da modernidade, a morte se constitui, para Baudrillard, em elemento por excelência desafiador desse discurso universalizante, desse discurso “verdadeiro” dos códigos. Com a morte, apresenta-se a reversibilidade simbólica que se estabelece aquém do valor. Para o autor, como já mencionado, o feminino e a poesia também se furtam à captura pelos códigos, não se filiam à ordem da produção de significado. O feminino, que na obra de Baudrillard aparece com uma conceituação particular, que não se reduz à oposição do masculino, subverte a razão sexual, e a poesia, tal qual a encontrada nos anagramas de Saussure, constitui-se em uma abordagem, um princípio de funcionamento, antagônico e externo à economia política da linguagem.

Nesta dissertação, outro elemento é apontado como desafiador para os códigos: a loucura. Foi e é alijada da construção do sujeito moderno, bem como de outros pilares da modernidade e, justamente por isso, não é passível de captura e cooptação pela lei hegemônica, pois que obriga à revisão dos códigos. Muitos podem ser esses elementos, mas é necessário, primeiramente, tecer algumas considerações gerais.

Quando dizemos que esses elementos foram alijados da construção do sujeito moderno, melhor seria dizer que, ao longo desse processo, algo deles foi subtraído, foi desprestigiado, desconsiderado. Os construtos modernos foram erigidos com a larga predominância de um determinado viés, o olhar objetivo-científico da modernidade.

Ocorre que um saber dificilmente se constitui em um bloco maciço e homogêneo sobre o qual se possa ter um único olhar. Em torno de uma verdade transparente, por mais coerente e fechada que seja, gravitam sempre “formas mais ou menos obscuras da consciência prática, mitológica ou moral”, lembra-nos Foucault (1972:2000, p. 165). São formas que impõem uma relação com o olhar hegemônico e, nessa imposição, desafiam o código vigente a uma reversão.

de perceber exatamente que “porção” de suas totalidades não é passível de captura e o que, de fato, pode romper com os códigos que, dentro dessa análise, já começam a ser especificados.

A morte, como já apresentado no Capítulo 1, foi separada, banida da vida, não mais circula simbolicamente no espaço social. Essa separação se instala no momento em que se institui a lei do valor10, com a sobrevaloração da vida. “Estar morto hoje [diz-nos Baudrillard com o melhor de sua ironia] é uma anomalia inconcebível (...). A morte é uma delinqüência, um desvio incurável” (1976:1996, p. 173).

Se banida, a morte vira um fantasma a obsedar a vida. Um fantasma gerado pelo próprio princípio da obrigação simbólica que, como nos mostra Baudrillard (1976:1996), opera em todos os sentidos, transformando nossa vida, essa vida positivada-separada, em uma morte equivalente. É o “preço” que a vida paga por querer-se viva com a exclusão da morte.

Excluir um termo da equação é a origem da positivação da sociedade moderna, é seu padrão de funcionamento. Dessa forma, construímos nossa “realidade”. É o código disjuntivo que separa vida e morte, feminino e masculino, homem e natureza, corpo e alma, e tantos outros termos. É com o estabelecimento dessa linha divisória que se constituem “reais” os lados demarcados. Assim como na disjunção vida e morte, o masculino se constitui enquanto negação do feminino, estabelecendo-se como termo de maior valor sobre um desprestígio do outro. Da mesma forma, o conceito de homem emana do estabelecimento de uma linha divisória entre ele e a natureza. Separação esta que, como as demais, é acompanhada da positivação do primeiro termo sobre o segundo. É sempre o mesmo modus operandi que muda a qualidade ambivalente de uma constituição una para o estabelecimento de extremidades separadas que não mais se trocam.

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Sobre a instituição da lei do valor e de seu desenvolvimento por meio das três voltas da “espiral dos simulacros”, vide Capítulo 1.

Lao Tsé (~650 a.C.:2001), mais uma vez, com sua incrível capacidade de síntese, aponta em um trecho de sua obra única, o já citado Tao Te King, outras possibilidades de estabelecimento de relações entre dois elementos que não o exclusivo antagonismo do ocidente moderno. Recita o autor:

Ser e Não-ser engendram-se mutuamente. Fácil e difícil completam-se. Longo e curto delimitam-se.

Alto e baixo regulam-se. Tom e som harmonizam-se. Antes e depois sucedem-se.

Com o simbólico, “a implicação dos seres e das coisas não é a da diferença estrutural. (...) Não são diferenciados dentro da mesma escala de valores; são solidários numa ordem imutável, num ciclo reversível como o do dia e da noite”. Com esta afirmação, Baudrillard (1990:2004, p. 134) aproxima-se bastante da visão de Lao Tsé. A relação entre o dia e a noite, seu exemplo citado, é como a do antes e depois do texto taoísta. Dia e noite, assim como feminino e masculino e tantos outros pares, são “apenas momentos reversíveis, que se sucedem e se trocam, numa sedução incessante” (p. 134).

O modo simbólico, tão ausente de nossas relações atuais, não opera sobre o código disjuntivo. Ele põe fim a essas disjunções, a essas “realidades” separadas.

Assim, não há distinção, no plano simbólico, entre os vivos e os mortos. Os mortos simplesmente têm outro estatuto, o que exige precauções rituais. Mas visível e invisível não se excluem, trata-se de dois estados possíveis da pessoa. A morte é um aspecto da vida (Baudrillard, 1976:1996, p. 181). Na operação simbólica, a morte é resgatada. Resgatada como “estado possível”, na mais plena concepção dos termos. No simbólico, trocando ritualisticamente com a vida, a morte deixa de ser um termo, uma extremidade de uma relação, para, simplesmente, ser uma diferença destituída de valor relativo; uma diferença que não se constitui isoladamente

como uma unidade, mas que, ao contrário, forma esta unidade na qualidade de sua interação com a vida.

Essa morte, vale ressaltar, essa forma de relação social, é uma ameaça para os códigos: produz a reversão deles. Contra essa ameaça, a resposta dos códigos: a subtração da vida na morte, a supremacia do olhar objetivante da ciência moderna, a redução à irreversibilidade da morte biológica.

A morte deixou de ser social e virou biológica, exatamente quando é pinçada e retirada de todos os lugares para se concentrar no corpo. Deixou de ser morte e virou um simples falecimento, não sendo mais considerada um atributo essencial do ser humano. Virou, inclusive, um “acidente”, daqueles que acontecem todos os dias, mas apenas com os outros. Esse entendimento da morte como um acontecimento que sobrevém do exterior, esse deslocamento da morte do eixo da vida, gera o sentimento de imortalidade tão pertinente para nossa sociedade pós-industrial, caracterizada pelo acúmulo linear de bens e capital.

E esse sentimento de infinitude opera tanto na vida quanto na morte. Pode-se pensar, então, após a separação morte/vida, em uma morte e em uma vida imortais. Quando os mortos estão presentes, parceiros dos vivos nas trocas simbólicas, não é necessário conceber a imortalidade da alma, tanto que, como nos fala Baudrillard (1976:1996), o direito a essa imortalidade foi uma conquista social, uma espécie de justiça espiritual compensatória de um mundo de injustiça social.

Essa compensação, no entanto, nunca se fez por completo, pois a imortalidade de todos aqueles que compõem a subalternidade, como os loucos, por exemplo, não foi alcançada.

A morte, então, passou a ser pontual, ficou reduzida a um momento que é precisamente aquele em que o corpo humano, concebido como um sistema de engrenagens,

deixa de funcionar. Como máquina, só resta ao corpo funcionar ou não funcionar. Essa concepção é relativamente recente: pertence ao quadro da ciência moderna e é um legado da visão mecanicista iniciada por Galileu, fortalecida por Descartes e, finalmente, consagrada por Newton (Burtt, 1983).

Galileu deixa para a ciência moderna a concepção de que a natureza é um sistema simples e ordenado, no qual todos os acontecimentos são absolutamente regulares e necessários. E mais: todos esses acontecimentos podem e devem ser descritos matematicamente.

A visão matemática da natureza e o experimentalismo sensorial de Galileu certamente influenciaram Descartes na elaboração de seu dualismo metafísico. Para este pensador, existem duas entidades fundamentais e mutuamente independentes que são a res

extensa e a res cogitans. Existe, então, um reino de corpos, cuja propriedade essencial é a

extensão. Este reino (res extensa) é o mundo da matéria, um mundo geométrico, cognoscível apenas pela matemática pura. Por outro lado, existe também um reino do interior, cuja essência é o pensamento, acompanhado pela percepção, vontade, sentimento, imaginação etc. Este mundo (res cogitans) é o da mente e encerra todas as qualidades reconhecidas pela experiência que não são matematicamente redutíveis e que se tornam pouco confiáveis para a obtenção de conhecimento, pois que passam pela mediação confusa e enganosa dos sentidos.

Descartes, com o dualismo corpo/mente, inaugura um modo de conceber e produzir a realidade; um modo fundamentado no estabelecimento de pólos independentes. Dentro de sua visão mecanicista,

a totalidade do mundo espacial torna-se uma vasta máquina, que inclui mesmo o movimento dos corpos animais e os processos da fisiologia humana que são independentes da atenção consciente. Esse mundo não depende em qualquer

medida do pensamento e todo o seu mecanismo continuaria a existir e a operar mesmo que não existisse qualquer ser humano (Burtt, 1983, p. 95).

Newton compartilhou dessa visão, alargando-a por meio da descrição das leis que movimentam essa grande máquina.

O mundo, que antes parecia receptivo e humano, já que se destinava a servir às finalidades humanas, como o concebiam na Antigüidade e Idade Média, virou uma máquina matemática, infinita e monótona. “As coisas que faziam do mundo um lugar vivo, gracioso e espiritual foram reunidas e colocadas nas posições de extensão pequenas, flutuantes e temporárias que denominamos sistemas nervoso e circulatório do homem” (Burtt, 1983, p. 98).

Galileu, Descartes, Newton e outros tantos cientistas e filósofos que nos deixaram esse legado metafísico criaram seus sistemas teóricos escapando à finalidade teleológica que dominou a Idade Média. De um mundo guiado e operado por Deus, caímos na impessoalidade e autonomia da máquina11, da máquina do universo e, por extensão, da máquina humana.

A concepção do corpo como máquina pressupõe uma determinada concepção de vida: a de vida-máquina, que segue, ou não, de acordo com o bom funcionamento de suas engrenagens; uma vida separada, individualizada, que não se faz mais no social. A concepção da vida como “máquina”, por sua vez, está ligada à concepção da morte- máquina, qual seja, a morte objetiva, científica, monopolizada e redistribuída pelo sistema hegemônico, a morte que não se relaciona reversivelmente com a vida. Uma morte que não é dada nem recebida, uma morte que não é socializada pela troca.

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Galileu, Descartes e Newton apesar de descreverem sistemas regidos por leis mecânicas e, portanto, independentes da alma divina, concebiam a existência de Deus como criador e responsável pela ordem e harmonia do universo. Newton, inclusive, estabeleceu razões científicas para comprovar a existência de Deus que foram muito combatidas por seus sucessores (Burtt, 1983).

Essa morte não se configura como ameaça. Pelo contrário. Essa morte só reforça o código, serve de referencial e balizamento para este. A morte mais mortal, então, é aquela que não se troca em valor, que não pode ser apreendida. Essa morte é a morte selvagem, surpreendente, é, na nossa sociedade capitalista moderna, o suicídio, por excelência.

“Ninguém tem o direito de furtar-se ao capital e ao valor”, lembra-nos Baudrillard (1976:1996, p. 234) de um dogma da modernidade que, juntamente com o valor de mercadoria atribuído ao indivíduo, relaciona o interdito do suicídio ao advento da lei do valor. Matar a si próprio é matar o capital que como diz a lei acima não pode ser negado e destruído por ninguém. É por isso que toda subversão e resistência ao sistema hegemônico é de natureza suicida. Ainda nos diz o autor:

É suicida a ação dos palestinos ou negros revoltados que incendeiam o próprio bairro, suicida a resistência à segurança

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