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Outra característica a ser destacada no processo de produção de Bráulio Mantovani é sua busca pela humanização dos personagens. Como roteirista, ele sabe que é preciso aproximar a relação das ações dos personagens em seu roteiro às ações do indivíduo real na sociedade. Aumont (2012:9) diz que “de todas as artes, o cinema é incontestavelmente a menos afastada da realidade social”. Dessa forma, incluir na narrativa cinematográfica aspectos que possam aproximar cada vez mais a criação ficcional do mundo real é fundamental, pois a falsa realidade apresentada pelo cinema é que administra e garante a assimilação e identificação do público com o filme. Podemos analisar três fatores relevantes do processo de humanização criado por Bráulio no aprimoramento dos tratamentos: o primeiro é a humanização pela nomeação:

TRATAMENTO 1

TRATAMENTO 4

A nomeação de personagens contribui para que o ser ficcional ganhe uma identidade. Sua personificação auxilia também o ator no momento da construção de seu personagem. A bebezinha do tratamento um ganha um nome logo no tratamento quatro – Vanderléia –, e sua mãe já não é somente chamada de “mãos negras”, ela se torna

102 Madalena, e executa ações comuns a qualquer mãe que sentisse qualquer perigo se aproximando de sua cria.

A qualificação do personagem com um nome ao longo do processo é recorrente no caso de Mantovani, que geralmente cria seus personagens, sem muitas caracterizações, e, na elaboração dos outros tratamentos, vai preenchendo-os com vida e densidade.

O segundo aspecto é a humanização pela ação:

TRATAMENTO 4

TRATAMENTO 12

A evolução de um tratamento a outro apresenta um maior detalhamento da imagem da cena como recurso da legitimidade da narrativa cinematográfica mais pela imagem de uma ação que por meio da fala de um personagem explicando algo que já está fazendo. Essa mudança é vista em dois momentos dos tratamentos acima.

No primeiro, a fala de Cabeção no tratamento quatro é substituída, no tratamento doze, por uma ação exercida pelo mesmo personagem e por Touro (outro policial). Essa mudança altera a maneira como uma informação será passada no cinema: no caso que

103 nos interessa, a fala do personagem explicando a ação é eliminada e, em seu lugar, o roteiro acrescenta a imagem de uma ação corriqueira e comum exercida pelos policiais que fazem a “guarda” na Cidade de Deus, ou seja, a apropriação de pertences pessoais de alguém morto por eles.

Essa substituição da fala pela ação reforça uma atitude costumeira dos policiais na Cidade de Deus, e não algo que pensaram naquele momento. A ação se torna, dessa maneira, um reflexo direto do caráter de ambos os policiais. Mais uma vez Bráulio sutilmente ajusta, na evolução de um tratamento a outro, a estratégia de ampliar a caracterização do personagem adicionando novas informações.

O segundo momento da humanização pela ação é a forma que os policiais encontram de se livrarem do crime cometido: retiram uma arma do bolso e colocam na mão do jovem negro trabalhador. Esse é um detalhe de ação crucial para ampliar a figura corrupta dos defensores da lei, deixando talvez a ação mais factível, como algo que realmente é comum entre policiais.

Em entrevista, Mantovani relata alguns possíveis motivos desse detalhe da arma ser inserido na ação. Segundo ele, não se lembra o que causou essa mudança.

Arrisco dizer que foi algo que o Fernando Meirelles sugeriu por conta de alguma notícia que leu ou algum caso que ouviu. Mas pode ser que eu tenha esquecido de incluir essa ação e me lembrei depois. Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Você escreve um primeiro tratamento e tenta redigir as cenas com o maior detalhamento possível. Mas está com a cabeça a mil, pensando cinco, vinte cenas à frente. E aí deixa passar alguma coisa. Quando revisa, percebe que faltam detalhes (ou sobram) e faz os ajustes. Além disso, quando seu roteiro começa a circular entre os profissionais envolvidos no projeto e também entre amigos, os leitores trazem suas observações. E muitas pequenas e grandes mudanças podem surgir daí. A regra geral é essa. Mas cada caso é um caso.

A resposta de Mantovani imerge no conceito de processos de criação e mostra que a produção do roteiro é um “caldeirão de ideias borbulhando”.

Uma conversa com um amigo, uma leitura, um objeto encontrado ou até mesmo um novo olhar para a obra em construção pode gerar essa mesma reação: várias novas possibilidades que podem ser levadas adiante ou não. As interações são muitas vezes responsáveis por essa proliferação de novos caminhos: provocam uma espécie de pausa no fluxo da continuidade, um olhar retroativo e avaliações, que geram uma rede de possibilidades de desenvolvimento da obra. (Salles, 2006:26).

Por último, temos a humanização pela razão. Essa característica também é muito comum nos roteiros de Bráulio, e ela atua geralmente na construção de maior

104 verossimilhança na narrativa de um filme. Abaixo temos uma mesma sequência nos três diferentes tratamentos, que relata o momento em que Marreco e seus companheiros fogem da polícia depois do assalto ao motel, e se escondem em um matagal.

TRATAMENTO 1

105 TRATAMENTO 12

Nos tratamentos um e quatro, vemos a presença mística de uma entidade chamada de anjo, que conversa com Marreco obrigando-o a fazer algo a ser revelado mais adiante na narrativa. No tratamento quatro, o off de Busca-pé mais uma vez é inserido para informar alguns detalhes relativos à história dos personagens. Nesse tratamento, a presença de Busca-pé é constante, e seus offs são demasiadamente exaustivos. Talvez por esse motivo vemos, no tratamento doze, um enxugamento necessário de informações menos relevantes para o desenvolvimento da história.

Nota-se que o tratamento quatro foi uma tentativa de Mantovani criar uma fácil assimilação dos personagens e das ações, usando Busca-pé como guia, em uma longa narração. Já o tratamento doze é a versão mais madura dentre os tratamentos, e, levando em conta o aspecto da humanização, o anjo visto nos tratamentos anteriores dá lugar a uma rápida conversa entre amigos em cima da figueira mal assombrada, que perde seu adjetivo assustador para se tornar mais uma árvore no meio de várias em um matagal. O ser místico é retirado da narrativa e Bráulio conduz Marreco a um caminho mais ordinário, mais comum, a uma ação simples de se esconder em uma árvore para escapar da polícia.

106 CENAS FIXAS

Nem sempre o roteiro trabalha com tantas diferenças entre os tratamentos, mesmo sabendo que a cada nova leitura se configuram outras formas de se contar a mesma história. O roteirista tem que saber onde e como remanejar as sequências, pois “a sequência é o elemento mais importante do roteiro. Ela é o esqueleto, ou espinha dorsal, de seu roteiro; ela mantém tudo unificado”. (Field, 2001:86).

Por outro lado, cada modificação pode levar a uma desestruturação desenfreada da narrativa, e isso pode se tornar uma armadilha que leva ao caos e à incompreensão da história. É necessário ao roteirista ter em mente uma unidade, como vimos anteriormente, ou seja, cenas fixas, para não se perder nas sequências, e não transformar o roteiro em uma colcha de retalhos.

Alguns momentos dessas cenas fixas podem ser vistos com frequência nos diferentes tratamentos analisados; são partes da narrativa que não sofrem nenhuma alteração desde sua criação no primeiro tratamento até sua última aparição no tratamento final. Esses trechos são momentos que podem ter sido inspirados pelo romance de Paulo Lins, como podem ter sido criados pelo próprio Bráulio, e servem como ações guias para ajudar no desenvolvimento de novas outras ações.

Um desses trechos que não foram alterados ao longo do processo está relacionado ao personagem Cabeleira, que no romance de Lins é chamado de Inferninho. Cabeleira/Inferninho mostra a sua habilidade com a bola de futebol e seus trejeitos transmitem informação sobre seu caráter e sua relação com os outros personagens. Assim também funciona a sua belíssima pontaria, que com um único tiro acerta a bola de futebol, que explode, servindo de passagem – transição – para outro momento, o da história de Cabeleira que, nesse caso, está presente apenas no roteiro de Mantovani.

107 As ações são pontuadas. A cada pequena ação conseguimos visualizar a cena, e um ritmo sincronizado é dado para que essa sequência se comporte como ligação entre a ação anterior e a próxima cena.

MINIBIOGRAFIA

Uma característica, também importante, que notamos ao ler os tratamentos do roteirista, é sua preocupação com o ritmo que dá a suas cenas e sequências. Bráulio é um roteirista contemporâneo, e sabe muito bem usar a dinamicidade das ações para criar um sistema rítmico na história, tornando-a propícia para o público de sua época. O tempo do ritmo é a essência da dinâmica do filme.

O ritmo é a qualidade que um roteiro possui de relacionar um conjunto de ações dramáticas dentro de um tempo que consideramos ideal. Claro que esta noção de tempo ideal é muito variável, muda mesmo em cada época (se vemos um filme de 1940 e o comparamos com um filme atual, reparamos que hoje as ações decorrem a uma velocidade maior do que há cinquenta anos). Assim, pode-se dizer que todo produtor audiovisual tem um ritmo, uma resultante de tempos dramáticos parciais; que decorre durante um tempo ideal e permite ao espectador sentir cada cena com o peso dramático específico que o roteirista lhe atribuiu. (Comparato, 2000:230).

Outro detalhe a ser levado em consideração no processo de Mantovani é o procedimento que ele usa para criar ritmo em seu roteiro, isto é, aquilo que ele mesmo chama de minibiografia. Esse é um elemento interessante na sua escrita, pois ele prepara o espectador para o que está por vir. O roteirista “encaixa” cenas rápidas entre as ações principais da narrativa, gerando um ritmo acelerado na história e diminuindo o espaço para o espectador relaxar. Essa estratégia é um recurso utilizado no início do cinema de narrativa, e sempre teve muito êxito sob a perspectiva dos cineastas que almejavam aumentar a tensão do público.

Cousins (2013) comenta sobre a famosa cena do chuveiro de Psicose (Psycho/1960), onde Hitchcock filmou durante sete dias mais de setenta ângulos diferentes para as facadas que seriam dadas na personagem. Em 1922, o filme francês A roda contou com a participação de Abel Gance, que “editou o filme de modo mais rápido do que o olho humano podia perceber, e todos, de Griffith em diante, haviam entendido que aumentar a taxa de cortes em uma sequência de perseguição ou em uma cena altamente dramática acelerava o pulso do público.”. (Cousins, 2013:280).

108 O procedimento citado acima é muito inventivo para alavancar a história, deixando menos tempo de baixa tensão entre os picos máximos de ação. Quando a narrativa começa a se tornar constante, ele quebra a eminente monotonia do roteiro e impulsiona a expectativa do público, que se ajeita nas poltronas à espera de um momento repleto de adrenalina.

TRATAMENTO 12

A minibiografia é um recurso utilizado para informar quem será o próximo a morrer na trama. Após a interação da personagem (recepcionista), do trecho acima, com a câmera, contando um pouco sobre ela própria, nós vemos a sua morte logo em seguida. Assim, Bráulio prepara o espectador para entender o significado das próximas minibiografias no roteiro. Uma vez compreendido a função dessa “auto-narrativa” na história, os próximos personagens a darem depoimentos já estão necessariamente fadados a morrer, e a tensão se dá na expectativa de como será essa morte e quem será o assassino.

Tal ferramenta ajuda na velocidade rítmica das ações, o que contribui para a dinamicidade da história, dando a sensação de pouco tempo de respiro, ou seja, inibindo o relaxamento emocional entre as ações e criando uma sensação de apreensão constante. Um dos melhores caminhos para criar movimento e tensão de uma cena para outra é impor uma ação no final de uma cena que vai conduzi-la para a próxima cena... Basicamente isso comprimi o tempo, pulando-nos para frente. Este é um dos mais efetivos e testados métodos para manter uma história tensa e dinâmica. (Seger, 2003:40). A seguir, observamos como a minibiografia se comporta nos três tratamentos estudados:

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Tratamento 1 Tratamento 4 Tratamento 12

Sem Minibiografias Minibiografia (pessoas falando para a câmera na narrativa que vão morrer depois do seu depoimento) 1 Recepcionista do Motel 2 Jovem negro

3) Mulher de Zé Pretinho 4) Avô de Mané Galinha 5) Pade Lobo, Salgueirinho, Dona Margarida, Torquarto e Madalena com a bebezinha Vanderléia (esses não possuem depoimentos mas aparecem em fotos 3x4)

Minibiografia (pessoas falando para a câmera na narrativa que vão morrer depois do seu depoimento )

1 Recepcionista do Motel 2 Jovem negro trabalhador 3 Mulher do Ceará

4 Mulher de Neguinho 5 Avô de Mané Galinha

As minibiografias foram sendo incorporadas aos tratamentos aos poucos, e sendo reorganizadas da melhor forma com vistas a criar a tensão necessária para não deixar a narrativa esmorecer. Se usada em demasia ou vice-versa, pode gerar um desgaste pela repetição ou um tédio pela vagarosidade rítmica.

Notamos que, no tratamento quatro, a forma que o roteirista encontra de narrar os personagens que morrerão em massa – e não de maneira individual, como nas minibiografias – também tem sua versão prévia da morte caracterizada por uma foto três por quatro, que, de certa forma, mantém o seu olhar frontal para a câmera, porém sem falas e sem informações adicionais.

O Ritmo e a forma de se construir a narrativa é única de cada roteirista. No caso de Cidade de Deus, Bráulio Mantovani imprimi suas características singulares, e desenvolve, no seu processo de criação, um jeito particular para criar, organizar e emendar as ações, transformando-as em sequências rítmicas e previamente articuladas para atrair o foco do espectador a todo o momento.