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O humor, enquanto fenômeno inerente à natureza humana, desde a Antiguidade instiga especulações sobre sua constituição. Os primeiros pensamentos sobre o tema remontam a Platão [427-347 a.c], que, em Filebo, toma o riso como algo negativo, ligado à ilusão, ao falso prazer (FRANÇA, 2006). Porém, as reflexões sobre o humor eram esporádicas, e, em geral, restringiam-se ao âmbito filosófico, à atribuição de juízos de valor – questionava-se com maior ênfase o status social e psicológico do humor, e pouquíssimo as técnicas humorísticas que estariam na base da construção do sentido humorístico. Somente a partir da década de 70, após a Primeira Conferência Internacional sobre Humor4, iniciou-se o desenvolvimento de estudos científicos, pautados em métodos, sobre a estruturação do humor, e este ganha notoriedade no âmbito acadêmico (RASKIN, 1985).

Atualmente, os estudos sobre o humor são interdisciplinares (devido à complexidade de sua construção, que inclui aspectos como psique, meio social e linguagem) e abrangem diversas áreas do conhecimento – dentre as quais se encontra a Linguística, que visa a “descrever as chaves linguísticas que são o meio que desencadeia nosso riso” (POSSENTI, 1998, p. 17). Convém ressaltar que este

4 A Primeira Conferência sobre Humor ocorreu em Cardiff, Wales (País de Gales), em 1976, e contou

principalmente com a presença de filósofos, sociólogos e profissionais do humor, como comediantes e humoristas, que buscaram refletir cientificamente a questão da comicidade (RASKIN, 1985, p. xiv).

trabalho se preocupa com as técnicas humorísticas vinculadas à linguagem. Tais técnicas (as que se relacionam à linguagem) originam-se de abordagens teóricas diferenciadas, como a Pragmática, a História, a Análise de Discurso e a Sociologia. O quadro abaixo expõe os principais domínios do conhecimento envolvidos na análise do humor e suas contribuições, conforme demonstra Travaglia (1990, p. 58- 61), no artigo “Uma introdução ao estudo do humor pela Linguística”:

DOMÍNIO CONTRIBUIÇÃO

História Busca estudar “a história do humor e seus gêneros: surgimento, denominação, evolução etc; ou a história do próprio estudo do humor” (p. 58).

Antropologia Visa analisar o humor como constituinte das relações humanas, “como um aspecto dos relacionamentos transacionais” (p. 58).

Comunicação Objetiva mostrar o humor como um modo comunicacional não bona-fidem (confiável), “que se realiza fora dos canais normais da comunicação de cada dia, de fala utilitária” (p. 59).

Semiologia “Trata das reversões nas estruturas do humor que estimulam certas formas linguísticas” (p. 59).

Sociologia Focaliza o papel político e social do humor, por meio das funções que este desempenha (p.59).

Psicologia Mostra o humor como liberador, na medida em que é responsável pelo descarregamento das tensões psíquicas (p. 59).

Linguística Visa analisar os recursos linguísticos, que, situados dentro de um contexto específico, permitem a deflagração de efeito humorístico. Considerando-se que o humor é um fenômeno complexo, em sua análise pela Linguística é imprescindível o diálogo entre as diversas disciplinas que a compõem, como a Linguística Textual e a Análise de Discurso (esta enfoca, principalmente, os pré-conceitos sobre os quais o humor se firma, além dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos); a Pragmática (analisa a construção do humor a partir da ruptura de estratégias de interação); a Sociolinguística (mostra as formas de humor baseadas em determinadas características da linguagem de um grupo); da Semântica (analisa a relação do humor com recursos como polissemia, homonímia etc.) e a Análise da Conversação (mostra o humor como resultante do desrespeito a regras conversacionais) (p. 60-64).

QUADRO 1 – DOMÍNIOS DO CONHECIMENTO ENVOLVIDOS NA ANÁLISE DO HUMOR

Tais abordagens agrupam-se em três grandes correntes de pensamento: as teorias da superioridade, as teorias da catarse e as teorias da incongruência. O primeiro grupo defende que o humor se assenta no sentimento de superioridade de um indivíduo sobre o outro, como é o caso da teoria bergsoniana, “que vê no cômico a forma como a sociedade castiga quem não tem flexibilidade de atitudes para adaptar-se a ela” (ROMÃO, 2008, p. 136).

O segundo grupo afirma que o humor objetiva aliviar a psique do ser humano das tensões provocadas pelas pressões do meio em que vive. É o caso da teoria freudiana, “em que o riso serve para descarregar energias acumuladas, que causam estresse ao indivíduo” (ROMÃO, 2008, p. 136).

O terceiro grupo vê o humor como o resultado de uma experiência cognitiva, em que há a desarticulação, por meio do confronto de uma ideia (ou fato) incongruente, de uma expectativa previamente estabelecida. Enquadram-se nessa perspectiva “a teoria da bissociação e todas aquelas que se assemelham a ela, defendendo o choque de dois planos cognitivos, no processo interpretativo” (ROMÃO, 2008, p. 136). Podem-se visualizar melhor as características desses três grandes grupos teóricos no quadro a seguir:

CORRENTE DE PENSAMENTO CARACTERÍSTICA

Teorias da superioridade O humor constrói-se a partir da superioridade de um indivíduo sobre o outro.

Teorias da catarse O humor constitui-se como um instrumento de liberação das tensões psicológicas.

Teorias da incongruência O humor surge a partir da desrotinização (quebra de expectativa) de uma vivência socialmente partilhada.

QUADRO 2 – TEORIAS DE ESTUDO DO HUMOR

Apesar do diálogo interdisciplinar na análise do sentido humorístico, que culmina em diferentes definições sobre o que é o humor, muitas abordagens concordam quanto à associação do humor ao riso, ao que é engraçado, sendo esta a perspectiva que assumimos neste trabalho.

Breemer e Roodenburg (2000, p. 13), sob uma abordagem histórico-cultural, definem humor “como qualquer mensagem – expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso (...)”. Propp (1992, p. 33), por sua vez, afirma que o humor é a capacidade de percepção e de criação da comicidade, daquilo que faz rir, de modo que “a comicidade inerente à vida estimula infalivelmente uma reação de riso”. Mouta (2007, p. 78) afirma que “o riso está indiscutivelmente associado ao humor e a uma dinâmica de partilha que só se realiza no seio da relação dialógica que o locutor humorista mantém com o(s) seu(s) interlocutor(es)”. Travaglia (1990, p. 66) afirma que:

O humor está indissoluvelmente ligado ao riso e é apenas o riso que diferencia o humor de outras formas de análise crítica do homem e da vida, de outras formas de rebelião contra o estabelecido, o controle social e o impedimento de prazeres e o consequente desequilíbrio e reestruturação do mundo sociocultural; de outras formas da verdade e da criatividade.

Dessa maneira, sob essa ótica, pode-se considerar como humorístico o texto que “visa ao ato perlocucionário do riso (este, quando associado ao „cômico‟ ou ao „que é engraçado, que é risível‟), entendendo-se aqui a perlocução como o efeito que o locutor provoca no interlocutor, através da sua fala” (ROMÃO, 2005, p. 288). Porém este riso não precisa necessariamente ser aberto, audível, mas pode ser velado, discreto, constituindo uma disposição do espírito (TRAVAGLIA, 1990). Cabe enfatizar, também, que o humor produzido não é gratuito, mas cumpre uma função específica, em uma determinada situação de interação, “permitindo inclusive criticar e dizer coisas que ditas fora do humor certamente gerariam problemas, conflitos, consequências desagradáveis para quem as dissesse” (TRAVAGLIA, 1900, p. 65), como se verá a seguir.