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A ICONOGRAFIA DAS PROFUNDEZAS: AS REPRESENTAÇÕES DA DESCIDA AO LIMBO DE ANDREA MANTEGNA (1431-1506)

No documento Atas da VII Semana de Estudos Medievais (páginas 33-37)

André Guimarães Mesquita*

A Descida de Cristo às Profundezas é um tema essencial na crença cristã do Ocidente Medieval. Sua tradição remonta ao refrigerium dos primeiros séculos cristãos, em outra concepção, ao “seio de Abraão”, ou ainda à “mansão dos mortos”, locais de espera dos futuros eleitos pela salvação com a vinda de Cristo.1 Tais concepções duram até o século XIII,

com a afirmação do Limbo como importante teologúmeno – um axioma teológico assegurando-o como parte da geografia do Além.2 Assim, é

entendido como uma zona neutra localizada na entrada do inferno. O episódio é narrado no Evangelho apócrifo de Nicodemos e conta que no tempo entre Sua Morte e Ressurreição, Cristo desce às Profundezas, mais especificamente ao Limbo, onde estão as almas justas dos profetas e Patriarcas do Antigo Testamento. Embora fossem eleitos, esperavam a vinda do Salvador para serem admitidos no Paraíso e assim, Ele arrebenta os portões do Inferno, liberta os justos e assinala Seu triunfo sobre a morte e o Diabo.

A Descida de Cristo ao Limbo, que é narrada no apócrifo de Nicodemus e recontada na Legenda Aurea6, ocorre nos três dias entre Sua

Morte e Ressurreição. Trata-se de uma passagem especial da Paixão de Cristo, em que não há testemunhos visuais e com apenas um relato sumário – o que denota a dificuldade de sua representação iconográfica.

Os atos representados são, desta forma, convencionais bem como as representações do locus-Limbo – não é céu, terra, inferno ou purgatório. As dificuldades de representação deste “não-lugar” e os atos que se seguiram ali, têm implicações diretas para a composição iconográfica e para as representações espaciais nas cenas, principalmente a partir do Trecento, no norte da península itálica, quando há um começo de preocupação com tais questões. Desta forma, pode-se notar certas tradições para a representação da temática, nesta região.

Põe-se, então uma importante questão: “por que representar a Descida

ao Limbo?”. É na Descida que Cristo “arrebenta os portões das profundezas

e resgata os Patriarcas, vencendo a morte e o Diabo”. Esta Descida é pregada desde o Credo de Nicéia, em 325, apoiando a salvação dos bons e justos. Faz sentido aqui lembrar que o homem do Ocidente Medieval tem obsessão pela salvação de sua alma. Este é o cerne das preocupações de cunho escatológico dos cristãos, ou seja, questão central para entender a cultura religiosa na Idade Média, e ainda no século XV.

O tema, de fato não é incomum em imagens de tradições bizantinas, a partir do Trecento, no norte da Itália. Importantes pintores como o sienense Duccio (c.1255-1316) e o florentino Giotto (c.1266-1337), entre outros, o representaram de acordo com tradições específicas. É, no entanto, na segunda metade do século XV que esta temática ganha novas possibilidades iconográficas, com os trabalhos do desenhista, pintor e gravador Andrea Mantegna (1431-1506), ativo em Mântua de 1460 até sua morte.3

Como era comum em sua época, Mantegna atuou em diversas áreas, como a pintura e a gravura. Foi em Mantua, a partir de 1460, na qualidade de mais importante artífice da corte dos Gonzaga, que desenvolve seus trabalhos gravados, bem como outros que serão abordados nesta apresentação. São especificamente quatro representações da Descida ao

estudada a partir de um exemplar original da Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro.

Durante muitas décadas a chamada História da Arte estudou as transformações inerentes a estilos e épocas. O que é proposto aqui é um outro tipo de enfoque – mais calcado em uma história da imagem como pensada por Hans Belting5 – que passa pela iconografia, e mostra

preocupações mais contemporâneas da área. Com tal intuito, esta comunicação tem como objetivo comparar as representações atribuídas a Mantegna com imagens anteriores de mesma temática. Desta forma, pretende-se assinalar como aquelas quatro representações da Descida ao

Limbo apropriam-se de tradições iconográficas anteriores ao artista, e

apontar como tais tradições são renovadas, criando imagens impactantes e dramáticas.

No Trecento, as representações da Descida ao Limbo são mais comuns em Igrejas, em afrescos nas paredes ou em painéis de madeira. Tais representações trazem a tona uma série de tradições, principalmente no que se refere ao tratamento do espaço, das figuras de Cristo e dos Patriarcas e da composição da cena. Elas serão trabalhadas por diversos pintores dos principais centros do norte da Itália como os já citados Duccio (c.1255- 1316)7 e Giotto (c.1266-1337).8 Ao observar suas representações da Descida

ao Limbo, podemos apontar algumas características principais comuns,

como a caverna rochosa onde se localiza o Limbo, com um pórtico destruído e um espaço interno mostrado através de paredes recortadas, permitindo ao observador entender o que se passa. A cena é construída da esquerda para a direita, como que contando uma história – característica comum na iconografia religiosa da Idade Média – e a figura de Cristo é representada à esquerda, se agachando a fim de alcançar a mão de Adão, segundo a passagem. Outros importantes pintores do Trecento, como Pietro Lorenzetti (c.1280-1348),9 que representa o tema em Assis, e Andrea da Firenze

(c.1343-1377),10 mostram o tema segundo as mesmas tradições – o Diabo

geralmente representado no chão, aos pés de Cristo, marcando Sua vitória. Este já carrega o estandarte da Ressurreição com a cruz, nas cores vermelha e branca. As figuras dos Patriarcas são representadas justapostas em quantidade variável.

Essas características comuns às imagens da Descida ao Limbo do

Trecento, denotam tradições de representação da temática e se mantém como

indicativos de um novo valor do espaço nas composições. No Quattrocento, com o desenvolvimento de uma apurada teoria artística, o tratamento do espaço ganha assim, novos rumos, mas os elementos principais continuam representados de maneira semelhante. Em exemplos como o de Fra Angelico (c.1395-1455)11 e o do Maestro Dell’Osservanza (ativo em Siena em 1445-

55),12 o momento da passagem é outro, ou pelo menos a maneira como foi

solucionada a representação da narrativa. Aqui, Cristo está dentro do Limbo, quando estende o braço direito a Adão. Isso implica em uma diferente disposição espacial, pelo menos na representação de Fra Angelico, toda centrada no espaço interno do Limbo. As figuras dos Patriarcas se aglomeram no centro da cena, colaborando com uma idéia de profundidade espacial passada pelo jogo de luz e sombras, do interior da caverna.

Dois outros expoentes do Quattrocento, no entanto, mostram uma continuidade daquelas tradições: Jacopo Bellini (c.1396-c.1470) e Donatello (c.1386-1466). Esses dois exemplos são especialmente importantes. Bellini chefiava um studiolo em Veneza, e logo depois em Pádua. Nesta última cidade, vem a ser mestre de Andrea Mantegna, então com cerca de 23 anos. Donatello é considerado o mais influente artífice do Quattrocento, e

também trabalhou em Pádua. Tanto o painel de Bellini,13 quanto o púlpito

esculpido de Donatello,14 apresentam as mesmas características de

representação espacial, composição e disposição da cena para o observador. Donatello, mais do que outros até aqui, dá dramaticidade a cena, mostrando um Cristo que avança com dificuldade, no Limbo, em meio aos Patriarcas. Aqui, vem a tona uma nova imagem, gravada em metal e impressa não muitas vezes. A gravura, atribuída a Andrea Mantegna15 e seu ateliê,

mostra novas soluções para as preocupações artísticas acerca da temática até então. A representação do espaço muda completamente. O observador, que antes contemplava a cena, visualizando o interior Limbo independentemente da composição, agora em certa medida participa da mesma, ao se deparar com a entrada do Limbo a sua frente e com o Cristo representado de costas, adentrando a escuridão das profundezas. As outras figuras, antes muitas e justapostas, agora são representadas esparsas e em menor número. Tais soluções configuram importantes inovações artísticas. É interessante observar que a composição da gravura foi desenvolvida em dois desenhos preparatórios contemporâneos a ela. O primeiro,16 é

sobretudo um estudo para a representação – a concepção original da temática, que será aperfeiçoada. Os elementos característicos da representação, como o rochedo; bem como suas principais figuras – Adão, Eva e São Dimas, o Bom Ladrão – já estão presentes e virão a ser recorrentes com o novo tratamento espacial, nas obras posteriores. O segundo desenho17

manterá os mesmos elementos, mas é possível notar a evolução da idéia de composição. Esse é possivelmente o esboço-base para a gravura – compartilha com ela todos os elementos, com poucos detalhes diferentes. Nota-se também a questão do nu, na representação de Adão, Eva e São Dimas. Mantegna faz aqui um exercício de virtuosismo técnico trabalhando com tradições clássicas, ou seja, observando modelos greco-romanos. Esta, que será uma tendência geral na Itália, ainda não é tão comum na segunda metade do Quattrocento, ao que se refere a imagens religiosas.

Andrea Mantegna fica sem trabalhar a temática da Descida ao Limbo por algum tempo, só voltando a representá-la em uma pintura em painel, por volta de 1492.18 A pintura mostra a idéia completa, com ênfase na descida

de Cristo, propriamente. Comparando-a com os trabalhos anteriores do artista, temos agora um novo elemento de grande importância para a composição: as cores. O tom avermelhado domina a cena e cristo, com reflexos dourados em suas vestes, é transformado em um foco de luz em oposição a escuridão das profundezas à frente.

É importante salientar que o painel foi encomendado pelo próprio Marquês de Mantua, senhor de Mantegna. O fato reitera a idéia da importância dessa temática para a questão da Salvação, isto é, mesmo sendo imagens feitas por leigos e para leigos, artistas e mecenas estão preocupados com tais questões.

Com base nas comparações apontadas, podemos concluir que Mantegna apropria daquelas tradições artísticas, os elementos principais que caracterizam o tema da Descida ao Limbo. Desta forma, também representa a caverna escura no rochedo, as figuras principais como Adão, Eva e São Dimas, assim como o Cristo agachado, que adentra as profundezas. Tais elementos porém, são tratados de forma engenhosa e inovadora, principalmente no que se refere à representação espacial, e à composição da cena. É esse jogo de tradições e inovações19 que caracterizará

as imagens do Quattrocento, assegurando os trabalhos de Andrea Mantegna entre seus principais expoentes.

Notas

* Graduando em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1 LE GOFF, Jacques. Além. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (org.)

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002.

p. 21.

2 LE GOFF, Jacques. La Naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1991. 3MANCA, Joseph. Andrea Mantegna and the Italian Renaissance. New York: Parkstone, 2006.

4MARTINEAU, Jane (ed.). Andrea Mantegna. Milão: Electa, 1992. (Catálogo da exposição apresentada no Metropolitan Museum of Art, em New York e na Royal Academy, em Londres, Jan-Jul 1992).

5 BELTING, Hans. Likeness and Presence. A history of the image before the era

of art. Chicago: University of Chicago Press, 1996. Na Monografia, em composição,

pretende-se aprofundar essa questão conceitual.

6 VARAZZE, Jacopo. Legenda Aurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 7 DUCCIO DI BUONINSEGNA, 1308-11, Tempera sobre madeira, 51 x 53,5 cm - Museo dell’Opera del Duomo, Siena. Ver foto: http://www.repro-tableaux.com/ kunst/duccio_di_buoninsegna/maesta_ descent _limbo_hi.jpg

8 GIOTTO DI BONDONE, 1320-25, Tempera sobre madeira, 45 x 44 cm - Alte Pinakothek, Munique. Ver foto: Web Galery of Art: http://www.wga.hu/art/g/ giotto/z_panel/3polypty/6limbo.jpg

9 PIETRO LORENZETTI, c.1320, Afresco – Igreja de baixo, São Francisco, Assis. 10 ANDREA DA FIRENZE, 1365-68, Afresco, Cappella Spagnuolo, Santa Maria Novella, Florença. Ver foto: http://gallery.euroweb.hu/art/a/andrea/firenze/ descent.jpg

11 FRA ANGELICO, c.1450, Afresco, 183 x 166 cm, Museo di San Marco, Sala 31, Florença. Ver foto: http://www.abcgallery.com/A/angelico/angelico63.JPG 12 MAESTRO DELLA OSSERVANZA, c.1445, Tempera e ouro sobre madeira, 38 x 47 cm, Fogg Art Museum, Cambridge, Massachusetts. Ver foto: http:// www.wga.hu/art/m/master/osservan/passion2.jpg

13 JACOPO BELLINI, c.1440-55, Museo Civico, Padua.

14 DONATELLO, Púlpito Norte, 1460-65, Bronze, 137 x 280 cm, Igreja de San Lorenzo, Florença. Ver foto: http://www.wga.hu/art/d/donatell/3_late/lorenzo/ pulpit13.jpg

15 ANDREA MANTEGNA, c.1465-70, Gravura, 44 x 35 cm, Gravura em metal, Biblioteca Nacional, RJ. Ver foto: http://oac.cdlib.org/affiliates/images/grunwald/ gcga_1962.14.1_1_2.jpg. A atribuição é feita por David Landau, e apoiada por Jane Martineau. In: MARTINEAU, Jane. Op. Cit., p. 263

16 ANDREA MANTEGNA, c.1465-70, Pena sobre papel, 27 x 20 cm, Metropolitan Museum of Art, NY. In: MARTINEAU, Jane. Op. Cit., p. 260

17 ANDREA MANTEGNA, c.1470, Pena sobre papel, 27 x 20 cm, Biblioteca da École Supérieure des Beaux-Arts, Paris. In: MARTINEAU, Jane. Op. Cit., p. 262. 18 ANDREA MANTEGNA, 1492(?), Pintura, 38,8 x 42,3cm, Tempera e ouro sobre madeira, The Barbara Piasecka Johnson Collection, Princeton. In: MARTINEAU, Jane. Op. Cit., p. 269 e 270.

19 GOMBRICH, Ernst. Tradition and Innovation: I. In: ___. The Story of Art. London: Phaidon Press, 2006. p. 183.

“A ESCRITORA IGNORA INTEIRAMENTE A GRAMÁTICA”

No documento Atas da VII Semana de Estudos Medievais (páginas 33-37)

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