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Existiu um debate sobre a questão da forma com que o racismo científico foi pensado e introduzido no Brasil. Teriam os intelectuais brasileiros apenas seguido o que se discutia nos países europeus? Teriam estes intelectuais aceitado tal questão de forma a reproduzirem o que se discutia no exterior ou haveria algo mais? Existiriam fatores internos no Brasil que estimularam essa forma de se analisar o país?

Uma primeira discussão pode ser analisada a partir de Nelson Werneck Sodré, em A

ideologia do colonialismo, onde o autor defende a idéia de que as teorias racistas foram

admitidas em razão da pobreza do meio intelectual brasileiro e por serem essas idéias predominantes em seu tempo. Assim, para aquele autor, os intelectuais reproduziam a ciência da sua época:

“Aqueles que, internamente, permitiram a vigência da ideologia do colonialismo, veiculando as suas teses e contribuindo para manter os seus preconceitos e absurdidades, começaram por aceitar a postulação externa, supondo-a universal. Aceitavam-na, inclusive, porque isso distinguia, isto é, assinalava uma qualificação intelectual”95.

Ele porém faz exceção somente a Oliveira Vianna, considerando-o um caso à parte, porque ele adotava as teorias racistas de uma forma deliberada, quando essas teorias já haviam sido contestadas.96

Sodré via neste processo de assimilação um processo de adoção de idéias na forma de absorção, de transplantação de uma mentalidade, de uma cultura para outra. Tal processo estava vinculado também a uma lógica onde os intelectuais brasileiros, vivendo num país atrasado, sem tradição científica ou mesmo intelectual, e totalmente dependentes do exterior, necessitavam importar ou copiar modelos de lá. Dessa forma, seriam agentes passivos de reprodução das idéias vindas do exterior na sociedade brasileira.

Outra discussão entre os intelectuais surgiu com o texto de Roberto Schwarcz As

idéias fora do lugar, no qual o autor defendia a idéia de que as teorias racistas eram

copiadas pelos intelectuais brasileiros de forma a apareceram deslocadas em relação a seu

95Sodré, Nelson Werneck. A Ideologia do colonialismo, Petrópolis, Vozes, 3º edição, 1984, p. 14 . 96 Sodré abordou Vianna em seus textos, em especial em a Ideologia do colonialismo e também,

uso ou sentido frente à realidade brasileira.

Renato Ortiz é bastante crítico em relação a essa problemática de “reprodução” ou “cópia da idéias”. Para ele, os intelectuais brasileiros não adotavam as teorias raciais como uma simples imitação dos estrangeiros; mais do que isto, a absorção dessas teorias deveria ser explicada pela realidade brasileira. Ele menciona o fato de Manoel Bomfim ser contemporâneo de um Nina Rodrigues, mas ambos terem percepções antagônicas sobre a questão racial, posto que Bomfim é abertamente anti-racista, refutando como “falsa ciência” todas as teorias raciais aceitas pelos outros intelectuais brasileiros.

Renato Ortiz menciona ainda que as teorias racistas já estavam sendo questionadas na Europa quando se tornaram hegemônicas no Brasil. Todavia, autores como Manoel Bomfim, puderam trabalhar com idéias diferentes daqueles intelectuais que absorviam as concepções de um Gobineau, por exemplo.

Ortiz lembra um fato importante, que é a questão da escolha. Os intelectuais não assimilavam as idéias por mera “cópia” ou imitação; eles as assimilavam porque tinham o interesse em assimilar. É nesse contexto que Ortiz faz um paralelo com a situação política daquele momento. A escolha estava vinculada a uma necessidade de se construir uma identidade nacional:

“Nesse sentido, as teorias ‘importadas’ têm uma função legitimadora e cognoscível da realidade. Por um lado elas justificam as condições reais de uma República que se implantado como nova forma de organização político- econômico, por outro possibilitam o conhecimento nacional projetando para o futuro a construção de um Estado brasileiro.” 97

Ele comenta que a perspectiva de o branqueamento ser algo projetado para o futuro está em perfeita adequação com a idéia da nação brasileira ser vista em formação, como uma meta, um projeto, um objetivo a ser atingido em futuro incerto.

Nelson Werneck Sodré, porém, faz uma grande ressalva a esta discussão. Para ele existiram autores que de fato forma influenciados pelo meio da época, enquanto outros o fizeram por uma escolha deliberada.

Como ele diz:

“É preciso, por tudo isso, ser tolerante para com Azevedo Coutinho, compreender a

97Ortiz, Renato, Cultura Brasileira e identidade nacional, São Paulo, Editora Brasilense, 5º edição, 1985, p. 31

circunstância em que trabalhou Sílvio Romero, e aquela em que Euclides da Cunha alternou intuições com incompreensões, como é razoável situar a obra indianista de José de Alencar dentro das características de uma época escravocrata. Para com Oliveira Vianna, não é preciso tolerância alguma- o seu tempo lhe permitia situar e compreender melhor os problemas, - ele realizou uma opção deliberada.” 98

Emilia Viotti da Costa é ainda mais contundente. Para ela, os intelectuais brasileiros não estavam absorvendo ou respondendo às teorias e idéias do exterior; eles as escolhiam em função das que melhor se adequavam à realidade brasileira contemporânea. Nessa perspectiva, os intelectuais brasileiros não eram passivos receptadores destas teorias, vítimas de uma mentalidade colonial. Seria

“mais correto dizer que eles viam aquelas idéias através de sua realidade. A elite branca brasileira já tinha em sua própria sociedade os elementos necessários para forjar sua ideologia racial” 99 .

Agindo dessa forma, os intelectuais brasileiros estavam interpretando tais teorias com o claro objetivo de adequá-las à realidade brasileira, produzindo teorias e idéias apropriadas aos interesses da elite dominante brasileira, da qual eles faziam parte:

“Assim, embora afirmando que a superioridade dos brancos sobre os negros, eles tinham meios para aceitar negros em seus grupos. E tinham a esperança de eliminar o ‘estigma’ negro no futuro, através da miscigenação”100.

Mas existe um outro ponto a ser debatido: se os intelectuais apenas copiavam os modelos estrangeiros ou se escolhiam os modelos a serem adaptados à realidade e aos interesses da elite do país, por que esses intelectuais produziram obras que, apesar de serem questionáveis em muitos aspectos pelos padrões teóricos atuais, ainda despertam interesse e têm uma importância histórica?

Edward Said afirmou que

“uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e

as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a

98 Sodré, Nelson Werneck. op.cit., p. 14 99Costa, Emilia Viotti. op.cit. p. 373 100Idem, p. 374

comunicação”.101

Esta talvez seja a importância dos autores aqui estudados: Sílvio Romero tinha um verdadeiro interesse pelo folclore e pela cultura popular, o que contrariava as perspectivas de uma sociedade que desprezava a população pobre brasileira; Nina Rodrigues, estudando o negro, procurou analisá-lo não como um ser passivo, mas sim como um agente ativo na história brasileira, assim como Euclides da Cunha, que tinha interesse em compreender o povo sertanejo e Oliveira Vianna no seu estudo sobre a sociedade rural brasileira e as bases materiais das relações de poder. Apesar de presos à ideologia racial, esses autores mostravam um real interesse em compreender o povo brasileiro. E por que compreender este povo? Para que estudar o povo brasileiro? Devemos pensar no momento histórico, com o final da abolição e a República.

O seu objetivo maior estava vinculado à criação do ideal de nação, ou seja uma “comunidade imaginada” brasileira. Assim, foram eles buscar como material de análise setores antes desconhecidos ou desprezados pelos outros intelectuais: isto se deu com a cultura popular, com o negro, o sertanejo e o mundo rural. Eles fazem parte da essência do que conhecemos como Brasil. O Brasil real estava longe das grandes cidades ou em setores desprezados das mesmas (como o caso do negro).

O pioneirismo e a busca de entender a realidade nacional, à parte suas teorias racistas, bem como muitas de suas conclusões é que produziam uma tensão que mantém o interesse ainda nos dias de hoje na leitura das suas obras.

De acordo com Roberto Ventura:

“Os letrados se mostravam divididos entre a valorização dos aspectos originais do povo brasileiro e a meta de se construir uma sociedade branca de molde europeu. Adotavam teorias sobre a inferioridade das raças não-brancas e das culturas não européias, ao mesmo tempo que buscavam as raízes da identidade brasileira em manifestação compósitas e mestiças.”102

É por isso que as teorias racistas sofriam de muitas contradições e tensões quando aplicadas à realidade brasileira. Todos eles, de certa forma, têm dificuldade em trabalhar exatamente com este ponto: o de adequar as teorias, enfrentar as contradições dominantes

101Said, Edward. Representações do intelectual. Companhia das Letras, SP, 2005, p. 10

102Ventura, Roberto. “Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da Monarquia à República”. in.

do meio e achar uma resposta, uma solução para o problema brasileiro.

Como resultado desta tensão é que se pode abrir um espaço para a compreensão da realidade brasileira e o surgimento de uma nova percepção das características de seu povo.

Todos os autores deste período – sejam eles racistas ou, como Manoel Bomfim, anti- racistas – trabalharam com essa problemática. Para todos, havia a necessidade de encontrar as causas do fracasso brasileiro em se modernizar.

Roberto Ventura entende que

“a questão étnica se tornou central no momento de implantação do regime republicano e do trabalho assalariado. O racismo científico foi adotado, de forma quase unânime, partir de 1880, enviesando as idéias liberais, ao refrear suas tendências democráticas e de argumentos para estruturas sociais e políticas autoritárias.”103

É dessa preocupação que as obras de autores como Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna se ocupavam, mostrando uma tensão constante entre tais teorias e a realidade por eles estudada. Nessas obras, podemos verificar a preocupação em tentar encontrar os fundamentos da nação e do povo brasileiro, aquilo que daria um sentido ao país.

Por esta razão, baseados nas teorias racistas como uma forma de análise, eles foram estudar o “povo” brasileiro, percebendo que havia mais nesse “povo” do que as teorias racistas podiam prever. Ao analisar a experiência histórica frente às teorias, puderam expressar as tensões no pensamento racista e iniciaram, assim, o caminho para outros estudos sobre a sociedade brasileira.

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