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Do ponto de vista intelectual, o Brasil, no século XIX, era bastante limitado. Somente depois da independência, em 1827, diante da necessidade de se criar uma

inteligentsia nacional, que conhecesse e administrasse a realidade do país, é que foram

criadas a escola de Direito de São Paulo, no largo São Francisco (atualmente parte da Universidade de São Paulo), e a escola do Direito do Recife, precedidas pelo curso de

50Ventura, Roberto. Euclides da Cunha.- em esboço biográfico, Op.cit, p. 182 51 Idem, p. 98

Medicina, em Salvador, quando da vinda da família real portuguesa para a colônia.

Na segunda metade do século XIX, este quadro praticamente não havia sido alterado. O Brasil ainda era um país onde a maioria da população estava marginalizada ao acesso à educação básica, e apenas começavam a se estruturar as instituições de ensino superior e de pesquisa – tais como as faculdades de Direito e o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) -, com o objetivo de formar quadros intelectuais e administrativos.

O IHGB foi criado em 1838, com o objetivo de criar a idéia de uma “nação brasileira”, construindo uma história e uma geografia que legitimassem a fundação do Império brasileiro. O Instituto era financiado pelo próprio Imperador, num misto de mecenato e instrumentalização.

O papel de debater as mudanças no pensamento brasileiro coube às faculdades de Direito.

Na década de 1870, logo após a guerra do Paraguai, houve um intenso momento de discussão da ordem nacional. O Brasil era um país que estava passando por um processo de concentração da população nas cidades (mas ainda com a maioria vivendo no campo), com um surto de desenvolvimento e riquezas trazidas pelo café e outros produtos de exportação, desenvolveram-se novas concepções de nação, o que levava à discussão de temas como Abolição da escravidão e República.

Dentro deste quadro, vale a pena destacar o papel exercido pela Faculdade de Direito do Recife, ou como acabou sendo conhecida pela sua influência, o grupo “A escola do Recife”. Esse grupo, adotando a filosofia alemã, e o pensamento de autores de diferentes nacionalidades européias, como Spencer, Gobineau e Darwin, produziu um novo modo de pensar sobre a sociedade brasileira, dando uma interpretação que contrastava em muito com a visão estabelecida pela monarquia e pelo movimento literário romântico (apesar de manter, de certa forma, o espírito romântico nas interpretações da realidade nacional).

Surgiu uma teoria nacionalista, “científica”, evolucionista e baseada em idéias racistas sobre a formação da sociedade brasileira, bem como de sua história e das perspectivas para seu futuro.

Nesse processo, vale a pena mencionar a importância de Tobias Barreto. Este autor iniciou uma renovação do pensamento brasileiro, principalmente ao adotar uma postura “cientificista”, em sua tentativa de compreensão da realidade brasileira, como nos explica

Lilia Schwarcz:

“A recepção dessas teorias científicas deterministas significava a entrada de uma discurso secular e temporal que, no contexto brasileiro, transformava-se em instrumento de combate a uma série de instituições assentadas”.52

Uma característica desse grupo se baseava na idéia de que toda a realidade pode e deve ser comprovada cientificamente, negando assim as crenças religiosas, a metafísica e tudo o mais que não pudesse ser provado naquela direção.

Barreto e, em particular, seu aluno e sucessor Sílvio Romero começaram a questionar a posição em que se encontrava o Brasil – monárquico, escravista, atrasado –, pensando numa nova nação, próspera, livre e que responderia por si mesma. Isto era condizente com o pensamento da época em todo o mundo, ou seja, na idéia de progresso e desenvolvimento que havia sido construída pelo imperialismo mundial.

Esse acabou sendo um dos objetivos de Romero na sua tentativa de construir uma nova forma de entender o Brasil, seja através do estudo do folclore e da poesia popular (conhecendo as “raízes” do povo brasileiro), seja através da literatura, e vinculando esses estudos às teorias racistas que se discutiam em seu tempo.

Sob um outro aspecto, é importante dizer que o surgimento da Escola do Recife estava em sintonia com o seu tempo, em termos internacionais. Como lembra Eric Hobsbawm, era comum surgirem em vários países “emergentes”, grupos, em geral vinculados a instituições acadêmicas, com a finalidade de discutir a questão nacional, mas sem de fato possuírem um respaldo ou apoio popular. A identidade desse grupo

“consistia basicamente de um extrato social intermediário entre as massas e a

burguesia ou a aristocracia existentes (se tanto), especialmente os literatos: professores, camadas inferiores do clero, alguns pequenos comerciantes e artesãos urbanos, e aquela espécie de homens que tinham conseguido subir ao ponto máximo possível para os filhos de um campesinato subordinado numa sociedade hierárquica. Eventualmente os estudantes - de algumas faculdades, seminários, colégios com orientação nacional – forneciam a estes grupos um ativo corpo de militantes.” 53

A escola do Recife evidenciava o processo de integração e inserção do Brasil e dos

52Schwarcz, Lilia, O espetáculo das raças, op.cit., p. 150

intelectuais brasileiros dentro da esfera mundial, bem como o movimento e a necessidade de setores da sociedade brasileira de procurar modernizar o país.

Brito Broca faz uma análise pertinente, ressaltando um ponto crítico sério que era a percepção das questões raciais, que haviam ganho um novo plano, embora fossem marcadas pela situação vivida pelo negro, recém-saído do cativeiro. Assim ele diz que:

“O movimento científico da Escola do Recife, sob a influência germânica, em lugar de proclamar a legitimidade da nossa formação étnica, carregara ainda mais no preconceito, levando-nos a ver na mestiçagem um fator de decadência da nacionalidade.”54

Esta situação estava, porém, bastante vinculada ao imaginário criado pelas teorias raciais em todo o mundo, o que mostrava o vínculo destes intelectuais com os demais dos outros países.

Já Roberto Ventura assinala que o progresso e a modernização foram questões centrais da “Escola do Recife”, propondo trabalhar na afirmação de uma literatura nacional:

“A existência de uma literatura nacional, com obras e autores originais, se ligava à afirmação da autonomia e de soberania da recém-fundada nação brasileira.”55

As escolas de Direito desempenhavam o papel de universidades, verdadeiras “universidades antecipadas”, como definiu Marcos Silva: promover debates, estudos e discussões sobre a ordem brasileira e a situação mundial, inclusive num plano de multiplicidade disciplinar56.

O quadro que mais chamava a atenção era o da limitação acadêmica. Existiam, no século XIX, somente duas faculdades de Direito (a de São Paulo e a do Recife), Medicina no Rio de Janeiro e em Salvador e Engenharia no Rio de Janeiro, mais a Escola de Minas de Ouro Preto. O acesso às escolas superiores no Brasil era extremamente limitado.

Além da Escola do Recife, uma outra instituição de ensino superior que exercia

54 Brota, Brito. A vida literária no Brasil – 1900, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 4º edição, 2004, p. 157

55 Ventura, Roberto. “História e critica em Sílvio Romero”. In Romero, Silvio. Compêndio de História da

literatura brasileira, Rio de janeiro, Imago, 2001, p. 10

influência no pensamento do Brasil era a Faculdade de Medicina da Bahia. Localizada em Salvador, perto do pelourinho, no Terreiro de Jesus, esta foi a primeira faculdade fundada no país, em 1808. Nesta instituição, debatiam-se idéias importantes, vinculando o conhecimento médico ao direito e à sociologia, produzindo uma combinação que teria um grande impacto não somente sobre a Escola do Recife, mas também na divulgação do pensamento brasileiro, principalmente com a formação da Medicina Legal, que era um campo novo no país.

O papel desempenhado por Nina Rodrigues foi fundamental para a formação deste centro de conhecimento, uma vez que ele trabalhou com bastante afinco na estrutura da Medicina Legal57 e também na aplicação das teorias raciais e criminalistas européias

(principalmente a italiana, a de Lombroso), como base teórica de trabalho.

O movimento da Bahia, embora não tenha tido o impacto do de Recife, teve uma influência grande, em especial na formação do pensamento racial brasileiro. Ele procurava ironizar a escola do Recife, criticando Tobias Barreto e na idéia de “livre-arbítrio”. De fato, eram duas linhas de pensamento, que apesar das diferenças, acabavam interagindo e se aproximando, em particular no que diz respeito à questão racial.

Apesar destes centros de ensino, podemos perceber, portanto, que a educação escolar era precária, a maioria da população não tinha quaisquer meios de ter acesso a escola, quanto mais a um curso superior. O analfabetismo era gritante. A constituição de 1891, por exemplo, facultava o direito ao voto somente aos homens com mais de 18 anos e alfabetizados, o que reduzia drasticamente a quantidade de pessoas aptas a votar (menos de 5% da população).

A falta de uma estrutura maior ficava evidente na circulação de livros e jornais, limitados sempre a uma parcela muito pequena da sociedade. Os poucos intelectuais brasileiros viviam de empregos públicos pela falta de um público leitor em uma quantidade suficiente que pudesse mantê-los com a renda de seu trabalho específico. O âmbito de discussões e de troca de idéias era quase sempre restrito somente à elite. Autores como Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues (que foram todos contemporâneos) escreviam entre si e se citavam o tempo todo: Sílvio Romero fez um discurso famoso

57 Vale lembrar que vários institutos médico-legais no Brasil foram fundados pelos seus “discípulos”, tais como Afrânio Peixoto (no Rio de Janeiro) e Oscar Freire, em São Paulo. O Instituto Médico Legal de Salvador, é chamado de “Instituto Médico-legal Nina Rodrigues”

quando da entrada de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras; algumas observações em Os sertões provavelmente são fruto de estudo das obras de Romero; Nina Rodrigues foi muito influenciado por Romero, deixando isto claro em sua obra; e ao final de Os sertões, como bem lembra Roberto Ventura,

“Euclides ironizou (...) Nina Rodrigues como o representante da ciência encarregada de dar a “última palavra” sobre Canudos pelo exame do crânio de Antônio Conselheiro”.58

Num ambiente cultural erudito relativamente restrito, as discussões acadêmicas surgiam a todo o momento. Na maioria das vezes, essas discussões acabavam entrando para o rol das polêmicas, onde se evidenciava uma busca de ofender o outro, na tentativa de provocá-lo, para criar discussões que, na maioria dos casos, partia para o lado pessoal, colocando a própria discussão acadêmica em segundo plano.

De acordo com Ventura, em seu livro Estilo tropical: história cultural e polêmicas

literárias no Brasil59, Sílvio Romero fazia debates e polêmicas contra todos os intelectuais

de seu tempo, como Manoel Bomfim (que não quis polemizar com ele), Machado de Assis, José Veríssimo, Teófilo Braga, entre outros. As polêmicas faziam parte da vidas desses intelectuais, acostumados a freqüentar os mesmos lugares e constituíam assim, uma espécie de “clube” e círculo de amigos e influências.

Em decorrência deste mundo intelectual restrito, Machado Neto lembra que todos intelectuais eram, portanto, autodidatas – a inexistência das Universidades favorecia que os intelectuais investissem em áreas nas quais não tinham quaisquer formação ou conhecimento acadêmico – o que é o caso dos quatro autores estudados aqui: Sílvio Romero e Oliveira Vianna eram formados em Direito, ao par que Nina era médico e Euclides, engenheiro. Porém, Machado Neto faz aqui uma ressalva importante:

“A presença do autoditatismo, embora marcante no sentido de que os nosso escritores e pensadores não tinham, no comum, formação escolar específica no âmbito do saber que versava, em suas obras, ao pé da letra e no sentido mais rigoroso não constituía um contingente representativo.”60

58Ventura, Roberto, Um Brasil mestiço. Op.cit p. 351

59Idem. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, Companhia das Letras, 1990. 60 Machado Neto, l. Estrutura social da República das Letras, São Paulo, São Paulo, Editorial Grijaldo,

De fato, a polêmica se tornou parte do pensamento neste período, transformando-se em mais questões pessoais do que do debate intelectual propriamente dito. Como ressalta Ventura:

“Polêmicas surgidas de questões secundárias se desviavam para debates de erudição e defesas da honra, em que o desafiante buscava provar sua “superioridade” sobre o oponente.”61

E complementando ele diz que:

“Discutia-se tanto a origem das raças e o conhecimento de línguas estrangeiras, quanto a doutrina eclesiásticas, minúcias gramaticais e até gênero do substantivo arquitrave. Das ameaças e zingamento, os adversários chegavam a processo de difamação nos tribunais e mesmo ao suicídio, recurso extremo na defesa da honra ultrajada”62

Machado Neto ilustra bem o quadro que se formou à partir deste “clube” de intelectuais, marcados principalmente pela formação da assim chamada boêmia literária, marcada pelas discussões intelectuais e literárias – quando não das polêmicas, conforme mencionado anteriormente. Assim diz o autor:

“com as mudanças sociais e a relativa modernização do país suscitadas pela abolição e pela República a boêmia tradicional se foi metamorfoseando na boêmia dourada dos dandys. Em torno de 1900, já é essa a doutrina, não mais os cafés e restaurantes, mas os salões onde a literatura se tinha assimilado ao mundanismo da metrópole cosmopolita e civilizada em que o Rio timbrava por transformar-se.”63

Brito Broca também ilustrou a importância destes salões literários. Ele lembra que nos tempos do Império, eram quase inexistentes, mas com a República ganharam um novo alento e espaço. Assim ele diz que depois da instabilidade político-social que surgiu com a República, este salões literários ganharam vida e um espaço cada vez maior:

“Mas no começo do século, a crescente valorização das letras e a espécie de aliança que elas então fizeram com o mundanismo, contribuíram para que

61 Ventura, Roberto. Estilo tropical. Op cit. p. 79 62 Idem, p. 79

surgissem alguns salões de caráter acentuadamente literário.” 64

Broca ainda ressalta a importância destes salões literários vinculados a um outro intelectual, formando assim grupos literários. Neste lugares os assuntos prediletos eram a literatura e a ciência, ou como os “homens de sciencia” entendiam sobre estes assuntos, como ironiza Lilia Schwarcz65. Debatiam os temas mais gerais, tais como a situação

política, a falta de um maior estudo sobre os problemas do país, a carência da educação popular, entre outros.

Portanto, a literatura era um dos temas mais importantes em discussão, como também salienta Nicolau Sevcenko, em A literatura como missão, onde estudou a questão de sua importância no engajamento dos intelectuais brasileiros66. Sevcenko ilustra o

caráter fundamental que a literatura adquiriu na transição do século XIX para o XX, traduzindo as mudanças sociais e políticas brasileiras -

“mudanças que foram registradas pela literatura, mas sobretudo mudanças que se transformaram em literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir.67

E complementando, ele diz que a criação literária era

“encampada por homens de ação, com predisposição para a liderança e gerência político-social: engenheiros, militares, médicos, políticos, diplomatas, publicistas.”68

A questão do estudo da literatura é de especial importância, como vemos em José Veríssimo, Euclides da Cunha (O sertões pode ser interpretado tanto como uma obra “científica” como literária) e Sílvio Romero, que defendia a literatura como forma de análise histórica e social, de acordo com Alberto Luiz Schneider.69

Uma critica que vários escritores deste tempo (entre os quais, Manoel Bomfim, Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna) faziam era à falta de uma dedicação desses intelectuais à compreensão das coisas brasileiras, à necessidade de

64 Broca, Brito. Op cit, p. 60 65Schwarcz, Lilia, op.cit. p. 23

66Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão, Companhia das letras, SP, 2004 67 Idem, p. 286

68 Idem, p. 287

estudar o país e principalmente à forma como os intelectuais faziam para assimilar as idéias que vinham do estrangeiro, adotando-as sem fazer críticas nem uma análise da realidade brasileira. Esse tema gerou polêmicas em seu tempo, que, de certa forma, ainda se estendem para os dias atuais.

A crítica que Romero fazia a esse respeito era bastante contraditória, uma vez que era comum entre os intelectuais de seu tempo - inclusive ele próprio, representante da Escola do Recife – fazer estudos brasileiros com base em teorias estrangeiras. Mas isto era uma dimensão também da carência intelectual em que vivia o país, onde a falta de um maior meio cultural e acadêmico provocava a necessidade de se buscar no exterior modelos teóricos a serem aqui implementados.

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