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Da Idade Média à atualidade

Historicamente, os jejuns autoimpostos estão presentes em diversas religiões, não significando necessariamente um transtorno alimentar. No Egito antigo, por exemplo, praticavam-se jejuns curtos (alguns dias) como procedimento de preparação do corpo para receber visões sagradas. A abstinência alimentar era uma forma de purificação e devoção. Nas filosofias e religiões orientais, o jejum prolongado era prática comum. Existiam filosofias baseadas na busca do domínio das paixões para o alcance da perfeição divina, como é o caso do Jainismo.

O objetivo do Jainismo é libertar a alma de seu aprisionamento corporal por meio de extremo auto-controle e austeridade, em imitação a Vardhhamana, seu fundador, que viveu na Índia no século VI a.C. (WEINBERG, 2006, p. 22).

Essas filosofias e religiões orientais começaram a se difundir no Império Romano a partir do século I d.C. e, junto com a criação de escolas filosóficas helenísticas baseadas nos pensamentos de Pitágoras e Platão, criaram o ambiente em que surgiram as concepções gnósticas. “O gnosticismo é a primeira tentativa de uma filosofia cristã: tentativa conduzida sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos, místicos, neoplatônicos e orientais” (WEINBERG, 2006, p. 22).

As diferentes escolas gnósticas têm como grandes temas a miséria do homem, prisioneiro do seu corpo; a dualidade cósmica, mundo material ruim em contraposição a um deus bom; apocalipse gnóstico, quando o mundo material sucumbiria e reinaria o mundo divino. Assim é postulado que o corpo seja habitado por uma alma ou espírito,

criando a dicotomia espírito e matéria. As formulações de que há algo que sobrevive à matéria e a criação de um mundo divino servem para amenizar das angústias humanas a respeito da morte, sendo bastante eficientes até os dias atuais.

É do pensamento gnóstico que surgiu alguns dos princípios fundamentais da religião católica. Santo Agostinho (354-430) criou sua filosofia a serviço da teologia. Apesar de muito influenciado por Platão, divergiu a respeito da tese platônica de que a alma foi exilada de sua habitação verdadeira ao ocupar um corpo humano, postulando que Deus criou todas as almas quando criou o ser humano. Para Platão, o corpo era um obstáculo para a sua natureza racional e a realização da natureza humana não consistia em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na morte. Somente livrando-se do corpo porção racional, poderia viver em sua plenitude. Já para Agostinho, o corpo era um instrumento para a expressão da alma. “O homem é, até onde podemos ver, uma alma racional fazendo uso de um corpo mortal e material” (AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). A alma se utilizaria do corpo e do mundo material para se desenvolver.

Para ele, havia duas formas de conhecer: o conhecimento sensorial (a mente utilizando os sentidos corporais para obter conhecimento) e o conhecimento da mente por ela mesma (uma espécie de iluminação, um conhecimento que se dá instantaneamente). “A razão é a visão da mente, pela qual ela percebe a verdade em sim mesma, sem a intermediação do corpo” (AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). Tanto para Platão como para Agostinho, a mente, na sua atividade mais elevada, tem acesso a um conhecimento divino, potencialmente disponível a todas as mentes humanas.

Este filósofo (Agostinho) distingue entre a natureza de entidades não racionais, que simplesmente satisfazem suas propensões naturais, e – ao lado destas – os seres racionais, para os quais a natureza tem uma dualidade, dado que podem não somente alcançar as propensões naturais como também possuem habilidade para escolher umas e reprimir outras. (COLLINSON, 2004, p. 54).

Atribui-se à característica de ter mente e à capacidade de elaboração racional o lado divino do ser humano, aquilo que o diferencia de todo o resto da natureza. Assim, postula- se que o homem é um ser à imagem e semelhança de Deus, o seu criador, dando à nossa espécie uma superioridade em relação às demais. Foram necessários 15 séculos para que Darwin propusesse a Teoria da Evolução, derrubando essa hierarquia.

É criada uma ordem inicial, quando todos os seres planeta viviam em perfeita comunhão, um paraíso que o homem, com sua ignorância, destruiu. A ordem posterior ao paraíso é cheia de complexidade e morte. Os seres humanos seriam em princípio algo ruim, deturpado, feio, destorcido e que participaria dessa desorganização. Assim foram criadas as diversas religiões cuja tendência era que sempre se olhasse para um anterior original.

Os alicerces da religião católica são construídos nessa separação entre o divino, belo, perfeito, justo, iluminado e o material, impuro, injusto, mau, das trevas. Ela foi estruturada no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., quando, por motivações políticas, é postulado que Jesus foi um ser divino (da mesma “substância” de Deus) e não um mortal como todos os outros humanos. Essa decisão tem por finalidade criar a figura de Cristo (do grego Christós), que significa ungido. Assim foram conferidos a Jesus um prestígio e uma autoridade cuja grandeza recaía sobre a própria Igreja Católica e assegurava seu poder, pois

o Ser Divino, que veio à Terra para salvar a humanidade das mazelas mundanas, passa a ser considerado o fundador dessa religião.

Esse Concílio foi organizado pelo Imperador Romano Constantino, que estrategicamente fez do Cristianismo a religião oficial do Império. Na época havia muitas religiões pagãs e, ao adotar uma religião monoteísta, criando o corpo de Cristo, o Imperador tratou de organizar a instituição da igreja de forma hierárquica e patriarcal, de modo que tivesse relação direta com a organização política do Império.

Tomando os cristãos sob sua proteção, ficou delimitado com clareza o campo adversário. Criou-se uma separação entre o mundo do Império Romano ordenado e temente a Deus e o mundo externo, o mundo dos erros, dos equívocos. Aquele que estivesse mais próximo desse centro estaria mais imune aos pecados e deformações da periferia. A criação desse centro de poder, a Igreja Católica, apaziguou essa idéia da destruição, do envelhecimento, da morte e de todas as separações constituintes da vida da espécie humana, que na sua enorme complexidade sempre conviveu com a consciência da perda. Todo poder totalitário cria a ilusão de permanência.

O Imperador tratou de dar unidade a essa religião, visando a fortalecer seu governo. No Concílio, composto por mais de 300 bispos, as decisões foram muito influenciadas por Constantino, que perseguiu e exilou os que foram contrários a suas propostas. Com a subida da Igreja ao poder, discussões doutrinárias passaram a ser tratadas como questões de Estado. Essa ideologia cristã associada a um poder totalitário vigorou durante toda a Idade Média, com a figura do senhor feudal.

Nos séculos XII e XIII foram feitas novas traduções adicionais da obra de Platão que passaram a ser secretamente estudadas pelo clero. No século XV, como reação à

Escolástica e a Aristóteles, um novo movimento neoplatônico ganhou força, especialmente na Itália. Justamente nessa época de retomada dos estudos de Platão, no século XII, começam a surgir casos de freiras jejuadoras que levaram seu intento até a morte. Muitas delas foram canonizadas santas, pois, segundo a Igreja Católica, conseguiram libertar o espírito da matéria. É o caso de Santa Clara de Assis (1193-1253), Santa Catarina de Siena (1347-1380), Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), Santa Rosa de Lima (1586- 1617), Santa Verônica Giuliani (1660-1727), entre tantas outras. Para essas mulheres, “o corpo é ao mesmo tempo o maior obstáculo, o maior inimigo e o meio de acompanhar o Redentor: o corpo que é preciso vencer, o corpo vetor de um procedimento sacrificial” (GÉLIS, 2008, p. 55).

A Igreja Católica, ao longo dos séculos, vem elegendo pessoas que após a morte são canonizadas santas. Essa ação serve para diminuir a distância entre as pessoas comuns e o divino, uma vez que o santo é sempre alguém que teve durante a vida uma conduta exemplar e por mérito atingiu a perfeição. Na prática, o santo serve tanto como modelo de comportamento e moral quanto como uma espécie de mensageiro de pedidos: ao invés de endereçar a súplica diretamente a Deus, usa-se o santo como um intermediário nessa relação. É o posto máximo que um ser humano pode atingir na hierarquia postulada pela Igreja Católica.

O grande problema da época era distinguir entre as mulheres que realmente eram santas das impostoras. Equipes médicas eram frequentemente solicitadas para dar seus pareceres sobre cada caso. Era surpreendente e inexplicável o fato de as freiras passarem tanto tempo sem dormir, ingerir alimentos, nem evacuar e ainda manter a disposição para o trabalho, boa aparência ao invés de caírem prostradas ou doentes. Por esse milagre eram

canonizadas. A maioria delas tinha grande poder político dentro da Igreja, apesar da hierarquia patriarcal vigente.

Há documentos de freiras agindo dessa forma até o fim do século XV, quando a Igreja começa a desestimular essa prática, devido ao grande número de freiras jejuadoras. São criadas regras mais rígidas para a canonização e os jejuns autoimpostos começam a ser considerados possessão do demônio e/ou bruxaria. É preciso ressaltar que o ascetismo das freiras medievais é apenas um aspecto do modo de expressar seus ideais religiosos. O jejum medieval é um símbolo dos valores coletivos, da elevação espiritual, da correção de caráter perante Deus. Seus corpos materializavam o ideal de perfeição espiritual da época.

Com o Renascimento, novos pensamentos sobre a prática dos jejuns começaram a surgir. As “doenças da alma” eram estudadas a partir de uma visão científica. A medicina passou a pesquisar e a buscar explicações para a sobrevivência em condições de inanição. Não havia mais a preocupação com o lado religioso dos jejuns, e o foco foi desviado para os mecanismos do corpo, para manter-se funcionando com pouco alimento. Surgiram nessa época os artistas da fomee os jejuns autoimpostos foram espetacularizados.

Kafka, em seu conto “Um artista da fome” (1922), fala sobre a vida de uma dessas pessoas. Descreve as glórias de seus espetáculos, do grande interesse das multidões em sua prática. Esse personagem despreza a conduta da sua assistência, que insiste em crer que é um grande esforço se submeter àquela privação e se diverte com os que tentam achar algum alimento escondido. Mas, com o passar do tempo, os espetáculos da fome foram perdendo o interesse e esse artista resolve ir para um circo e realizar o maior jejum jamais feito. O ponto alto do conto é o momento de sua morte, quando é encontrado encoberto pela palha, numa jaula que todos consideravam vazia. O autor coloca na boca de seu personagem, o

jejuador, a seguinte explicação para ter rejeitado a comida por toda a vida: “Eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo” (KAFKA, 2004, p. 35).

Recentemente, tivemos um caso de espetacularização da fome. O artista Guillermo Vargas Habacuc, em maio de 2007, pegou um cachorro nas ruas de Nicarágua, amarrou-o com uma corda e prendeu-o numa parede de uma galeria de arte na Bienal Costariquenha de Artes Visuais (Bienarte). O título da obra era Eres Lo Que Lees e era a frase escrita com ração para cães na parede onde o cachorro estava preso. A indicação do artista para que ninguém alimentasse o animal fez com que ele falecesse de inanição dias depois.

http://guillermohabacucvargas.blogspot.com/

Seis trabalhos dessa bienal foram premiados seguindo os critérios de grande qualidade e coerência entre a idéia e a execução. Entre os seis estava o de Guillermo, que foi convidado a repetir o feito na Bienal Centroamericana Honduras 2008. Houve protestos

e abaixo-assinados em todo o mundo contra a repetição do feito. Assim, o convite foi revogado.

Surgiram duas discussões em torno da ação: uma questiona se a tortura de um cão pode ser considerada arte; a outra defende o próprio cão, que teve seu direito à vida violado. O artista, em entrevistas, contra-atacou, denunciando que todos os visitantes da galeria observaram passivamente a agonia do cachorro sem libertá-lo, ou chamar alguma autoridade para fazê-lo. Isso faz refletir sobre o grau de envolvimento de numa galeria de arte, local destinado a observação de obras e performances. O acolhimento do sofrimento do cão certamente seria diferente se ele estivesse num outro ambiente, como uma praça ou via pública. Seu trabalho foi inspirado no caso de Natividad Canda, que em novembro de 2005 foi atacada durante 54 minutos por dois rottweillers ao entrar numa propriedade privada para roubar. O dono da casa e o vigia presenciaram tudo sem socorrer Natividad, que morreu no local.

Os casos das freiras jejuadoras são conhecidos hoje como anorexia santa. A prática que foi motivo de santificação séculos atrás hoje em dia é considerada doença. Nas biografias dessas freiras, é comum perceber o início do distúrbio alimentar como uma tentativa de impor sua vontade frente a pressões da família (casamento indesejável ou proibição de ingresso na vida religiosa).

Na Idade Média, havia uma divisão em classes que tinha relação direta com a divisão da Igreja: o senhor feudal, o alto clero e a nobreza eram relacionados com o Céu; já os camponeses e o baixo clero, com o Inferno. Essas posições eram bem definidas e não havia mobilidade entre as classes sociais. O papel da mulher nesse ambiente era de se tornar esposa daquele que o pai determinou ou ingressar na vida religiosa. A Igreja tinha o

dever social de acolher as mulheres que não conseguiram se casar ou tornaram-se viúvas. Jejuar rigorosamente e cortar os cabelos eram formas de poder. O texto do Processo de Canonização de Santa Clara de Assis reúne depoimentos de pessoas que conviveram com essa freira em casa e no mosteiro. Lá ficam claros os hábitos alimentares da freira:

Durante muito tempo, ficou três dias da semana sem comer coisa alguma, nas segundas, quartas e sextas. Nos outros dias fazia tanta abstinência que caiu em certa enfermidade, pelo que São Francisco, de acordo com o Bispo de Assis, mandou-lhe que naqueles três dias comesse pelo menos meio pãozinho por dia (Processo de Canonização, apud WEINBERG, p. 38).

Mas, como já foi dito, essas freiras jejuadoras eram vistas com desconfiança. Catarina de Siena, aos 26 anos de idade, teve que dar explicações perante um religioso de Florença sobre seus hábitos alimentares. Estavam suspeitando de simulação ou de possessão do demônio. Em sua carta, Catarina tenta convencer as autoridades que sua conduta é inspirada por Deus e mostra-se bastante submissa e resignada.

Aconselhando que eu peça especialmente a Deus que me faça comer mais; e eu lhe respondo, meu Pai, e o asseguro em nome de Deus, que de todas as formas possíveis eu tento fazê-lo e que me obrigo a ingerir algum alimento [...]. Depois de haver feito todos os esforços que estão ao meu alcance e examinando com cuidado esta imperfeição, pensei que Deus, em sua bondade, me dava-a para corrigir-me do vício da gula. Agora não sei que dieta devo tomar e lhe peço que ore à eterna Verdade e implore sua graça, sempre e quando ela não vá contra sua hora e contra a salvação de minha alma, para que me deixe comer algum alimento, se lhe agrada. (Carta CCCXIII a um homem religioso de Florença, apud WEINBERG, p. 44).

Fingir submissão e cooperação é uma estratégia para driblar as imposições, tanto do poder das autoridades eclesiásticas quanto os médicos atualmente. Há muitas semelhanças de sintomas e comportamentos entre as freiras e as anoréxicas atuais, tais como: passar dias em jejum, provocar vômitos quando forçadas a comer ou quando comiam demais, não se veem como doentes, além de hiperatividade, desejo de reclusão, intransigência e perfeccionismo.

A abstinência parcial ou total, episódica ou permanente, dá ao místico o extraordinário sentimento de ser enfim senhor de seu corpo: o espírito domina finalmente a carne. Há precisamente um “modo anoréxico de ser no mundo”, com a esperança de escapar a este mundo. Uma sensação de leveza e vivacidade invade todo o corpo: um estado de beatitude, um sentimento de liberdade que os anoréxicos conhecem muito bem. (GÉLIS, 2008, p. 58).

As reações a respeito de jejuns tão prolongados e sacrificantes provocadas por Catarina de Siena são comparáveis às que ocorrem hoje: admiração, reverência, receio, desconfiança, raiva e invariavelmente a vontade de fazê-la se submeter à comida.

Entre todas as jovens que tentaram dar um sentido às suas vidas dominando suas sensações (dor, cansaço, fome, desejo sexual) requer-se toda a tenacidade, a vontade, a paixão e o carisma que Catarina aplicava para conseguir o que buscava. Requer-se, sobretudo, e talvez seja essa a vantagem de Catarina, que o corpo seja atravessado por um ideal. (RAIMBAULT apud WEINBERG, p. 44).

É na fissura criada entre o que é real e busca incessante de um ideal que o distúrbio se desenvolve. Se para as freiras o corpo era apenas um instrumento de purgação dos pecados, algo que precisava ser depurado para alcançar um lugar perto de Deus após a

morte; hoje o corpo é também um instrumento a ser modelado, de acordo com os desejos estéticos das anoréxicas. Antes o ideal buscado era o da perfeição ética e moral; hoje, o da perfeição estética.

O novo surto de anorexia é chamado de anorexia nervosa. Certamente, o cenário cultural atual é bem diferente daquele da Idade Média, o que nos convida a desviar o foco da discussão das pressões da mídia que exigem um corpo feminino magro ou das exigências de algumas profissões como modelos e bailarinas. Não estamos assim afirmando que esses fatores não são importantes atualmente para o desenvolvimento da doença. Optamos por esse desvio de foco para tentarmos entender o que há de comum entre essas duas épocas na tentativa de iluminar outros aspectos.

Nossa hipótese é que o desenvolvimento da anorexia pode ser entendido como uma radicalização da tentativa de alcançar uma identidade que corporifique a dualidade mente/corpo, espírito/matéria. Essas pessoas tratam não só o próprio corpo, mas todo alimento (no caso das freiras abrange toda forma de matéria) como algo vil e impuro que deve ser dominado pela mente ou pelo espírito.

Numa autobiografia de uma anoréxica e bulímica, ela nos diz que “essas contradições começam a dividir a pessoa em duas. Corpo e mente se separam, e é nesta fissura que um transtorno alimentar pode florescer” (HONBACHER, 2006, p. 13). As santas buscavam elevar o seu espírito e se desvencilhar de todos os desejos do corpo, assim como atualmente as anoréxicas têm como meta o domínio total do corpo pela mente. Esse comportamento de controle do corpo está presente na nossa sociedade atual de outras formas: cirurgias plásticas, remédios, cosméticos entre outros. A anorexia nesse contexto social é apenas mais uma forma de domínio, talvez a mais radical.

A busca de uma identidade (Santas para as freiras e “Anas” – denominação usada entre as anoréxicas atuais) reduz a variedade de corpos a um único possível, e elas são esse único possível. Aí reside seu poder. Poucas pessoas conseguem tamanho domínio do corpo tanto entre as freiras da Idade Média como entre as anoréxicas atualmente. Na verdade, muitos médicos defendem que não é possível escolher adquirir essa doença. Quem a desenvolve, além de estar num ambiente propício a isso, provavelmente tem fatores genéticos favoráveis ao aparecimento do distúrbio.

A anoréxica organiza o próprio pensamento a partir da dicotomia corpo x mente, e a escolha é dominada por um modo de pensar que a impede de superar esse dualismo. Só existem duas possibilidades: a de ter essa identidade ou não. Cria-se um pensamento oposicional em que a opção por um dos dois elementos obrigatoriamente exclui o outro. Há uma tendência à homogeneização das idéias e das possibilidades. Ela acredita nessa redução e não analisa a variedade. A única possibilidade é não se alimentar. Não é permitido viver num corpo gordo. Até porque a gordura se deposita nas partes do corpo de forma descontrolada, imprevisível, e a anoréxica tem que estar no controle. A gordura invade o corpo e se deposita onde ela quer, quase que por vontade própria. Não é possível desejar engordar uma parte específica do corpo e não outra. A gordura segue uma lógica inaceitável.

Há uma dificuldade nessas pessoas de lidar com a diversidade que afrouxa as tendências de dominação. A palavra identidade tende mais ao poder. A complexidade supõe a desarmonia ou crise. A anoréxica vai tentando eliminar as variações buscando o plano, achatado e asséptico, que está presente tanto no seu físico quanto em suas idéias. A identidade e oposição não são diferentes, pois quem se opõe ferrenhamente a uma

identidade e se mantém na oposição cria outra identidade. Há casos de pessoas que eram obesas antes de desenvolverem anorexia. É a oposição do mesmo problema: compulsão por

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