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Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Profª Doutora Christine Greiner.
São Paulo
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
____________________________________________________
Agradecimentos
Aos meus pais, Leonor e Marco Polo, pelo incentivo e por acreditarem;
À Angel Vianna, pela grande mestra e amiga que é;
À Christine Greiner, pela generosidade, cuidado e orientação;
À Helena Katz e Rosane Precisosa, pela leitura e comentários generosos a respeito do
trabalho;
Aos professores Amálio Pinheiro e Jorge Albuquerque pelos ensinamentos;
À todos os professores do Programa de Comunicação e Semiótica;
À todos os colegas e amigos que participaram desse processo;
Resumo
O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, a riqueza, a saúde e o sucesso. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo. O medo da rejeição é normalmente apontado como causa imediata para essa ação radical. Nesta pesquisa, o objetivo principal é analisar como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o seu ambiente e as possíveis modificações, ao vivenciar práticas corporais como a técnica Vianna. Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o segundo. Para entender o sintoma da distorção dos mapas corporais no cérebro, analisamos os estudos do neurocientista António Damásio (1995) e o conceito de mente entranhada dos americanos Lakoff e Johnson (1999). Apresentamos, em seguida, dados históricos acerca de um surto de anorexia ocorrido na Idade Média, hoje conhecido por anorexia santa, e a anorexia nervosa da atualidade, a fim de discorrer sobre a dualidade mente/corpo espírito/matéria presente nos dois casos. Para tanto, discutiremos também o fenômeno dos abusos midiáticos em anúncios publicitários, jornais, livros, televisão e internet, ao qual é atribuída uma relação de causalidade com a anorexia nervosa contemporânea. Como fundamentação teórica, estudamos as pesquisas de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia primária da comunicação; a de Gail Weiss (1999), acerca da formulação de imagens corporais; a de Paul Churchland (2004), que mapeou as diversas modalidades de dualismos cartesianos; e as pesquisas teóricas das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide Neves (2008) sobre a técnica Vianna, que ajudou a esclarecer a proposição de que uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Para o corpus da pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para
observação. O primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento médico, praticam a técnica Vianna. O trabalho de campo vem sendo realizado desde setembro de 2007. Como resultado, esta pesquisa propõe desviar o foco da discussão a respeito da anorexia, normalmente voltado para as pressões culturais ou para análises psicanalíticas, uma vez que analisa essa doença como resultado da radicalização da dualidade mente/corpo. Tal separação questiona a natureza do corpo como um corpomídia e, uma vez salientada de maneira abusiva pela mídia impressa e televisa, camufla o distúrbio como um fenômeno comunicacional de massa, dificultando ainda mais a compreensão e o tratamento de cada caso particular.
Abstract
The increasing number of eating disorders in the last decades calls the attention of researchers concerned with body studies in several fields of knowledge. The media and the fashion world emphasize the need of a woman’s slim and young body, associated with happiness, wealth, health and success. There is more demand of a slim body among social groups connected with worldwide information. The fear of rejection is usually considered the immediate cause of such radical action. The main objective of this research work is to analyze how the communication processes between the anorectic body and the environment occur, and the possible changes after performing body practices, such as the Vianna’s technique. Our hypothesis is that anorectic people live under the mind/body duality paradigm, taking the control of the mind over the body to the last consequences. To understand the symptom of body maps distortion in the brain, we analyzed the works by the neuroscientist Damásio (1995), and the concept of embodied mind concept by Lakoff & Johnson (1999). Then we present historical data on an anorexia outbreak in the Middle Ages, known today as holy anorexia, and the current anorexia nervosa, so as to discuss the mind/body spirit/matter duality in both cases. So we will also discuss the phenomenon of media abuse in advertisements, newspapers, books, TV and Internet, considered to cause the contemporary anorexia nervosa. The theory adopted here is the research works by Katz & Greiner (2005) on the mediabody, which considers the body the primary communication media; by Gail Weiss (1999), on the formulation of body images; by Paul Churchland (2004), who mapped the several types of Cartesian dualisms; and the theoretical work by the Brazilian researchers Letícia Teixeira (2008) and Neide Neves (2008) on Vianna’s technique, who helped clarify the idea that an approach based on the body can help an anorectic person to undo the mind/body dichotomy. For the research corpus, we observed two groups of people. The first one is formed by people who had anorexia and recovered from it; the second, by anorectic people under medical treatment who perform Vianna’s technique. Field work is being carried out since September 2007. As an outcome, this work proposes changing the discussion focus on anorexia, usually concerned with cultural pressures on psychoanalytical analyses, once it considers this disease as result of a radicalization of the mind/body duality. This separation inquires body’s nature as a mediabody and, once abusively highlighted by press, it disguises the disorder as a communicational mass phenomenon, rendering the understanding and treatment in each particular case more complicating.
SUMÁRIO
Introdução... 1
Distorções das imagens do corpo... 7
Da Idade Média à atualidade ... 26
Entranhando informações – técnica Vianna... 52
Considerações finais... 73
Introdução
O aumento dos casos de distúrbio alimentar nas últimas décadas vem atraindo a
atenção de estudiosos do corpo em diversas áreas de conhecimento. Nesta pesquisa, temos
interesse em entender como se dão os processos de comunicação do corpo anoréxico com o
seu ambiente e as possíveis modificações dessas relações ao vivenciar práticas corporais.
Trabalharemos com a hipótese de que pessoas com anorexia vivem sob o paradigma da
dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o controle da primeira sobre o
segundo.
Houve um surto de anorexia em outro momento histórico e cultural: no fim da Idade
Média, as freiras adoeciam por praticarem jejuns prolongados, mas naquele contexto essa
ação era vista como virtude e essas mulheres eram canonizadas, justamente por esse feito.
Será estudado como a anorexia vem sendo tratada em diversas mídias, tais como anúncios
publicitários, livros, televisão e internet, como se dão os abusos midiáticos e as
consequências disso no modo como a doença é vista: os mitos que surgem a respeito dela,
as verdades e equívocos. Por fim, analisaremos como a técnica Vianna1 pode dar subsídios
para a pessoa experimentar diferentes estados corporais, criar diversas imagens do corpo,
favorecendo a produção de conhecimentos e construções simbólicas, trazendo assim
informações novas que podem reorganizar de maneira mais estável o corpo anoréxico.
Levaremos em consideração a complexidade e singularidade dos corpos, uma vez
que o risco da pesquisa é cair na armadilha de uma tentativa de “normalização”. Admitimos
que os corpos estão a todo instante se conectando e reconectando a informações de maneira
singular. Tal processo dinâmico sofre interferência de diversos fatores, como o ambiente
externo e a própria estrutura genética do corpo. Submetê-lo a uma nova informação pode
significar dar a ele uma possibilidade de conexão – ou seja, ao entrar em contato com algo
novo, é criada a possibilidade de desestabilizar padrões, gerando uma crise e uma tentativa
de nova organização. Há uma negociação entre as informações estáveis e as novas. Essa
conexão singular, uma vez ocorrida, terá graus de coesão. Quanto maior a coesão, mais
entranhada a informação estará na pessoa – ou seja, ela em algum nível vai alterar o modo
de pensar, sentir e agir no mundo, assim como a sua própria constituição quanto à
concentração de hormônios, tensões musculares e da pele, funcionamento dos órgãos, etc.
As fronteiras entre saúde e doença, no caso da anorexia, não são tão bem definidas.
Trata-se de uma patologia que tem como critérios diagnósticos a perda de peso e
manutenção abaixo do normal, por evitar alimentos que engordam e por vômitos
autoinduzidos, purgação autoinduzida, exercícios excessivos, uso de diuréticos; medo de
engordar; distorção da imagem corporal e amenorréia. Mas onde está o limite da dieta e
exercícios saudáveis e a dieta e exercícios doentios?
A definição de doença (do latim dolentia, padecimento) é o estado resultante da
consciência da perda da homeostasia de um organismo vivo, total ou parcial. Desse modo,
toda doença seria uma desordem momentânea ou permanente do organismo. O objetivo,
para a manutenção da vida, seria a volta a um estado “normal” ou “equilibrado”
homeostaticamente. Neste trabalho não utilizaremos esse pensamento sobre doença, pois
assim formulado cria uma dualidade saúde/doença, tornando-se conflitante com a hipótese
não é possível voltar a um estado anterior uma vez eliminada a doença. Esta pesquisa
pontua que a doença é um processo adaptativo do indivíduo e está constantemente sendo
atualizada. Não se atribui ao momento de tomada de consciência da perda do equilíbrio
interno a separação entre saúde e doença.
Atualmente, a mídia e a moda enfatizam a necessidade de a mulher ter um corpo
magro e jovem. Associam a esse padrão estético a felicidade, riqueza, bem-estar, saúde,
sucesso – ou seja, valor. No Brasil, cresce assustadoramente o número de pessoas que se
submetem a cirurgias para atingir tal padrão, buscando ser valorizadas quase
instantaneamente. Vende-se um sem-número de revistas semanais que exibem em suas
capas manchetes de dietas milagrosas (possibilidade de perder vários quilos em pouco
tempo) e fotos de mulheres jovens e magras. Tais dietas sequer levam em consideração a
massa corporal da pessoa que se submeterá a ela. Relacionam o número de quilos
emagrecidos exclusivamente à quantidade de alimentos ingeridos. Na verdade, o que está se
vendendo é a possibilidade rápida de ganhar valor, uma vez que atualmente jovialidade e
magreza são o padrão ideal de beleza e, como já foi dito, este está associado à felicidade e
ao sucesso.
Em 2006, num evento de moda em Madrid, na Espanha, modelos foram impedidas
de desfilar por estarem muito abaixo do peso. A organização do evento tinha como objetivo
chamar a atenção para o problema da anorexia. É claro que havia uma estratégia de
marketing na ação, mas a discussão ficou circulando na mídia, merecendo capas de revistas,
manchetes de jornal e reportagens de televisão. Pouco tempo depois, a modelo brasileira
Ana Carolina Reston Macan faleceu de anorexia, fato que aqueceu ainda mais as
Em fevereiro de 2007, foi a vez da Semana de Moda de Nova York se submeter às
regras de combate à anorexia, tentando forçar a indústria da moda a ter nova postura diante
da questão da magreza exigida das modelos. Proibiram que desfilassem modelos com uma
massa corporal inferior a 18, o que para uma modelo de 1,75 m de altura corresponde a 57
quilos. Atualmente, as modelos com essa altura pesam em média apenas 52 quilos.
Infelizmente, a maior potência da moda no mundo, Paris, não aderiu às regras,
enfraquecendo o movimento. O presidente da Federação Francesa de Estilistas, Didier
Grumbach, declarou-se contra a imposição de exigir o índice de massa corporal mínima de
18. Agindo assim, os organizadores de eventos internacionais de moda reafirmam o seu
poder e o direito dos estilistas de alta costura à criação das suas coleções conforme sua
vontade, com quem e para quem eles definirem.
Emagrecer até o limite da vida é o que muitas modelos fazem para se manterem no
mercado de trabalho. Corpos cada vez mais magros servem de “cabide” para as invenções
dos estilistas de alta costura. No mundo da moda, a competição entre manequins, e mesmo
modelos de fotografia e publicidade, é esmagadora. Para conseguir lugar em cada desfile,
em cada campanha publicitária, é preciso trabalhar incansavelmente, fazendo o
porta-em-porta dos castings. A regra é válida para todas, estrelas ou não. É isso que leva a maioria
das profissionais a dietas rigorosíssimas, principalmente pouco tempo antes de um desfile.
Mas não é só na moda que isso acontece. Bailarinas clássicas, por exemplo, também
são exigidas nesse sentido. Submetem-se a dietas rigorosas e mantêm-se abaixo do peso por
longos anos. Isso além de uma rotina de exercícios diários extenuantes. É possível
encontrar sintomas de anorexia em meninas de 8 e 9 anos nas escolas mais exigentes de
Apesar de esses serem grupos de risco para tal doença, não é raro encontrar pessoas
que decidem reduzir sua alimentação ao máximo, desenvolvendo a anorexia, e que não
sofrem nenhuma pressão profissional para essa decisão. O medo da rejeição de seu grupo
social é normalmente uma das causas imediatas para essa ação radical. Evitam cada vez
mais dietas calóricas sem nenhuma preocupação com a nutrição do corpo. O único objetivo
é manter-se magra. Foi-se o tempo em que reis e rainhas, sentados em seus tronos, exibiam
seus corpos gordos, adornados por belas vestes e jóias. Nesse tempo, corpos gordos eram
sinônimo de riqueza, fartura e saúde. Ainda hoje há pessoas que associam gordura à saúde e
magreza à doença. A exigência do corpo magro é mais presente em grupos sociais que
vivem conectados às informações que circulam em larga escala pelo mundo.
Para esta pesquisa, selecionamos dois grupos de pessoas para observação. O
primeiro é composto por pessoas que já tiveram anorexia e conseguiram reverter o quadro;
e o segundo, por pessoas que estão anoréxicas atualmente e que, além do acompanhamento
médico, realizam um trabalho corporal, especificamente, a Técnica Vianna.
Formulamos as seguintes perguntas para nortear a pesquisa: pessoas com anorexia
vivem sob o paradigma da dualidade mente/corpo, levando às últimas consequências o
controle da primeira sobre o segundo? A anorexia pode ser entendida como uma metáfora
da separação mente/corpo? Vivenciar práticas corporais que estimulam a criação de novos
mapas corporais pode ajudar a mudar esse paradigma e reconectar essa separação fictícia
entre a mente e o corpo? Isso ajudará uma pessoa com anorexia a reverter o quadro?
O primeiro capítulo desta dissertação trata da distorção das imagens corporal que é
experimentada pelas anoréxicas. Estudaremos como é formada a imagem do corpo no
emoção e como se dá uma doença somática, com relação aos mapas cerebrais do corpo.
Para isso, utilizamos os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1996) e o
conceito de metáfora e mente entranhada, dos americanos Lakoff e Johnson (1999).
O segundo capítulo apresenta dados históricos sobre a anorexia santa da Idade
Média e da anorexia nervosa dos dias atuais. Vamos analisar as semelhanças e diferenças
dessa patologia nas duas épocas. Trabalharemos com a hipótese de que na Idade Média as
freiras tentavam dominar a matéria pelo espírito, e hoje as pessoas tentam dominar o corpo
pela mente. Trataremos também dos casos das fraudes de fotos veiculadas na internet de
modelos anoréxicas, da atual moda nos EUA com relação à prática e comercialização do
jejum pela família Bragg, da campanha publicitária de Oliviero Toscani e da instalação
“Eres Lo Que Lees” de Guillermo Vargas Habacuc. Para tais análises, dialogaremos com a
pesquisa de Katz e Greiner (2005) sobre o corpomídia, que propõe o corpo como mídia
primária da comunicação, e a dos filósofos Gail Weiss (1999) e Paul Churchland (2004),
cujas pesquisas criam interlocuções o tempo todo com a neurociência e os estudos das
relações mente/corpo.
O terceiro capítulo discute como uma abordagem a partir do corpo pode ajudar uma
anoréxica a dissolver essa dicotomia mente/corpo. Falaremos como os trabalhos que visam
à experimentação de diferentes estados corporais e ao estímulo da atualização das imagens
do corpo podem ser uma saída eficiente no caso de doenças somáticas. Discorreremos sobre
a técnica Vianna e suas contribuições nos casos de pessoas com anorexia, partindo da
experiência prática e da pesquisa teórica das brasileiras Letícia Teixeira (2008) e Neide
Distorções das imagens do corpo
Anorexia é uma patologia psicossomática que ocorre, na maioria das vezes, em
mulheres entre 10 e 30 anos. As pessoas passam a se submeter a dietas cada vez mais
rigorosas, têm medo de engordar e distorcem sua imagem corporal. Muitas vezes provocam
vômitos, tomam remédios como diuréticos e laxantes e fazem exercícios excessivos.
Pessoas com anorexia recusam-se a procurar um médico, pois, além de não se julgarem
doentes, neste caso “tratar-se” significa obrigatoriamente ganhar peso.
Outra doença que muitas vezes acompanha a anorexia é a bulimia. Pessoas
bulímicas comem compulsivamente enormes quantidades de alimento e, em seguida,
provocam vômitos até eliminar tudo o que tinha sido ingerido. Há uma discussão entre os
médicos se esta é realmente outra patologia ou se pode ser entendida como um
desdobramento da anorexia. O fato é que existem muitas bulímicas que nunca desenvolvem
anorexia, mas a grande maioria das anoréxicas passa por processos bulímicos, pois após
longo tempo com dietas muito restritas é praticamente inevitável sofrer eventos
compulsivos.
É possível comparar o comportamento de uma anoréxica com o de uma pessoa com
grave fobia, nesse caso, fobia ao alimento. Já o comportamento bulímico assemelha-se ao
de um vício, um desejo compulsivo. Pessoas com bulimia tendem a sentirem-se
envergonhados e completamente fora do controle, afastando-se das pessoas, inclusive as
mais próximas e se relacionando cada vez mais intensamente com a doença.
Há uma diferença marcante nos dois casos: a bulímica sabe que está doente, o que
vomitar todas as vezes que come é muito violento. O suco gástrico corrói o esôfago e a
faringe, destrói o esmalte dos dentes, e a força feita para expulsar o alimento pode até
estourar vasos sanguíneos dos olhos. A sensação de alívio após a purgação vem geralmente
acompanhada de um sentimento de culpa.
A anoréxica vai reduzindo a sua alimentação, acostumando-se com a fome e o seu
corpo vai emagrecendo como o desejado. No início, muitas pessoas elogiam a perda de
peso, o que incentiva ainda mais a redução das calorias diárias. O medo de engordar,
porém, faz com que a pessoa se torne obsessiva pela gordura e comece a se ver e se sentir
gorda devido à distorção dos mapas corporais que ela cria no cérebro. A pessoa passa a
instituir metas de emagrecimento incompatíveis com a vida. O corpo vai primeiro
queimando a gordura para gerar energia, depois as proteínas (musculatura) e por fim os
órgãos, levando-a à morte. Há uma dolorosa tentativa de regulação do corpo durante todo o
processo, como aparecimento de pelos finos por todo o corpo para a manutenção da
temperatura corporal, pressão baixa e supressão da menstruação.
Um sintoma importante da anorexia é a distorção da imagem do corpo. A pessoa, ao
olhar-se, não consegue enxergar sua magreza. Ao contrário, o que é visto por ela é um
corpo acima do peso, com muita gordura acumulada. Tanto ao olhar para o espelho quanto
ao se tocar, essa distorção é vivenciada. Por esse motivo, ao serem alertadas para sua falta
de peso discordam taxativamente. A imagem do seu corpo no cérebro está alterada
impossibilitando-a de entrar em contato com o que está se passando: corpo abaixo do peso
devido a pouca quantidade de gordura e massa muscular. Nesse processo há falha na
http://duard.com.br/blog/fotos-anorexia-nervosa/anorexia-foto-capa/
Os estudos do neurocientista português Antônio Damásio (1995) ajudam a
compreender o funcionamento cerebral para a formação das imagens do corpo e dá pistas
de como pode ocorrer tal distorção. Essa experiência da anoréxica se ver e se sentir gorda é
o resultado da criação de mapas falsos. O medo exacerbado de engordar faz com que ela
distorça a imagem do próprio corpo no cérebro, que passa a oferecer a imagem de um corpo
gordo. Esse assunto será desenvolvido adiante.
O sistema nervoso é uma solução evolutiva que em nossa espécie atingiu alto grau
de especialização: está presente em todos os membros, tronco e na cabeça concentrou sua
maior parte. Regula o funcionamento dos outros sistemas, elabora informações do próprio
corpo e do ambiente em que está inserido. Esse gerenciamento do sistema nervoso dá
condições à espécie humana de criar estratégias de adaptação mais adequadas à
Organismos complexos como os nossos fazem mais do que interagir, fazem mais do que gerar respostas externas espontâneas ou reativas que no seu conjunto são conhecidas como comportamento. Eles geram também respostas internas, algumas das quais constituem imagens (visuais, auditivas, somatossensoriais) que postulei como sendo a base para a mente (DAMÁSIO, 1999, p. 114).
É com esse diferencial da espécie humana (a mente) que se tornou possível criar
imagens (visuais, sonoras, olfativas, entre outras) e manipulá-las no que conhecemos como
raciocínio, que altera o comportamento devido à capacidade de prever e planejar o futuro.
Portanto, nosso sistema nervoso é dotado da capacidade de manter muitos sistemas
funcionando coordenadamente, garantindo a sobrevivência (para isso está incluída não só a
manutenção interna do organismo, mas também a exploração do ambiente) e manipular
várias informações vindas dessa relação do corpo com o ambiente. Isso sem perder de vista
que esse sistema gerenciador é uma solução adaptativa e foi se especializando em
co-evolução tanto com o ambiente quanto com os outros sistemas que formam o corpo
humano.
Não existe nenhuma faculdade da razão completamente autônoma, separada e independente de capacidades corporais tais como percepção e movimento. A evidência mostra, ao contrário, uma visão evolutiva, na qual a razão se utiliza e se desenvolve a partir dessas capacidades [...] a razão é fundamentalmente entranhada. (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 17).2
2 “There is no such fully autonomous faculty of reason separate from and independent of bodily capacities such as perception and movement. The evidence supports, instead, an evolutionary view, in which reason uses and grows out of such bodily capacities […] reason is fundamentally embodied” (LAKOFF; JOHNSON,
As consequências dessa nova forma de entender a razão são drásticas. O que Lakoff
e Johnson estão afirmando é que toda a construção subjetiva da mente é também a
construção do corpo. Tudo o que se passa na mente é físico e o que se passa no corpo é
pensamento. Não é que o corpo expressa o que se passa na mente – ele é composto pelas
informações mentais. Não é possível uma mente sem corpo e nem um corpo como o da
espécie humana sem mente. Interagimos no mundo de determinada forma porque temos
esse aparato biológico que nos permite decodificar a realidade à nossa maneira. Os
alicerces da mente estão na estrutura do corpo e essa relação imbricada constantemente
modifica o que se passa em ambos. Num depoimento durante uma aula de Técnica Vianna,
a aluna falou rapidamente sobre um aspecto importante do trabalho, que é justamente
trabalhar conscientemente o pensamento e o corpo sem separações.
Acho que nesse trabalho a gente lida com o pensamento junto com o movimento. Na verdade é uma coisa só. Não há como separar o meu corpo daquilo que sou e penso de mim e do mundo. Depois desse tempo aqui acredito que é assim que forma um indivíduo que se move, que pensa, que questiona. (Depoimento de Anabel3, 2008).
O modo como percebemos está intimamente ligado às imagens cerebrais. Uma
distorção nesse processo tem consequências nos sentimentos, pensamentos e ações. As
anoréxicas deformam as imagens que são construídas no cérebro a respeito do próprio
corpo. Há alterações principalmente quanto à forma e ao volume. Acaba prevalecendo o
mapa cerebral distorcido sobre o que de fato está se passando no corpo. O que impede essas
pessoas de entrar e contato com o próprio corpo? Por que aquilo que se passa na mente
3 Serão usados nomes fictícios para preservar a identidade das três pessoas estudadas: Anabel, Analu e
prevalece, se um dos papéis do sistema nervoso é justamente informar o que se passa com a
pessoa, para que ela possa criar estratégias para sobreviver?
Vamos então entender como são criados os mapas que na anoréxica geram as
imagens distorcidas do corpo. Continuamos utilizando os estudos de Damásio para
compreender esse fenômeno. Primeiramente, vamos estudar como se forma a imagem de
um objeto que esteja no ambiente.
Ao ver um objeto, tem-se uma informação externa captada pela luz que entra nos
olhos, a mudança do corpo no momento do contato e o estado corporal da relação entre a
informação externa e a interna. O cérebro constrói simultaneamente um mapa para cada
situação e, de saída, são três: um trata da alteração do corpo para entrar em relação, outro é
sobre o contato com o objeto e o terceiro refere-se às mudanças do estado do corpo nesse
contato. Esses mapas constroem um padrão neural que é imagético. Esse processo é
ininterrupto no cérebro. Os mapas organizados em padrões neurais formam um relato sobre
tudo o que está acontecendo e como está sendo processado pelo organismo. Ao mesmo
tempo, cria-se um relato não-verbal que é um fluxo de imagens incontrolável, inconsciente
e incessante, e ocorre simultaneamente com os relatos dos objetos externos e as
experimentações do mundo.
Vemos assim que todo o processo é mediado e que não temos como capturar a
realidade, nem mesmo do nosso próprio corpo, de forma direta. A transformação da
mensagem captada pelos órgãos do sentido em fluxo de imagens e o relato não-verbal
oferecido pela mente afastam a possibilidade de apreensão direta do real. Não existe
onisciência nesse processo. Somos o próprio processo nos seus aspectos conscientes e
inconscientes. É importante ressaltar que, para Damásio, Lakoff e Johnson, assim como
outros neurocientistas, o inconsciente é cognitivo. É possível aprender com o relato
inconsciente, assim como acontece com a parte consciente, porém esse aprendizado pode
afetar os sentimentos, pensamentos e ações do indivíduo sem que ele tenha saiba disso.
As conexões na mente são feitas entre as novas experiências e esse fluxo imagético.
Isso significa que ao mesmo tempo em que vemos o objeto o imaginamos. “As imagens
que constituem essa narrativa são incorporadas ao fluxo de pensamentos. As imagens na
narrativa da consciência fluem como sombras, juntamente com as imagens do objeto para o
qual estão fornecendo um comentário não intencional, não solicitado”(DAMÁSIO, 1999,
p. 221). Aqui está uma chave para o fenômeno da distorção da imagem do corpo. Nas
anoréxicas, o que está sendo imaginado do próprio corpo prevalece e altera radicalmente
aquilo que está sendo captado pela visão. O corpo esquelético torna-se obeso por conta do
relato inconsciente que existe no processo da formação das imagens no cérebro. Isso ajuda
a explicar por que elas não têm acesso ao que de fato se passa no próprio corpo e, ao serem
alertadas da necessidade de engordar, não aceitam a recomendação.
A percepção do ambiente não é feita de maneira direta, como o senso comum pode
supor. Todo o organismo se altera ativamente para captar o que mais lhe for conveniente.
O organismo atua conscientemente sobre o meio ambiente (no princípio foram as ações), de modo a poder propiciar as interações necessárias à sobrevivência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente alimento, sexo e abrigo, é necessário sentir o meio ambiente (cheirar, saborear, tocar, ouvir, ver) para que se possam formular respostas adequadas ao que foi sentido. A percepção é tanto atuar sobre o meio ambiente como dele receber sinais. (DAMÁSIO, 1996, p. 256).
Outra chave importante é o fato de a percepção do ambiente não ser direta, e sim
haver um poder de decisão daquilo que será captado. Vemos o que queremos ver. O que
está sendo percebido pela anoréxica ao se ver? Todas elas apresentam uma preocupação
exacerbada com a quantidade de gordura corporal e passam a enxergar gordura onde não
existe. Outra aluna relatou que o trabalho da Técnica Vianna “te abre a percepção. Eu acho
que a gente fica um pouco mais perceptivo ao outro através da fala do outro, como aquele
corpo se relaciona. Eu acho que você ganha muito na observação dos seus parceiros, dos
seus próximos” (depoimento de Analu, 2008). Posteriormente, aprofundaremos a questão
da percepção..
É importante também levarmos em consideração outro fator: o corpo pode ser
observado como um objeto exterior (quando olhamos num espelho, por exemplo), ou por
meio da propriocepção (capacidade reconhecimento da posição próprio corpo no espaço e
de cada parte em relação às demais, tônus e movimentação, tudo sem o auxílio visual).
Essas informações vêm das fibras musculares (tendões e ligamentos), periósteo (membrana
que envolve o osso), pele e sistema vestibular (localizado no interior do ouvido) que nos
Todos nós temos uma noção do próprio corpo e da posição na qual ele se encontra
mas essa noção é parcial. Raramente nos preocupamos com a postura que assumimos,
exceto em momentos em que somos alertados para isso. Em sua pesquisa, Letícia Teixeira
(2008) explica que os exercícios propostos para levar a atenção ao corpo são de fácil
entendimento racional, mas de difícil assimilação efetiva. Isso é facilmente verificável
quando são propostos exercícios com a finalidade de pesquisar o tônus empregado para
executar algum movimento, o retorno de força do apoio utilizado por determinada parte do
corpo com uma superfície ou ainda a relação das partes do corpo, ou sua totalidade, com o
espaço. Trata-se de uma pesquisa de aprofundamento da propriocepção para adquirir essa
íntima relação do próprio corpo com o ambiente. Mesmo sem utilizar o nome
propriocepção no trabalho, a técnica Vianna desenvolve esse sentido para que a pessoa
tome consciência do próprio corpo. Esse assunto será desenvolvido mais detalhadamente no
terceiro capítulo.
Nas observações feitas com as anoréxicas, percebemos uma verdadeira adoração por
espelhos. Elas vigiam o próprio corpo a todo instante. Esse fato nos chamou a atenção não
por ser exclusivo desse grupo (a maioria das mulheres tem esse comportamento), mas
porque foram encontradas grandes dificuldades e rejeições dos exercícios propostos para
entrar em contato com o corpo por via proprioceptiva. A resistência inicial é observada em
outros grupos, mas nesta pesquisa as alunas eram muito agitadas (um dos sintomas da
doença) e não conseguiam manter a concentração, nem mesmo os olhos fechados quando
era solicitado. Isso nos fez pensar que talvez a forma como elas percebam o corpo seja
muito mais visual (como um objeto exterior que é captado pela visão da imagem refletida
estariam se afastando do próprio corpo, considerando-o exteriormente a elas e não como
algo realmente entranhado, vivido, experimentado? Outros relatos de aula dados após a
superação da dificuldade abordada acima foram que “se sentir é uma coisa que dá uma
âncora, um chão muito sólido”. (depoimento de Anabel, 2008). “É um privilégio a gente
poder se ouvir, se sentir, se perceber, se entender e isso eu acho que vai pela vida a fora, a
gente vai se descobrindo” (depoimento de Analu, 2008).
O fato é que a imagem do corpo da anoréxica é distorcida. Ao olhar-se, tocar-se e
perceber-se, as informações produzidas na mente não são fiéis ao que de fato se passa no
corpo e isso acontece de forma inconsciente. A anoréxica de fato não sabe que está pele e
osso. Mesmo sendo constantemente alertada sobre sua magreza, ela não consegue perceber
esse fato.
A pessoa com anorexia distorce tanto a imagem evocada do corpo quanto a imagem
criada no momento presente. Ao lembrar do próprio corpo, surgem imagens de uma pessoa
obesa. Há distorção principalmente no volume, peso e contorno de seu corpo. Essas
distorções são maiores quando essa pessoa faz algo que acredita atrapalhar seu intento de
emagrecer, como fazer menos exercícios por um dia, ingerir algum alimento que
consideram calórico; em casos muito graves, até beber água pode ser motivo para vivenciar
grandes alterações nas imagens corporais. “Água pesa muito! Cada copo pesa 200 a 300
gramas!”, revelou uma entrevistada numa primeira conversa. “Além disso, o estômago
estufa muito” (depoimento de Anastácia, 2008), continuou.
Ao lembrarmos de uma imagem qualquer, nosso cérebro trabalha tentando replicar a
experiência vivida no passado, tentando reproduzir padrões já experimentados. Não
será muito ou pouco fiel, dependendo de como a imagem foi assimilada e como está sendo
lembrada.
É importante dizer que o cérebro não trabalha captando todos os aspectos da
imagem como um bloco indissociável. Há subsistemas responsáveis por aspectos
diferentes, tais como cor, volume, distância, forma, entre tantos outros. A sincronicidade
dos processamentos é que dá a sensação de unidade da imagem criada pela mente. Assim,
podemos alterar o volume, por exemplo, sem alterar a cor ou a distância.
Fatores emocionais podem provocar distorções. Não há como dissociar o que está
sendo visto das emoções produzidas nessa ação. Por exemplo, se um carro vem em alta
velocidade em nossa direção, há uma série de ajustes da retina para manter o foco do carro,
o sistema vestibular é ajustado para dar mais precisão à posição do próprio corpo, tudo ao
mesmo tempo da emoção de medo e a consequente reação do coração, intestino e pele,
entre outras vísceras, e do sistema músculo esquelético, que ativa o corpo para o
movimento. Isso tudo acontece antes de formulações da mente. Muito antes de termos uma
mente, nosso aparato biológico já nos dava subsídios para enfrentar situações de perigo.
Como explica Damásio:
Não há percepção pura de um objeto em um canal sensorial, por exemplo a visão. As mudanças simultâneas [...] não são um acompanhamento opcional. Para perceber um objeto, visualmente ou de algum outro modo, o organismo requer tanto os sinais sensoriais especializados como os sinais provenientes do ajustamento do corpo, que são necessários para a ocorrência da percepção. (DAMÁSIO, 2000, p. 193).
Os processos regulatórios do organismo são comandados pelo cérebro e
muito antes de o organismo ter uma mente. As necessidades do organismo são detectadas e
os mecanismos de regulação acionados inconscientemente. Há um alto grau de estabilidade
e automatismo nesse processo, facilitando assim a sobrevivência.
Todas essas ações básicas para manter o equilíbrio interno do corpo criam mapas e
constroem padrões neurais que ocorrem em vários níveis no cérebro, em estruturas
responsáveis pela regulação do estado do corpo. Não temos consciência dele e não
conseguimos alterá-lo por uma decisão. Isso não significa que ele seja estático, que não se
altere. Apesar da alta estabilidade, ele é atualizado a todo momento.
Dependendo do grau do medo gerado na aproximação do carro, por exemplo, a
possibilidade de distorções nas imagens mentais é grande. Isso pode fazer a pessoa ficar
paralisada diante do perigo ou despertar habilidades desconhecidas para se livrar dele.
Damásio finaliza dizendo que “não há como você evitar que seu organismo seja afetado,
sobretudo nos aspectos motor e emocional, pois isso está incluído em ter uma mente”
(DAMÁSIO, 2000, p. 193).
Um dos principais motivos de as anoréxicas não quererem ajuda médica e não se
considerarem doentes decorre do fato de vivenciarem as deformações de sua imagem
cotidianamente. Isso não é algo que se restringe à mente e ao cérebro: todo o corpo está
envolvido no processo. Elas realmente experimentam seus corpos inflando de um momento
para o outro. É despropositado ficar debatendo se isso realmente aconteceu ou não, porque
elas de fato vivenciam as deformações. Por isso é tão ineficiente alertá-las sobre sua
condição física, pois o que é vivido desmente tal fala. Há uma falha no processo entre o que
existência corpórea. Não se trata de um pensamento vago sobre as mudanças do corpo. Elas
se sentem gordas e colocam a vida em risco para eliminar esse excesso.
Há uma diferença entre emoção e sentimento para Damásio. As emoções ocorrem
no teatro do corpo e os sentimentos ocorrem no teatro da mente. Nunca são dois teatros, é
um teatro só. Ou seja, as emoções são referentes às mudanças perceptíveis no corpo, e o
sentimento é um mapa neural referente à emoção. Essa divisão serve para detalhar melhor o
que ocorre, mas não pretende criar dualidades. Como Damásio diz, não são dois teatros. A
mente e o corpo emergem de uma só substância biológica.
A emoção é a paisagem do corpo e se faz presente a partir de uma ação que pode ser
visível ou invisível, mas mensurável por meio de aparelhos. Toda emoção visa direta ou
indiretamente à regulação da vida.
Damásio divide as emoções em três categorias: as de fundo, as primárias e as
sociais. A emoção de fundo é um estado corporal das regulações mais básicas do
organismo. É o que determina nosso bem-estar ou mal-estar. As emoções primárias são as
que geralmente vêm à cabeça quando pensamos no assunto: alegria, tristeza, surpresa,
raiva, entre outras. Estão presentes em todas as culturas e até em outras espécies. As
emoções sociais são mais complexas, pois envolvem um aprendizado e adequação a regras
do ambiente. São elas, entre outras, culpa, vergonha, indignação, inveja. Elas também não
são exclusividade dos seres humanos.
As emoções são, portanto, regulações inatas, sendo que algumas dependem em
algum grau de exposição ao ambiente. O medo, por exemplo, é uma emoção inata: nosso
aparato biológico responde a ameaças com essa emoção. No grupo estudado, o medo de
valor altamente negativo, é aprendida socialmente. Engordar está associado a desleixo,
descontrole, preguiça. Todas as entrevistadas (que estão atualmente com anorexia)
comentaram que parentes próximos (geralmente a própria mãe) tinham preocupações
exageradas com a alimentação com relação às calorias. A grande maioria foi educada
evitando comidas que pudessem engordar, preferindo sempre alimentos light. Houve
também relatos de algumas famílias que se preocupavam com alimentos saudáveis, como
verduras, legumes e poucas frituras, o que é muito saudável. Porém, na maior parte das
casas não havia distinção entre alimentos industrializados ou naturais. A escolha por comer
saladas, por exemplo, tinha relação exclusivamente com o baixo teor energético. As
escolhas sempre seguiam esse critério. Entre beber refrigerante com baixa caloria e tomar
um suco de fruta natural, a escolha sempre era pelo refrigerante (menos calórico). Os
critérios alimentares eram associados ao poder que o alimento tem de engordar, e não na
sua capacidade de nutrir. Expostas a esse ambiente social, essas pessoas foram
radicalizando a relação alimento/medo de engordar a ponto de passar a rejeitar a comida.
Não queremos aqui dizer que esse é o único ou principal fator que desencadeie o
processo de anorexia. Uma entrevistada, por exemplo, desenvolveu um rápido processo de
anorexia após o nascimento do primeiro filho. Na vontade de voltar ao corpo anterior à
gravidez, essa pessoa passou a restringir sua alimentação a níveis preocupantes. Sua rotina
era anotar tudo o que tinha ingerido durante o dia para que no seguinte ela diminuísse a
quantidade. Ela relatou que mesmo com o peso de quando tinha 12 anos de idade, ainda se
julgava gorda. Só se deu conta de que algo estava errado quando, numa festa infantil,
recusou brigadeiro com verdadeiro pavor. A partir desse momento foi voltando a aumentar
As emoções cujo desencadeamento é aparentemente misterioso não se confinam às emoções sociais inatas. Existe uma outra classe de reações cuja origem não é consciente, mas é formada pela aprendizagem durante o desenvolvimento individual. Estou me referindo àquilo de que aprendemos a gostar ou que passamos a detestar, distintamente, durante uma longa experiência de percepção e emoção em relação a pessoas, grupos, objetos, atividades e lugares. (DAMÁSIO, 2003, p. 57).
A emoção é, portanto, o conjunto das respostas químicas e neurais produzidas
quando o cérebro detecta um objeto ou acontecimento que pode ser real, lembrado ou
imaginado. Já há um repertório de respostas evolutivamente programadas e há outros que
vão sendo criados pela experiência individual com o ambiente. O resultado imediato é a
alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que o
mapeiam.
Outra emoção muito citada nas entrevistas é a alegria de emagrecer. Para o nosso
grupo da pesquisa de campo, esse é o objetivo da vida. Não importa o quanto já se esteja
magra, o importante é perder peso, ilimitadamente. “Alguns dos objetos são
emocionalmente competentes por razões evolucionárias. Mas outros transformam-se em
estímulos emocionais competentes no curso da nossa experiência individual” (DAMÁSIO,
2003, p. 63).
Há, como já foi dito na introdução deste trabalho, uma supervalorização do corpo
magro na nossa cultura. Isso vai desde os núcleos familiares até a moda. É comum ouvir
crianças manifestarem o desejo de emagrecer. Nas últimas décadas, a indústria alimentícia
veiculadas em diversas mídias, incentivando o consumo desse tipo de alimento, sempre
com mulheres magras, sensuais, bem-sucedidas e felizes.
O sentimento é o mapa neural e em termos evolutivos só se tornou possível quando
os organismos começaram a organizar mapas cerebrais capazes de representar os estados do
corpo. Assim, os sentimentos dependem não apenas da presença de corpo e de um cérebro
capaz de representá-lo, mas também de existência prévia de dispositivos de regulação da
vida, que incluem os mecanismos de emoção. Não há sentimento sem emoção.
Para Damásio, o sentimento é mais do que uma representação de um estado
particular do corpo – ou seja, uma constatação consciente das mudanças fisiológicas
(alteração hormonal, cardíaca, etc.). “Um sentimento é uma percepção de um certo estado
do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção
de um certo modo de pensar” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).
Esse novo entendimento sobre o sentimento auxilia a compreensão da complexidade
do processo. Não se trata mais de fazer uma relação direta entre “uma coleção de
pensamentos, com certos temas ligados a um certo rótulo emocional” (DAMÁSIO, 2003, p.
92). Aquilo que desencadeia o sentimento (a emoção) está no corpo e não fora dele. Mas,
além disso, há uma ligação entre o sentimento e o objeto que deu origem à emoção e, por
consequência, ao sentimento. O processo espalha-se lateralmente, envolvendo todo o
conhecimento disponível daquele objeto e a situação em que está inserido, as emoções
passadas que tenham referência direta ou indiretamente a ele e as consequências de tudo
isso.
No depoimento de uma anoréxica relatando o que se passou após se alimentar,
Eu me olho no espelho e vejo uma gordura na barriga, aqui no estômago, ou na bunda. Isso me dá um nó no estômago. Meu coração dispara e fico com muita raiva e nojo de mim. Para piorar, minha digestão é muitíssimo rápida, porque em minutos a gordura vai aumentando, aumentando... Fico com ódio de mim mesma; me sentindo suja. Sou uma fraca! (depoimento de Anastácia, 2008).
Esse é um processo de retroalimentação: quanto mais aumentam a raiva e o nojo,
maior a distorção, que provoca mais raiva e nojo. “O objeto imediato do sentimento e o
mapa desse objeto podem influenciar-se mutuamente numa espécie de processo
reverberativo que não é possível encontrar na percepção de um objeto exterior ao corpo”
(DAMÁSIO, 2003, p. 99). Numa pessoa que não tenha a propensão a distorcer os mapas do
corpo, esse acesso de fúria até pode ocorrer ao perceber que engordou, mas a alteração
drástica do volume do corpo não será vivenciada. O sentimento não é, portanto, apenas uma
idéia do conjunto de alterações do corpo que chamamos de emoção. É um processo
dinâmico detonado pela emoção e pelo objeto exterior que iniciou o processo. “Aquilo de
que nos damos conta é uma série de transformações e, em alguns casos, uma luta aberta
entre as alterações do corpo iniciadas pela emoção e a resistência que o corpo oferece a
essas alterações” (DAMÁSIO, 2003, p. 92).
No funcionamento cerebral esperado, com o fluxo de imagens corporais, há uma
instabilidade adaptativa inerente que possibilita a vida. Como o corpo muda sua própria
constituição a cada respiração, alimentação, excreção, emoção, pensamento etc., o cérebro
opera nessa multiplicidade de imagens que chega até ele. Assim, a pessoa pode se adaptar a
É esperado que o mapa cerebral produzido seja bastante próximo daquilo que ocorre
no corpo. Porém observamos que ele, em maior ou menor grau, sempre perde a fidelidade.
Isso acontece porque a atividade das regiões que executam o mapeamento modifica os
sinais que vêm do corpo, e assim o mapeamento do corpo e o estado do corpo deixam de
coincidir. Quando a transmissão de sinais perde muito a fidelidade, o mapa que é
desenhado no cérebro não relata o que está se passando no corpo. É o que Damásio chama
de mapas falsos, e que estão presentes nas doenças somáticas.
As distorções radicais do corpo ocorrem devido a essa falta de coincidência entre o
que ocorre no corpo e o que está sendo mapeado nas regiões somatossensitivas do cérebro.
Esse mapeamento ocorre a todo momento e relata todas as partes do corpo. Contudo, a
“nitidez” pode ser perdida por interferências de outras regiões cerebrais na transmissão dos
sinais do corpo para essas regiões somatossensitivas, ou com uma interferência direta na
atividade dessas regiões.
Em termos evolutivos, é possível que inicialmente o cérebro só produzisse mapas
verídicos do estado do corpo. Posteriormente, apareceram novas possibilidades. Mapas
falsos, por exemplo, que eliminem a dor, podem ser bastante úteis para a fuga de um ser
atacado por um predador. A criação de um mapa falso do corpo e, consequentemente, de
um sentimento que não reflete a emoção correspondente é extremamente rápida, o que não
aconteceria se o investimento fosse em modificar o estado do corpo. É a velocidade da
ordem de milissegundos ou menos contra alguns segundos, o que pode custar a vida do ser.
Porém, variações patológicas podem corromper esse valor e, ao que parece, é o caso das
Nesse tipo de doença, o paciente vivencia sintomas que exames clínicos não
conseguem detectar as causas. Cegueira, dores, desmaios, vertigens, mudez, entre outros,
são exemplos de sintomas que podem ser somáticos. O problema, no caso da anorexia, é a
falta de relação entre o que se passa no corpo de fato e o que a pessoa sente e vê. As
mudanças repentinas no volume do corpo são um sintoma cuja causa os exames clínicos
não detectam, como uma má formação cerebral ou incapacidade de criar mapas próximos à
sua realidade corpórea. Todavia, as distorções acontecem mesmo assim.
A decisão de restringir ao máximo a alimentação coloca em risco a sobrevivência da
pessoa, e isso é sinalizado pelo corpo. A palavra anorexia significa (an) falta de (orex)
apetite e não reflete a realidade vivida por essas pessoas. Elas se recusam a se alimentar e
sentem muita fome por causa da dieta rigorosa. Diz uma anoréxica em sua biografia:
Eu não sabia que a fome por comida, e os poderes revigorantes que ela tem pudesse se tornar seu próprio oposto quando contrariada e se tornar um tipo diferente de fome: uma fome pela própria fome, uma fome pelos poderes debilitantes que a fome tem (HORNBACHER, 2006, p. 114).
As anoréxicas têm algumas características comuns de personalidade. São em geral
mulheres, perfeccionistas, exigentes consigo e com os outros, boas alunas e boas filhas,
agitadas e ansiosas. A decisão de parar de se alimentar é íntima e na maior parte das vezes
não é comunicada a ninguém. Passam a encarar o alimento como algo maléfico e o jejum
como maneira de manter o bem-estar.
Somente em 1980 a anorexia foi oficialmente reconhecida como uma patologia,
recebendo uma definição diagnóstica. Mas anteriormente já eram notificados casos de
na fase final da Idade Média foi detectado um surto de anorexia entre freiras. Essas
mulheres, para alcançar a purificação e a santidade, restringiam ao máximo a própria
alimentação. O que hoje é encarado como um transtorno alimentar, na Idade Média era
Da Idade Média à atualidade
Historicamente, os jejuns autoimpostos estão presentes em diversas religiões, não
significando necessariamente um transtorno alimentar. No Egito antigo, por exemplo,
praticavam-se jejuns curtos (alguns dias) como procedimento de preparação do corpo para
receber visões sagradas. A abstinência alimentar era uma forma de purificação e devoção.
Nas filosofias e religiões orientais, o jejum prolongado era prática comum. Existiam
filosofias baseadas na busca do domínio das paixões para o alcance da perfeição divina,
como é o caso do Jainismo.
O objetivo do Jainismo é libertar a alma de seu aprisionamento corporal por meio de extremo auto-controle e austeridade, em imitação a Vardhhamana, seu fundador, que viveu na Índia no século VI a.C. (WEINBERG, 2006, p. 22).
Essas filosofias e religiões orientais começaram a se difundir no Império Romano a
partir do século I d.C. e, junto com a criação de escolas filosóficas helenísticas baseadas
nos pensamentos de Pitágoras e Platão, criaram o ambiente em que surgiram as concepções
gnósticas. “O gnosticismo é a primeira tentativa de uma filosofia cristã: tentativa conduzida
sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos, místicos, neoplatônicos e
orientais” (WEINBERG, 2006, p. 22).
As diferentes escolas gnósticas têm como grandes temas a miséria do homem,
prisioneiro do seu corpo; a dualidade cósmica, mundo material ruim em contraposição a
um deus bom; apocalipse gnóstico, quando o mundo material sucumbiria e reinaria o
criando a dicotomia espírito e matéria. As formulações de que há algo que sobrevive à
matéria e a criação de um mundo divino servem para amenizar das angústias humanas a
respeito da morte, sendo bastante eficientes até os dias atuais.
É do pensamento gnóstico que surgiu alguns dos princípios fundamentais da religião
católica. Santo Agostinho (354-430) criou sua filosofia a serviço da teologia. Apesar de
muito influenciado por Platão, divergiu a respeito da tese platônica de que a alma foi
exilada de sua habitação verdadeira ao ocupar um corpo humano, postulando que Deus
criou todas as almas quando criou o ser humano. Para Platão, o corpo era um obstáculo para
a sua natureza racional e a realização da natureza humana não consistia em uma disciplina
racional da sensibilidade, mas na sua final supressão, na separação da alma do corpo, na
morte. Somente livrando-se do corpo porção racional, poderia viver em sua plenitude. Já
para Agostinho, o corpo era um instrumento para a expressão da alma. “O homem é, até
onde podemos ver, uma alma racional fazendo uso de um corpo mortal e material”
(AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). A alma se utilizaria do corpo e do mundo
material para se desenvolver.
Para ele, havia duas formas de conhecer: o conhecimento sensorial (a mente
utilizando os sentidos corporais para obter conhecimento) e o conhecimento da mente por
ela mesma (uma espécie de iluminação, um conhecimento que se dá instantaneamente). “A
razão é a visão da mente, pela qual ela percebe a verdade em sim mesma, sem a
intermediação do corpo” (AGOSTINHO apud COLLINSON, 2004, p. 53). Tanto para
Platão como para Agostinho, a mente, na sua atividade mais elevada, tem acesso a um
Este filósofo (Agostinho) distingue entre a natureza de entidades não racionais, que simplesmente satisfazem suas propensões naturais, e – ao lado destas – os seres racionais, para os quais a natureza tem uma dualidade, dado que podem não somente alcançar as propensões naturais como também possuem habilidade para escolher umas e reprimir outras. (COLLINSON, 2004, p. 54).
Atribui-se à característica de ter mente e à capacidade de elaboração racional o lado
divino do ser humano, aquilo que o diferencia de todo o resto da natureza. Assim,
postula-se que o homem é um postula-ser à imagem e postula-semelhança de Deus, o postula-seu criador, dando à nossa
espécie uma superioridade em relação às demais. Foram necessários 15 séculos para que
Darwin propusesse a Teoria da Evolução, derrubando essa hierarquia.
É criada uma ordem inicial, quando todos os seres planeta viviam em perfeita
comunhão, um paraíso que o homem, com sua ignorância, destruiu. A ordem posterior ao
paraíso é cheia de complexidade e morte. Os seres humanos seriam em princípio algo ruim,
deturpado, feio, destorcido e que participaria dessa desorganização. Assim foram criadas as
diversas religiões cuja tendência era que sempre se olhasse para um anterior original.
Os alicerces da religião católica são construídos nessa separação entre o divino,
belo, perfeito, justo, iluminado e o material, impuro, injusto, mau, das trevas. Ela foi
estruturada no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., quando, por motivações políticas, é
postulado que Jesus foi um ser divino (da mesma “substância” de Deus) e não um mortal
como todos os outros humanos. Essa decisão tem por finalidade criar a figura de Cristo (do
grego Christós), que significa ungido. Assim foram conferidos a Jesus um prestígio e uma
o Ser Divino, que veio à Terra para salvar a humanidade das mazelas mundanas, passa a ser
considerado o fundador dessa religião.
Esse Concílio foi organizado pelo Imperador Romano Constantino, que
estrategicamente fez do Cristianismo a religião oficial do Império. Na época havia muitas
religiões pagãs e, ao adotar uma religião monoteísta, criando o corpo de Cristo, o
Imperador tratou de organizar a instituição da igreja de forma hierárquica e patriarcal, de
modo que tivesse relação direta com a organização política do Império.
Tomando os cristãos sob sua proteção, ficou delimitado com clareza o campo
adversário. Criou-se uma separação entre o mundo do Império Romano ordenado e temente
a Deus e o mundo externo, o mundo dos erros, dos equívocos. Aquele que estivesse mais
próximo desse centro estaria mais imune aos pecados e deformações da periferia. A criação
desse centro de poder, a Igreja Católica, apaziguou essa idéia da destruição, do
envelhecimento, da morte e de todas as separações constituintes da vida da espécie humana,
que na sua enorme complexidade sempre conviveu com a consciência da perda. Todo poder
totalitário cria a ilusão de permanência.
O Imperador tratou de dar unidade a essa religião, visando a fortalecer seu governo.
No Concílio, composto por mais de 300 bispos, as decisões foram muito influenciadas por
Constantino, que perseguiu e exilou os que foram contrários a suas propostas. Com a
subida da Igreja ao poder, discussões doutrinárias passaram a ser tratadas como questões de
Estado. Essa ideologia cristã associada a um poder totalitário vigorou durante toda a Idade
Média, com a figura do senhor feudal.
Nos séculos XII e XIII foram feitas novas traduções adicionais da obra de Platão
Escolástica e a Aristóteles, um novo movimento neoplatônico ganhou força, especialmente
na Itália. Justamente nessa época de retomada dos estudos de Platão, no século XII,
começam a surgir casos de freiras jejuadoras que levaram seu intento até a morte. Muitas
delas foram canonizadas santas, pois, segundo a Igreja Católica, conseguiram libertar o
espírito da matéria. É o caso de Santa Clara de Assis (1193-1253), Santa Catarina de Siena
(1347-1380), Santa Maria Madalena de Pazzi (1566-1607), Santa Rosa de Lima
(1586-1617), Santa Verônica Giuliani (1660-1727), entre tantas outras. Para essas mulheres, “o
corpo é ao mesmo tempo o maior obstáculo, o maior inimigo e o meio de acompanhar o
Redentor: o corpo que é preciso vencer, o corpo vetor de um procedimento sacrificial”
(GÉLIS, 2008, p. 55).
A Igreja Católica, ao longo dos séculos, vem elegendo pessoas que após a morte são
canonizadas santas. Essa ação serve para diminuir a distância entre as pessoas comuns e o
divino, uma vez que o santo é sempre alguém que teve durante a vida uma conduta
exemplar e por mérito atingiu a perfeição. Na prática, o santo serve tanto como modelo de
comportamento e moral quanto como uma espécie de mensageiro de pedidos: ao invés de
endereçar a súplica diretamente a Deus, usa-se o santo como um intermediário nessa
relação. É o posto máximo que um ser humano pode atingir na hierarquia postulada pela
Igreja Católica.
O grande problema da época era distinguir entre as mulheres que realmente eram
santas das impostoras. Equipes médicas eram frequentemente solicitadas para dar seus
pareceres sobre cada caso. Era surpreendente e inexplicável o fato de as freiras passarem
tanto tempo sem dormir, ingerir alimentos, nem evacuar e ainda manter a disposição para o
canonizadas. A maioria delas tinha grande poder político dentro da Igreja, apesar da
hierarquia patriarcal vigente.
Há documentos de freiras agindo dessa forma até o fim do século XV, quando a
Igreja começa a desestimular essa prática, devido ao grande número de freiras jejuadoras.
São criadas regras mais rígidas para a canonização e os jejuns autoimpostos começam a ser
considerados possessão do demônio e/ou bruxaria. É preciso ressaltar que o ascetismo das
freiras medievais é apenas um aspecto do modo de expressar seus ideais religiosos. O jejum
medieval é um símbolo dos valores coletivos, da elevação espiritual, da correção de caráter
perante Deus. Seus corpos materializavam o ideal de perfeição espiritual da época.
Com o Renascimento, novos pensamentos sobre a prática dos jejuns começaram a
surgir. As “doenças da alma” eram estudadas a partir de uma visão científica. A medicina
passou a pesquisar e a buscar explicações para a sobrevivência em condições de inanição.
Não havia mais a preocupação com o lado religioso dos jejuns, e o foco foi desviado para
os mecanismos do corpo, para manter-se funcionando com pouco alimento. Surgiram nessa
época os artistas da fomee os jejuns autoimpostos foram espetacularizados.
Kafka, em seu conto “Um artista da fome” (1922), fala sobre a vida de uma dessas
pessoas. Descreve as glórias de seus espetáculos, do grande interesse das multidões em sua
prática. Esse personagem despreza a conduta da sua assistência, que insiste em crer que é
um grande esforço se submeter àquela privação e se diverte com os que tentam achar algum
alimento escondido. Mas, com o passar do tempo, os espetáculos da fome foram perdendo
o interesse e esse artista resolve ir para um circo e realizar o maior jejum jamais feito. O
ponto alto do conto é o momento de sua morte, quando é encontrado encoberto pela palha,
jejuador, a seguinte explicação para ter rejeitado a comida por toda a vida: “Eu não pude
encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria
feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo” (KAFKA, 2004, p. 35).
Recentemente, tivemos um caso de espetacularização da fome. O artista Guillermo
Vargas Habacuc, em maio de 2007, pegou um cachorro nas ruas de Nicarágua, amarrou-o
com uma corda e prendeu-o numa parede de uma galeria de arte na Bienal Costariquenha
de Artes Visuais (Bienarte). O título da obra era Eres Lo Que Lees e era a frase escrita com
ração para cães na parede onde o cachorro estava preso. A indicação do artista para que
ninguém alimentasse o animal fez com que ele falecesse de inanição dias depois.
http://guillermohabacucvargas.blogspot.com/
Seis trabalhos dessa bienal foram premiados seguindo os critérios de grande
qualidade e coerência entre a idéia e a execução. Entre os seis estava o de Guillermo, que
e abaixo-assinados em todo o mundo contra a repetição do feito. Assim, o convite foi
revogado.
Surgiram duas discussões em torno da ação: uma questiona se a tortura de um cão
pode ser considerada arte; a outra defende o próprio cão, que teve seu direito à vida
violado. O artista, em entrevistas, contra-atacou, denunciando que todos os visitantes da
galeria observaram passivamente a agonia do cachorro sem libertá-lo, ou chamar alguma
autoridade para fazê-lo. Isso faz refletir sobre o grau de envolvimento de numa galeria de
arte, local destinado a observação de obras e performances. O acolhimento do sofrimento
do cão certamente seria diferente se ele estivesse num outro ambiente, como uma praça ou
via pública. Seu trabalho foi inspirado no caso de Natividad Canda, que em novembro de
2005 foi atacada durante 54 minutos por dois rottweillers ao entrar numa propriedade
privada para roubar. O dono da casa e o vigia presenciaram tudo sem socorrer Natividad,
que morreu no local.
Os casos das freiras jejuadoras são conhecidos hoje como anorexia santa. A prática
que foi motivo de santificação séculos atrás hoje em dia é considerada doença. Nas
biografias dessas freiras, é comum perceber o início do distúrbio alimentar como uma
tentativa de impor sua vontade frente a pressões da família (casamento indesejável ou
proibição de ingresso na vida religiosa).
Na Idade Média, havia uma divisão em classes que tinha relação direta com a
divisão da Igreja: o senhor feudal, o alto clero e a nobreza eram relacionados com o Céu; já
os camponeses e o baixo clero, com o Inferno. Essas posições eram bem definidas e não
havia mobilidade entre as classes sociais. O papel da mulher nesse ambiente era de se