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A identidade cultural e a tipografia

A língua (idioma) é uma das primeiras manifestações culturais identitárias pois reflete um somatório de expressões dife- renciadoras das restantes culturas, encerrando por si só um número de significados próprios e inconfundíveis. Exprimir- mo-nos num idioma é contar com um acumular de significados dessa cultura, que foram sendo construídos ao longo dos tempos. São disso exemplo , palavras que apenas existem num determinado idioma e que não encontram uma tradução efetiva para outras línguas. Tal como nos refere Anderson, “(…) Os ideogramas do chinês, do latim ou do árabe seriam emanações da realidade e não representações da mesma aleatoriamente fabricadas. (…)” (ANDERSON, 2005, p. 36) Se ao nível da história ocidental do livro, encontramos o latim como primeira língua oficial, que elevava a palavra a um estatuto sagrado, apenas descodificada por um grupo restrito de conhecedores (clero e nobreza), com a propagação das línguas vernaculares deu-se o impulso necessário para tornar as diferenças culturais mais visíveis e de alguma forma as isolar de outras culturas.

Do ponto de vista histórico, os livros produzidos nas línguas vernaculares, tiveram um impacto significativo na própria organização social, pois pela primeira vez permitiam o livre acesso a todos os que dominassem esse idioma. Mas o que foi inicialmente um potenciador da propagação do conhecimento e da cultura, funcionou mais tarde de forma inversa. Au- tores de uma determinada nação ficaram reféns da sua própria língua vernacular. A sua obra podia ser muito apreciada no país de origem, mas acabava por esbarrar na barreira linguística quando tentava avançar para outros países. Apesar das traduções que mais tarde surgiram, o estilo e os significados que o idioma original encerrava, acabavam por ser mal compreendidos e muitas vezes até desprezados.

“(…) No século XVII, Hobbes (1588-1678) era uma figura de renome no continente porque escrevia na língua da verdade. Shakespeare (1564-1616), por outro lado, redigido em vernáculo, era praticamente desconhecido do outro lado do Canal da Mancha. (…) ‘Depois de 1640, com cada vez menos livros a serem publicados em latim e cada vez mais a surgir nas línguas vernáculas, a edição deixava de ser uma actividade internacional [sic].’ Em suma, a queda do latim era o exemplo de um processo mais vasto pelo qual as comunidades sagradas integradas por línguas sagradas antigas se foram gradual- mente fragmentando, pluralizando e territorializando.” (ANDERSON, 2005, p. 40)

Anderson refere-nos também que a “edição livreira, sendo uma das primeiras formas de atividade capitalista, sentiu in- tensamente a busca incessante de novos mercados por parte do capitalismo.” (ANDERSON, 2005, p. 65)

O conjunto de leitores de latim foi o público inicial a ser trabalhado, mas sendo este um mercado elitista e relativamente reduzido, ficou saturado no espaço de cerca de cento e cinquenta anos. A lógica do mercado ditou assim a necessidade de encontrar novos públicos, sendo a evolução, a adoção das línguas vernaculares.

Mais uma vez, e como é habitual na História, esta passagem deveu-se a um somatório de fatores que conjugados levaram a que a narrativa se desenrolasse desta maneira. Por um lado surge-nos a mudança de características do latim, promovida pelos humanistas através da recuperação e divulgação de literatura da Antiguidade pré-cristã e usando a imprensa como ferramenta de divulgação. Estas obras eram apreciadas precisamente pelas “(…) sofisticadas proezas estilísticas (…)” tão distantes do “(…) latim eclesiástico da Idade Média (…)”. (ANDERSON, 2005, p. 67) Por outro lado o impacto da Reforma, cujo sucesso se deve também à imprensa.

No que concerne a questões mais ligadas à representação gráfica e sendo a tipografia a manifestação visual da linguagem, ela serviu umas vezes para construir uma ideia de identidade cultural, ou melhor dizendo, de identidade nacional – sendo utilizada por muitos países como ferramenta de exaltação –, e outras para romper com essa identidade instituída. Historicamente a escolha da caligrafia e posteriormente da tipografia, estiveram muitas vezes ligadas a preferências regio- nais e à natureza dos documentos editados. Desta forma foi sendo criado um mapa virtual de regiões que se distinguiam pelas preferências tipográficas usadas nas respetivas publicações. No Norte da Europa, as góticas eram as prediletas. No Sul, as humanistas.

Figura 1 . Bíblia de 42 linhas, impressa por Gutenberg em 1455

Gutenberg na impressão da Bíblia de 42 linhas (Figura 1), utilizou caracteres tipográficos que mimetizavam a caligrafia mais apreciada na região do Mainz, a Textura . Optou por imprimir um livro que esteticamente fosse familiar aos leitores de manuscritos, sendo essa familiaridade conseguida não só através das escolhas tipográficas mas também da grelha de paginação. Alguns anos mais tarde, durante o período de expansão da imprensa pela Europa, assistimos à criação de várias oficinas impressoras, cujo trabalho é de igual forma um reflexo das preferências regionais em que está inserida. Conrad Sweynheym e Arnold Pannartz, os primeiros tipógrafos a instalarem-se em Itália , fundiram tipos, tal como Gutenberg, concordantes com a estética local (Figura 2). Desta vez, foi a caligrafia humanista a ser revisitada e transposta para tipo- grafia. Em alguns dos primeiros livros editados por estes dois impressores de origem germânica, era ainda possível detetar, nos tipos romanos utilizados, reminiscências das letras góticas alemãs. Nestes artefactos é visível o reflexo da herança cultural dos autores, que transparece no desenho de letras humanistas. Em trabalhos mais tardios depois de alguns anos a conviver pessoalmente com a cultura italiana, essas referências góticas deixam de existir.

Figura 2 . Primeiro livro impresso em Subiaco por Sweynheym e Pannatz em 1465

Nos quinhentos e cinquenta anos que nos separam desde início da impressão com tipos móveis, são vários os exemplos em que esta relação (tipografia versus cultural local) se verifica. Para terminar esta enumeração podemos apontar um caso um pouco mais recente, o ressurgir das letras góticas na Alemanha Nazi, numa clara alusão ao imperialismo e gran- deza da cultura Germânica passada (Figura 3).

Figura 3 . A Minha Luta de Adolf Hitler editado em 1925

No que respeita ao contexto português contemporâneo podemos também encontrar vários exemplos de exaltação da nossa identidade cultural, através da criação de fontes tipográficas que tiveram a sua origem em manifestações culturais lusas. Agora com um propósito ligeiramente diferente, não tanto o de ir ao encontro de uma estética estabelecida, mas sim de criar referências e contribuir para a criação de uma ideia de identidade cultural própria. Nos casos de estudos deste artigo, veremos alguns exemplos que tiveram pontos de partida diversos mas cujo produto construído é um reflexo desse cenário inicial.