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3 DISCURSO E IDENTIDADE

3.3 Identidade e narrativas

Ainda nos nossos estudos sobre a identidade, consideramos pertinente dialogar com teóricos que têm contribuído para as pesquisas sobre narrativas pessoais, pois, para eles, as narrativas têm um papel central na construção de nossas identidades: “A narração de histórias é uma parte predominante da vida social, através da qual as pessoas recordam, contam e refletem sobre suas vidas”21

(BENWELL; STOKOE, 2006, p. 130). Por essa razão, quando delineamos o método que iríamos utilizar na nossa investigação, elegemos a entrevista de caráter biográfico como a mais adequada para os nossos objetivos.

20 Tradução livre de: “A key to a political consciousness that supports collective action is the feeling of an adversarial relation between oneself and another group or social category. Without the notion of a visible adversary, it is impossible to mobilize individuals into collection and coordinated actions against a specific target whether this target is an individual, a group or an institution” (SANDOVAL, 2001, p. 188).

21 Tradução livre de: “The telling of stories is a prevalent part of social life, through which people recall, recount and reflect on their lives” (BENWELL; STOKOE, 2006, p. 130).

Para os cientistas sociais, narrativas são um constructo fundamental que possibilita um melhor entendimento dos contornos da vida social. No entanto, de acordo com Benwell e Stokoe (2006), nós precisamos pensar as narrativas não apenas como um fenômeno abstrato que é codificado por filósofos, literários e cientistas sociais, mas também como algo funcional, ocasional e constitutivo de identidades. É por meio de um trabalho biográfico que as pessoas fazem suas vidas coerentes e cheia de significados.

No início, as análises de narrativas focavam principalmente em seus aspectos estruturais, buscando distinguir tipos de histórias e definir um sistema formal universal de narrativas por meio da identificação dos seus componentes. Uma vez que esse tipo de abordagem estruturalista falhava em lidar com as negociações interacionais que eram desenvolvidas nas histórias, tanto as publicadas como as produzidas em entrevistas, a análise de conversação passou a argumentar que, se histórias são analisadas, o interesse deveria estar voltado para como elas são incorporadas e negociadas na interação, em vez de focar nas estruturas internas ou eventos isolados da história. Contar história pode adquirir diferentes funções interacionais: entreter, informar, acusar, reclamar, justificar, construir organização social e realinhar ordem social. O foco nesses aspectos interacionais pode produzir uma análise mais rica.

O processo de construção de identidade na narrativa é teorizado de maneira similar à construção discursiva de identidade de modo geral: a ênfase recai sobre a identidade como uma performance em vez de uma instância anterior à linguagem; como dinâmica, e não fixa; como cultural e historicamente localizada, construída na interação com outras pessoas e estruturas institucionais, sendo ainda contraditória, situacional e continuamente atualizada. Assim, a premissa de que um Eu múltiplo, pós-moderno e flutuante é construído na fala passa a se opor à noção de um “self verdadeiro” que se esconde atrás do discurso. A prática de narração envolve o fazer da identidade, e porque nós podemos contar diferentes histórias, nós podemos construir diferentes versões do self (BENWELL; STOKOE, 2006).

Nesse contexto, gostaríamos de chamar atenção para uma perspectiva nas teorias de narrativas que, focalizando nos detalhes da interação e na organização retórica das histórias, em vez de nos seus componentes individuais, tem aberto novas possibilidades de pesquisa em linguagem, discurso e identidade.

Georgakopoulou (2006), pesquisadora que vem se dedicando aos estudos sobre discurso e narrativas, afirma que se selves e identidades são constituídos no discurso, eles são construídos necessariamente em narrativas. Ao contar histórias, narradores podem produzir descrições e avaliações editadas de si mesmo e de outras pessoas, fazendo com que alguns aspectos identitários sejam mais salientes do que outros em determinados pontos da história.

As narrativas passam a ser analisadas tanto sob o ponto de vista da maneira como o contador e as condições nas quais as histórias são contadas moldam o que é comunicado, quanto a partir do que os seus conteúdos nos dizem sobre os selves em questão. Esse tipo de abordagem passou a ser possível a partir de uma aceitação crescente da perspectiva socioconstrucionista da linguagem e da identidade, baseando-se no princípio de que selves são produzidos na interação, em processos de contestação e colaboração (GEORGAKOPOULOU; LYTRA, 2009).

Teóricos da narrativa têm observado ainda que a ideia de contar uma história adiciona algo crucial para as teorias discursivas de construção de identidades: a noção de temporalidade. As narrativas produzem um senso de identidade e coerência ao incorporar uma noção de conectividade e unidade temporal. Polkinghorne (1991) compreende a narrativa como um processo cognitivo que confere significado a eventos temporais, identificando-os como partes de uma trama. Para ele, indivíduos constroem histórias pessoais conectando diversos eventos de suas vidas em um todo unificado e compreensível: “Essas são estórias sobre o self. Elas são as bases da identidade pessoal e da auto compreensão e elas possibilitam respostas para a questão ‘Quem eu sou?’”22 (p. 136). O mesmo vale para as

identidades coletivas, pois quando grupos contam histórias sobre eles próprios, estão igualmente formulando respostas para a questão “Quem somos nós?”.

É a unidade narrativamente estruturada da “minha” vida como um todo que me abastece de uma identidade pessoal e possibilita que “eu” busque a resposta para tal pergunta. Na perspectiva do referido autor, o self solicita o mesmo tipo de estrutura e princípios de unidade e coerência das histórias narrativamente construídas. Assim, meu self narrativo me dá o contexto de unidade no qual se torna

22 Tradução livre de: "These are stories about the self. They are the basis of personal identity and self- understanding and they provide answers to the question ‘Who am I?’” (POLKINGHORNE, 1991, p. 136).

claro como estou vivendo minha vida e qual é a natureza da minha experiência individual e, também, de minha identidade.

Mas essa busca por uma unidade não é uma tarefa simples. Atingir a coerência narrativa de eventos e ações nas nossas histórias de vida não é uma façanha definitiva, pelo contrário, é um trabalho permanente e que algumas vezes se configura como um grande empreendimento. Nosso adversário nessa campanha é tudo o que se opõe à integração narrativa: desordem temporal, confusão, incoerência, caos. E, para experienciar a vida como um todo significante, nós buscamos manter e preservar o self da dissolução interna das suas partes componentes (POLKINGHORNE, 1991).

Contudo, as histórias de vida não precisam estar centradas apenas no seu próprio autor. Nossas histórias individuais podem, e talvez até precisem, expandir o protagonista de um Eu para um Nós. Esse Eu pode ser estendido para incluir outros indivíduos e comunidades, como esposos, filhos e outros entes queridos que se tornam indispensáveis para a minha história. Assim, eventos afetando minha família, ou talvez o meu próprio país, tornam-se parte da minha narrativa sobre mim mesma. Desse modo, a importância de determinados eventos passa a ser determinada não unicamente pelo seu efeito em mim, mas também pelo seu impacto nos outros que são tidos como parte de minha própria identidade: “Ao incorporar os outros e as comunidades na minha self-identidade, o self que eu sou expande sua temporalidade para além do meu nascimento e da minha morte. Meu passado é estendido para incluir os seus passados, e meu futuro para incluir os seus futuros”23

(POLKINGHORNE, 1991, 147).

Benwell e Stokoe (2006) também chamam atenção para a relação entre as nossas histórias pessoais e histórias culturais mais amplas: “Outra característica distintiva das teorias sobre a identidade narrativa é a noção de que as histórias locais que contamos sobre nós mesmos estão ligadas, de alguma maneira, a histórias culturais mais amplas (ou narrativas mestres, tramas culturais, discursos, repertórios interpretativos)”24 (p. 139). Nossas identidades como seres sociais

23 Tradução livre de: “By incorporating others and communities into my self-identity, the self that I am expands its temporality beyond my birth and death. My past is extended to include their past, and my future to include their future” (POLKINGHORNE, 1991, 147).

24 Tradução livre de: “Another distinguishing feature of narrative identity theories is the notion that the local stories we tell about ourselves are connected in some way to wider cultural stories (or master narratives, cultural plotlines, discourses, interpretative repertoires)” (BENWELL; STOKOE, 2006, p. 139).

emergem à medida que construímos experiências pessoais nos posicionando em relação às expectativas sociais e culturais. Portanto, as narrativas possibilitam a observação e a análise do contexto dessas expectativas.