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A identidade de Portugal e a sua política externa: o fim do autoritarismo imperial e a

II. Parte empírica

1. A identidade de Portugal e a sua política externa: o fim do autoritarismo imperial e a

Portugal é um pequeno Estado417 que, sendo relativamente periférico face ao concerto principal de potências,418 sempre soube ao longo de séculos, com mais ou menos dificuldade, contrabalançar a pressão continental da sua única fronteira terrestre, a Espanha, com uma vocação atlântica419 que lhe proporcionou alianças estratégicas e uma expansão marítima de que resultou um vasto e invulgar império.

Timor é herança do passado imperial de Portugal. Ora, como sabemos, de um modo geral, em todo o imperialismo e colonialismo ocidental não existiu nem vontade nem capacidade de dotar as colónias com estruturas políticas consistentes - quer ao nível institucional quer ao nível dos recursos humanos - que lhes permitissem um caminho de paz e desenvolvimento;420 Timor não foi excepção, bem pelo contrário.421

417 Todavia Portugal sempre foi um pequeno Estado especial, pois fruto das sua expansão marítima e da

sua tradição imperial benigna sempre soube projectar a sua influência externa muito para além do seu peso territorial e demográfico. Sobre a problemática dos pequenos Estados veja-se GOETSCHEL, Laurent - “The Foreign and Security Policy Interests of Small States in Today’s Europe”, in GOETSCHEL, Laurent (ed.) Small States Inside and Outside the European Union. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1998, pp. 13-31; KNUDSEN, Olav F.– “Small States, Latent and Extant: Towards a General Perspective”, in Journal of International Relations and Development. Vol. 5, nº2, 2002, pp. 182-198; NEUMANN, Iver B.; Sigelinde Gstöhl - Lilliputians in Gulliver’s World: Small States in International Relations. Working Paper 1, University of Iceland: Centre for Small State Studies, 2004. SMITH, Nicola; Michelle Pace; Donna Lee - “Size Matters: Small States and International Studies”, in International Studies Perspectives. Vol. 6, nº 3, 2005, pp. 395-397; THORHALLSSON, B. - The Role of Small States in the European Union. Aldershot: Ashgate. 2000.

418Existiu, ainda assim, como bem salienta George Modelski, um período em que Portugal foi uma grande

potência no sistema internacional. Veja-se MODELSKI, George - “The long cycle of global politics and the nation state” in LINKLATER, Andrew (ed.) - International Relations: Critical Concepts in Political Science. New York: Routledge, 2000, pp. 1340-1360; e MODELSKI, George; DEVEZAS Tessaleno, W.T. (ed.)- Globalization as Evolutionary Process: Modeling Global Change, New York: Routledge, 2008.

419 Veja-se MACEDO, Jorge Borges - História Diplomática Portuguesa Constantes e Linhas de Força.

Lisboa, IDN, vol. 1, 1987.

420 Claro que fazer isso seria contradizer a essência do colonialismo. Na realidade, quando se

proporcionavam algumas condições de desenvolvimento material e humano às colónias, - como aconteceu ainda que incipientemente com a Índia - muito naturalmente, elas aspiravam a deixar de o ser. Em última análise foi também isso que aconteceu com os EUA relativamente ao Reino Unido.

421 Em 1963, o cônsul australiano no território, James Dunn, descrevia desta forma o estádio de

desenvolvimento de Timor: “O Timor português é um território pobre extremamente subdesenvolvido. Não tem indústrias de transformação, dispõe de poucos recursos naturais e tem uma produção agrícola de baixo nível de subsistência. Muito pouco foi feito pelos portugueses para corrigirem estas deficiências e não existe qualquer prova de que estejam a ser feitos esforços genuínos para as resolver num futuro previsível.” Telegrama secreto, 5 Fevereiro 1963, desclassificado pelo governo australiano em 2002. Citado em Relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) de Timor-Leste. CAVR, Timor- Leste, 2005, cap.7, p. 10.

Na verdade, como refere o último governador português, Mário Lemos Pires, “Timor era o território mais esquecido do nosso ultramar.”422

A este problema geral do colonialismo ocidental acresce, no caso português, que a potência colonial não era nem rica e desenvolvida nem democrática. Com efeito, o problema de Timor tem as suas origens remotas no facto de Portugal ter sido, ao mesmo tempo, um dos últimos regimes autoritários ocidentais e o último império colonial ocidental. 423

Todavia, ou se quisermos, a somar a todos estes problemas, o factor central do nascimento da questão do Timor português prende-se, invariavelmente, com o tempo e o modo como Portugal deixou de ser um regime autoritário e imperial. Ou seja, por um lado, pelo atraso com que não conseguiu fazer uma transição democrática e, por outro, pela a incapacidade de a fazer sem um período revolucionário em curso. Com efeito, num exercício contrafactual de wishfullthinking moderado, podemos dizer que se Portugal tivesse conseguido fazer uma transição democrática normal após o desaparecimento de Salazar poderia ter realizado uma descolonização negociada e sem dor. Relativamente a Timor é plausível que Portugal pudesse ter iniciado um processo de transição colonial tutelado e concluído com um referendo de autodeterminação. Neste cenário contrafactual, Portugal teria desenvolvido mais cedo o seu processo de normalização interna e externa e não teria desperdiçado uma ou duas décadas. Ter-se-ia ganho muito tempo de paz e desenvolvimento. Mas, como todos sabemos, se existe uma lei histórica incontestável é que a história do mundo não se produz como seria desejável, e a história contemporânea de Portugal e de Timor é disso um claro exemplo.

A verdade é que, na história factual, no dia 25 de Abril de 1974 Portugal através de um “golpe de libertação”424

começou o início do fim do Portugal autoritário e

422 PIRES, Mário Lemos - I Relatório do Governo de Timor, 1974-1975. Lisboa: Presidência do Conselho

de Ministros, 1981, p.19.

423 Como refere o Relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR) de Timor-

Leste. CAVR, Timor- Leste, 2005, cap.8, p. 98: “Durante a quase totalidade do período do seu governo em Timor-Leste, Portugal criou um ambiente totalmente contrário à concretização do direito à autodeterminação. Não foi desenvolvido qualquer esforço para implantar o nível mínimo de autonomia governativa e os valores democráticos não foram defendidos, nem na teoria nem na prática. Sob o regime de Salazar-Caetano, Portugal negligenciou a economia timorense, contribuindo assim para criar na comunidade internacional a percepção de Timor como território economicamente inviável, incapaz de subsistir como Estado independente. Portugal não preparou o povo de Timor-Leste para a autonomia governativa, não permitindo uma participação política de base alargada, nem encorajando de qualquer outra maneira os valores democráticos.” Portugal recusou-se a reconhecer que o artigo 73º da Carta das Nações Unidas se aplicava a Timor como território não autónomo, não cumprindo as suas obrigações decorrentes dessa disposição.

424 SCHMITTER, Philippe C. – “Libertação por Golpe”, in Portugal: do Autoritarismo à Democracia.

imperial. E é aqui que começa um conjunto interligado de puzzles para a política externa de Portugal.

O primeiro, diz respeito à importante relação entre a política externa e a identidade de Portugal. A política externa com a sua dimensão simbólica relativa a nacionalidade e soberania exerce uma função significativa na imaginação sociopolítica da identidade colectiva de um Estado. Basta atentarmos nos discursos sobre a política externa para nos apercebermos de sentimentos subjectivos relativos a costumes, instituições, territórios, mitos e rituais reveladores de uma especificidade cultural e identitária. Estas expressões de identidade são indicativas de como é que os decisores da política externa vêm o passado, o presente e projectam as suas escolhas e acções políticas futuras. Deste modo, quando suficientemente internalizadas estas expressões da identidade nacional passam a fazer parte da cultura política e do estilo nacional da política externa do Estado. Com efeito, como sublinha Vertzberger “Culture represents a unified set of ideas that are shared by the members of a society and that establish a set of shared premises, values, expectations, and action predispositions among the members of the nation that as a whole constitute the national style.”425

Estas ideias e valores culturais podem ser interpretadas como uma doutrina nacional, ou um “belief system”426

que conduz a política externa dos Estados. Deste modo, as imagens e as ideias sobre quem somos e como nos situamos no mundo servem como guias essenciais para a construção das visões do mundo dos decisores e agentes diplomáticos na sua acção política. Assim, estas lentes conceptuais através das quais os actores da política externa percepcionam as relações internacionais tendem a formatar aquilo que eles próprios passam a considerar como a mais racional política externa. Importa, contudo, sublinhar que, ao contrário do que defendem as teorias mais tradicionais, as fontes socioculturais da política externa são dinâmicas e podem ser objecto de mudança. Até porque o Estado contém em si mesmo um conjunto variado de grupos sociais com interesses e preferências identitárias diferenciadas. Ou seja, não podemos abordar a problemática da cultura política de um Estado, e da consequente identidade da sua política externa, de um ponto de vista estático. Pelo contrário, é fundamental adoptar uma concepção dinâmica de cultura política e da identidade dos

425

VERTZBERGER- op. cit. 1990, p. 267.

426 HOLSTI, Ole – “The Belief System and National Images: a case study”, in Journal of Conflict

Resolution. Vol. 6, 1962, pp. 244-252. SMITH, Steven - “Belief Systems and the Study of International Relations” in Little, Richard;Smith, Steven (Eds.) - Belief Systems And International Relations. Oxford, Blackwell, 1988.

Estados. Uma tal concepção assume que numa sociedade, nem todos, nem sempre, têm necessariamente de suportar as suas instituições políticas em todos os momentos, nem interpretar a identidade política nacional de uma forma unitária. Aliás, como prova o caso português, em especial no seu período transitório pré-constitucional, em determinados momentos podem existir fossos de credibilidade na cultura política do Estado, o que provoca o surgimento de interpretações identitárias e de sentidos históricos diferentes e competitivos entre si.427

Na verdade, a política externa de um Estado é antes de tudo uma política de identidade.428 Ou seja todo e qualquer Estado assenta a sua política externa num sentimento partilhado de identidade nacional. É esta que vai fundamentar o seu posicionamento hierárquico e normativo na sociedade internacional, as suas alianças, amigos e inimigos, e os seus interesses e aspirações essenciais. Estas assumpções básicas sobre a identidade nacional de um Estado estão embebidas na história, tradição e mitos nacionais. O que significa que, normalmente, mudam muito lentamente. Todavia, a identidade nacional não é imune a mudança. De facto, a identidade de um Estado sofre mudanças à medida que os seus líderes e elites a reinterpretam e, sobretudo, quando importantes acontecimentos externos e internos provocam alterações que a afectam e reconstroem. Com efeito, como o construtivismo social sublinha, as construções identitárias não são fixas ou permanentes. Ao contrário, elas são contextualmente dependentes, ou seja, evoluem e mudam ao longo do tempo429 de acordo com os contextos ambientais, aquilo a que chamamos o ambiente ideacional e o

ambiente político.

Na verdade, em circunstâncias históricas muito particulares ocorrem transformações que tem um impacto tão profundo no Estado que podem levar a redefinições na identidade, preferências e interesses da sua política externa. Ora, foi precisamente isso que aconteceu com o Estado português com o fim do autoritarismo e a transição à democracia.

427 Para uma análise da competição e diferenciação das visões do mundo dos principais actores na política

portuguesa durante a sua transição veja-se MENDES, Pedro - “A dimensão internacional da transição democrática em Portugal” in População e Sociedade, CEPESE, Porto: 2004, pp. 171-192.

428 Cf. o capitulo 2.3 do presente trabalho.

429 Como refere Ignatieff: “National identity is not fixed or stable: it is a continuing exercise in the

fabrication of illusion and the elaboration of convenient fables about who we are.'' IGNATIEFF, M.- “Identity Parades”, in Prospect, April,1998 p. 18.

Claro que a excepcional hiper identidade de Portugal permitiu que sua identidade ontológica não sofresse uma crise radical.430 Do que estamos a falar é da identidade política,431 ou seja, do conjunto de ideias acerca da polis que os líderes políticos constroem e utilizam para mobilizar os sentimentos de coesão social e para legitimar as grandes opções de política externa. Esta identidade política é o elo de ligação entre as normas e os interesses que motivam o comportamento dos Estados.432 É esta identidade que vai ajudar à endogeneização433 de interesses e preferências dos líderes e elites políticas e à articulação e institucionalização de uma determinada cultura política. Esta cultura política irá ser cognitivamente interiorizada pelos actores responsáveis pela política externa que, definitivamente, passam a ter uma determinada “visão do mundo”434

a partir da qual interpretam a realidade da política internacional. Deste modo, um dos pontos fundamentais que ressaltam da argumentação construtivista, e que nos é particularmente útil, é o processo de endogeneização da identidade democrática de Portugal e da sua projecção nos interesses e preferências da sua política externa e da sua inter relação com as normas internacionais.

Isto significa que não podemos compreender em todo o seu alcance qualquer tema de política externa de Portugal - especialmente da década de setenta em diante -

430

LOURENÇO, Eduardo – “Identidade e Memória o Caso Português” in FERREIRA, Eduardo de Sousa; OPELLO JR, Walter C. (org.) - Conflitos e Mudanças em Portugal, 1974-1984. Lisboa, Edição Teorema, 1985, p. 18.

431

Como refere Parekh:” The political identity of a community refers to the way its political life is constituted, and includes the manner in which it conceptualizes and demarcates its political life, organizes and manages its collective affairs, structures its legal and political institutions and conducts its political discourse. It also includes the values to which the polity is collectively committed, and the qualities of temperament and character it admires and on which it relies ... and refers to its deepest fears, ambitions, anxieties, tendencies, dominant myths, traumatic historical experiences and collective memories.” PAREKH, Bhikhu "The Concept of National Identity", in New Community. Vol. 21, nº 2, 1995, pp. 255- 268.

432 HERMAN, Robert – “Identity, Norms, and National Security: The Soviet Foreign Policy Revolution

and the End of Cold War” in, KATZENSTEIN, Peter ed. - The Culture of National Security: Norms and Identity in World Politics, Op. cit, pp. 271-316, especialmente pp.283-288.

433 O construtivismo defende duas assumpções básicas. A primeira é que os Estados operam num

ambiente que é material mas também é ideacional. E, em segundo lugar, que é este ambiente socialmente construído que providencia aos decisores dos Estados a compreensão e o conhecimento dos seus interesses. Deste modo, assumindo que o ambiente não é estático natural e imutável, mas que é construído socialmente - ou seja a realidade está em permanente construção social – a identidade política e os consequentes interesses e preferências dos agentes e decisores não podem ser dados como adquiridos, mas antes como dinâmicos e, portanto, como factores decisivos para a compreensão dos fenómenos políticos. Ou seja, os interesses dos Estados não são fornecidos de forma exógena, mas emergem de forma endógena, ou seja, do ambiente ideacional interno do Estado e da sua inter-acção social com o ambiente ideacional internacional. Neste contexto, os consttrutivistas sublinham que as normas para além de regularem o comportamento adequado (carácter regulador), são também importantes na constituição das identidades e interesses dos actores (carácter constitutivo). Sobre este assunto veja-se o capitulo 2.1

434 GOLDSTEIN, Judith; KEOHANE, Robert – “Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework” in

GOLDSTEIN, Judith; KEOHANE, Robert (ed. by) – Ideas and Foreign Policy: Beliefs, Institutions, and Political Change. New York, Cornell University Press, 1993, pp. 3-30.

sem percebermos, em primeiro lugar, a revolução coperniciana435 na imagem identitária que se iniciou com o 25 Abril de 1974. Desde logo, porque Portugal sofre uma alteração radical da sua fronteira geográfica436, deixa de ser um Estado ultramarino, do Minho a Timor, com um território pluricontinental de 25 milhões de pessoas e volta a ser o rectângulo europeu de noventa e dois quilómetros quadrados com 10 milhões de habitantes. Depois, e sobretudo, porque a identidade do Portugal autoritário com base na ideia essencialista437 de nação ultramarina especial deixa de existir para dar lugar a construção de uma nova identidade política.

Daqui decorre o segundo puzzle: a relação entre política interna e política externa. A mudança de regime trouxe consigo uma negação da visão do mundo existente na antiga ordem autoritária e imperial e deu origem a uma nova ordem que foi legitimada, precisamente, por uma “ideational change”438, ou seja, por novas ideias, novos princípios normativos que vão determinar uma nova agenda política e um novo caminho - road-map439 - para Portugal e para a sua política externa. Efectivamente, o

fim do regime autoritário e o processo de transição à democracia introduz um conjunto de ideias e princípios normativos que legitimam a mudança de regime. Estes princípios que foram plasmados sinteticamente através da fórmula contida no programa do MFA:

Democratização, Descolonização, Desenvolvimento, determinaram uma redefinição

profunda da política externa portuguesa.440 Efectivamente, como bem sublinha Manuel Braga da Cruz, “a mudança iniciada a 25 de Abril de 1974 não foi apenas uma transição de um regime autoritário para um regime democrático, (…) A mais decisiva transformação ocorrida com a mudança do regime, foi a do enquadramento externo de Portugal com óbvias repercussões internas.”441

435 MENDES, Pedro - - “A dimensão internacional da transição democrática em Portugal: a influência da

Europa” in FREIRE, Raquel, (Coord.) The Challenges to Democratization in a Global World. Porto: Afrontamento, 2004, Porto.

436 Sobre este assunto veja-se MOREIRA, Adriano – “Fronteiras: do Império à União Europeia” in

BRITO, J. M: Brandão (Coord.) – op. cit., pp. 269-289. 437

Este conceito, é uma construção nossa com base na interpretação do art. nº 2 do Acto Colonial, onde se afirma. “é da essência da nação portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam (…)”. Citado em ALEXANDRE, Valentim – “O Império Colonial” in PINTO, António Costa, op. cit. p. 48, (sublinhados nossos). Para um melhor desenvolvimento veja-se MENDES, Pedro - Portugal e a Europa Comunitária: Factores de Afastamento e Aproximação da Política Externa Portuguesa (1970-1978). Tese Mestrado. Lisboa: ISCTE, 2001.

438 GOLDSTEIN Judith; KEOHANE, Robert – op. cit., p. 15. Cf. o ponto 1.5 do presente trabalho.

439

Ibidem.

440 TEIXEIRA, Nuno Severiano – “A Política Externa, 1890-1986”, in PINTO, António Costa – Portugal

Contemporâneo, op. cit., p. 89.

441 CRUZ, Manuel Braga – “O Estado Democrático em Portugal” in CRUZ, Manuel Braga -Transições

O terceiro puzzle prende-se com os interesses e preferências da política externa de Portugal e a sua relação com as normas internacionais.442

Com efeito, não podemos deixar de ter presente que o fim do autoritarismo foi precipitado pelo problema colonial que através de um golpe de libertação liderado pelo MFA deixou uma impressão genética no processo de transição à democracia. Ou seja, o problema colonial era o grande bloqueador, quer ao nível interno quer ao nível externo, para Portugal ser considerado um Estado que se comportava de acordo com as normas típicas de um Estado europeu ocidental. Portugal, de um ponto de vista das normas, era mal considerado e a sua imagem e prática na política internacional não era a de um Estado que agia de acordo com o comportamento adequado.

Durante todo o regime autoritário Portugal teve uma identidade política autárquica e isso reflectiu-se numa clara doutrina isolacionista da sua política externa. Mas, sobretudo, a partir de finais da década de cinquenta e inícios da década de sessenta, com a entrada na ONU e com as guerras coloniais, Portugal passa a ter uma política externa isolacionista de resistência e de clara não conformidade com as normas internacionais. Basta lembrar que Portugal trava com a ONU, plataforma normativa por excelência da política internacional, um sério litígio político-normativo entre 1955 e 1974443, a propósito da descolonização, que vai deixar marcas importantes na cultura

442 Na linha dos principais autores construtivistas, assumimos as normas como o conjunto de ideias e

regras que produzem expectativas de comportamento adequado com base em valores intersubjectivamente partilhados num determinado sistema. Deste modo, as normas internacionais podem ser definidas como as expectativas de comportamento adequado que são partilhadas na sociedade internacional ou num subsistema internacional particular pelas suas entidades constitutivas, os Estados. Para uma discussão teórica veja-se Boekle, H., Rittberger, V., Wagner, W. - Norms and Foreign Policy: Constructivist Foreign Policy Theory, Center for International Relations/Peace and Conflict Studies,