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1 INTRODUÇÃO

2.3 DO PROCESSO MIGRATÓRIO

2.3.1 Identidade versus diferença

Como demonstrado pela a sociologia do migrante, este difere da população do meio social de origem ao menos pela recusa ao conformismo, e aqui reside boa parte da importância do estudo: Se o mundo hoje clama por solidariedade, não restam dúvidas de que seja impossível adequar um mundo sem fronteiras ao das econômicas (RAMOS, 2003, p.19- 20; 24-25). Observa-se, entretanto, que nunca foi tão difícil circular. Em um mundo onde as distâncias tornam-se cada vez menores, com pessoas e informações rompendo as barreiras do tempo e das fronteiras; em um sistema internacional e globalizado, quando que se propõe pensar em uma ética igualmente global, faz-se preciso resgatar a hospitalidade à esfera pública, compreendendo como o sentimento de ser ou não bem recepcionado favorece ou dificulta as políticas públicas de respeito aos direitos do outro (RAMOS, 2003, p.29).

Para RAMOS (2003, p.29), sentir-se bem-recebido dependeria da cidade pela qual se circulava, “do quanto o indivíduo conhecia sua história e atribuía valores ou não aos espaços coletivos, de como concebia o sentido a cada passo que refazia nas ruas tão bem conhecidas”. Estar sujeito a quanto o indivíduo é considerado ou se considera estrangeiro no próprio espaço, se sua nação é para ele mais que um objeto de consumo ou um local de direito independente de sua aparência física, sexo ou condição socioeconômica. A hospitalidade está atrelada, essencialmente, às questões de identidade.

LAFER (2004, p. 15) explica que o termo identidade, por si só, traz dificuldades em sua definição, por vezes devido ao seu relacionamento com outros termos como igualdade, diferença e alteridade: “Não obstante essas dificuldades podem ser entendidas, por via de aproximação, como um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde à pergunta: Quem sois?” Se no plano individual a resposta à pergunta não é simples, no coletivo será sempre complexa.

O ponto de partida da construção da idéia de identidade coletiva, como observa BOVERO (1983 apud LAFER, 2004, p.15), é a noção de um bem/interesse comum que leva os indivíduos a afirmarem uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada de tal bem ou interesse comum. No entanto, a identidade coletiva não necessariamente significa nacional, mas também pode sê-lo, uma vez que paradoxalmente se formam em função do sistema internacional, quer seja no contato ou na interação com o outro. No Brasil e em outros Estados, a sustentação de uma convivência coletiva apropriada e pautada pela solidariedade internacional é recorrente nas discussões históricas, sociológicas e filosóficas (LAFER, 2004, p. 16).

Diversos são os aspectos específicos que dizem respeito ao caráter coletivo do nós - cabe destacar a localização geográfica no mundo, a trajetória histórica, o código da língua e da cultura, os níveis de desenvolvimento e os dados de estratificação social. O exercício diplomático porquanto uma política pública alimenta-se em uma “dialética de mútua implicação e polaridade, tanto na história do eu quanto na do outro” (CORRÊA, 2000 apud LAFER, 2004, p.19). Para elucidar os traços importantes da identidade nacional brasileira, estimuladora dos laços entre o eu e o outro, ressaltam-se: sua localização estratégica na América do Sul; sua escala continental; o relacionamento que mantém com os muitos países vizinhos; a unidade lingüística; a menor proximidade, desde a Independência em 1822, dos focos de tensão presentes no centro do cenário internacional; o tema de estratificação mundial e o desafio, sempre presente, do desenvolvimento sustentável (LAFER, 2004, p.20).

Ainda, em muito contribuiu a postura recorrente e histórica do Ministério das Relações Exteriores como instituição permanente da nação brasileira. O país, assim, possui certa autoridade e memória que permite e estimula a interação com novos e diversos atores, em uma “obra aberta voltada para construir o futuro através da asserção da identidade internacional do país” com uma visão de mundo (LAFER, 1993 apud LAFER, 2004, p.21).

O Brasil tem uma especificidade que lhe confere identidade singular no âmbito do sistema internacional, no século que se inicia. É, pelas suas dimensões, um país continental como os EUA, a Rússia, a China e a Índia. [...] O Brasil não está e nunca esteve, em sua história, na linha de frente das tensões internacionais prevalecentes no campo estratégico-militar da guerra e da paz (LAFER, 2004, p.24).

HOLANDA (1990, p.13) reformula que a ação colonizadora no Brasil realizou-se “por uma contínua adaptação ao meio ambiente, numa flexibilidade aberta a padrões primitivos e rudes aos indígenas, para só depois e aos poucos, com base na experiência,

implantar formas de vida trazidas da Europa”. Assim, LAFER (2004, p.38) argumenta que a formação das primeiras identidades brasileiras...

[...] é uma confluência de variadas matrizes raciais e distintas tradições culturais que, na América do Sul, sob a regência de colonizadores, deu lugar a um povo novo. Este não é propriamente um povo transplantado, que tenta reconstruir a Europa em novas paragens. Ele contrasta com os povos-testemunha do México e do altiplano andino – herdeiros das grandes civilizações pré-colombianas – que vivem na carne e no espírito o drama da dualidade cultural e o problema/dilema da integração a cultura ocidental. É um novo mutante, com características próprias, mas inequivocamente atado à matriz lusitana, em função da unidade da língua no vasto espaço nacional.

Apesar do persistente dilema da exclusão social, o Brasil permanece plural em sua escala continental e por sua “composição multiétnica, lingüisticamente homogêneo, propenso à integração cultural e razoavelmente aberto ao sincretismo da diversidade”. Um outro ocidente, mais pobre, mais enigmático, mais problemático, mas não menos Ocidente, ainda valorizando as palavras de LAFER (2004, p.38).

O povo novo, fruto da primeira leva da descolonização, levou a afinidades que fizeram o Brasil, na Organização das Nações Unidas, a partir de 1953, com maior precisão em 1960 e com inequívoca assertividade em 1961 e 1962, sustentar a liquidação do colonialismo. Dizia em 1961, na Assembléia Geral, o chanceler Afonso Arinos: O movimento de libertação dos antigos povos coloniais não retrocederá. O Brasil, antiga colônia, está construindo uma nova civilização, em território largamente tropical, habitado por homens de todas as raças. Seu destino lhe impõe, assim, uma conduta firmemente anticolonialista e antiracista. (LAFER, 2004, p.40).

Em 1963, novamente no âmbito da Organização das Nações Unidas, o chanceler Araújo Castro defendeu os três Ds: Descolonização, desenvolvimento e desamamento. Acrescentou, segundo LAFER (2004, p.41), as razões econômicas que sustentavam igualmente a erradicação do arcaísmo histórico e sociológico do colonialismo – representavam medidas “de alto interesse defensivo das economias de todas as antigas colônias, quaisquer que fossem as fases de sua libertação política e os continentes em que se localizassem”. Na ocasião, a dimensão econômica do anticolonialismo mencionada integrava o conceito de Terceiro Mundo, que adquiriu densidade com a “descolonização e consistência política quando, no sistema internacional, a clivagem norte/sul encontrou espaço nas brechas da bipolaridade leste/oeste” (LAFER, 2004, p.41-42). Figurando entre os terceiro-mundistas, o Brasil singularizou sua posição em função do elemento acima descrito como outro ocidente de sua identidade, o que colaborou para que, em um futuro próximo daquele momento, fosse caracterizado como emergente.

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Observava assim, na época, o Chanceler Saraiva Guerreiro, que o Brasil é um país de contrastes com múltiplas dimensões. Por isso participa naturalmente de numerosas esferas do convívio internacional. É um país ocidental no campo dos valores, em função da sua formação histórica, realidade que não excluía a sua inserção entre os países do Terceiro Mundo, com os quais tinha posições afins no quadro das ações específicas voltadas para o desenvolvimento, que respondiam ao interesse nacional. Como se vê, a idéia de dupla inserção representa a especificidade brasileira de um Outro Ocidente. É uma especificidade compartilhada com boa parte da América Latina no âmbito do Terceiro Mundo, que também abrange, na sua diversidade, países africanos e asiáticos, cujas matrizes culturais e demográficas têm características muito diferentes das nossas. (LAFER, 2004, p.41-42).

Propõe o autor (2004, p.44): Na história das Relações Internacionais, o Brasil é relembrado pelo desempenho negociador e padrão exclusivamente pacífico na fixação de fronteiras nacionais. Tal desempenho se caracterizou pela “concentração metódica-sistemática de todos os recursos diplomáticos e do uso legítimo, não-violento, do poder, sem chegar ao conflito militar, para a solução com êxito do conjunto dos problemas fronteiriços” (LAFER, 2004, p.44). Ademais, no ápice, a Constituição Federal de 1988 veio abarcar, em seus princípios supremos, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e a concessão de asilo político, fixando de vez uma identidade nacional favorável à migração.

A vida política regula o confronto, mas também a combinação do empirismo das trocas e do respeito absoluto, moral e não social, da liberdade humana. Direito positivo e direito natural, regulação econômica e social e princípios morais inscritos numa constituição, em práticas judiciárias e na opinião pública combatem-se, mas também se combinam permanentemente. Assim, a diversidade de atores definidos não somente pelo lugar que ocupam na sociedade, mas também cada vez mais por sua identidade pessoal e por sua herança cultural, combina-se com sua igualdade que tem como referência comum um princípio não social, a liberdade humana, ao passo que caso se tente substituir a igualdade e a diferença no interior do mesmo conjunto social (TOURAINE, 1998, p.95).

BITTAR (2006, p.33) propõe valiosas indagações: Qual o papel da mídia em tempos de globalização? Será que a globalização da informação está sendo acompanhada por um papel de democratização e intersecção cultural dos povos, ou será que a mídia tem colaborado para a construção de imagens que acentuam crescentemente mais a oposição humana? É neste sentido que a estrutura da comunidade internacional vê-se inteiramente guiada pelas informações que se encontram à sua disposição.

Diante da impossibilidade de se conhecer à outra cultura senão pelos televisores, acredita-se naquilo que se torna o relato da verdade. Este relato de parcial se torna formativo, opinativo, e, quando não muito, torna-se também fonte oficial de informação para deliberações governamentais. A opinião pública guiada por esse tipo de lógica somente pode acentuar a diferença entre os povos e ostentar condições

de provocação do choque de civilizações a que se refere Samuel Huntington. As imagens caricatas são a face mais retórica a ser explorada dentro do contexto da insegurança global (BITTAR, 2006, p.34).

Ainda, a mídia deve ter um papel diferente do atual – importante, mas assegurando outra forma de agir - informer n'est pas une liberté pour la presse, mais un

devoir9. A mídia, segundo CASTRO JR. (2003, p.36), deve auxiliar no desenvolvimento de

um projeto de democracia internacional que tenha em mente a sociedade cosmopolita; este termo, metáfora do cidadão peregrino empregada por Richard Falk, encoraja a necessidade de redefinir a noção de cidadania “dando primazia ao alcance indiscriminado da responsabilidade partilhada sobre a autonomia individual, e a uma contextualizada ética de sobre uma ética de princípios abstratos” (CASTRO JR., 2003, p.36).

Reivindica, então, BITTAR, (2006, p.34) que em uma cultura internacional emancipatória dos povos, é imprescindível conhecer antes de se pronunciar, fazer conhecer antes de se opor, reconhecer para libertar, e admitir que é impossível a construção de uma consciência multicultural - primeiro degrau para a formação de uma ética global -, sem que antes as culturas estejam predispostas ao diálogo, o que não se pratica com imagens chocantes e/ou de venda garantida nos jornais matinais.