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2.2 Identidade e sexualidade

2.2.1 Identidades de gênero

Butler (2016) problematiza as noções de sexo, gênero e desejo. Ela sugere que a ideia “natural” que se tem sobre sexo é construída discursivamente, por discursos científicos, a fim de atenderem determinados fins políticos e sociais. Assim, essa noção sobre sexo é colocada no campo do pré-discursivo, “anterior a cultura”, de modo que assegura a sua “estabilidade interna” e a sua “estrutura binária”.

A partir da concepção de construção discursiva do sexo, ou seja, como uma construção social e não um fato imutável da natureza, a autora sugere que, desde o princípio, “o sexo sempre tenha sido o gênero” (BUTLER, 2016, p.24). Desta maneira, não caberia pensar o gênero apenas como inscrição cultural do sexo, mas o aparato de produção pelo qual ele se estabelece:

Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele é também o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior a cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura. (BUTLER, 2016, p. 24)

Sob essa perspectiva, o gênero também é construído. A maneira como é construído, pela cultura hegemônica, acarreta um determinismo social excludente de possibilidades agentes e transformadoras e o corpo é tido como simples recipiente de certa lei cultural.

Conforme Butler (2016), a concepção beauvoiriana compreende que há um agente na construção do gênero, contudo, essa construção é dada a partir de uma cultura compulsória. Faz parte dessa cultura, o pensamento “lógico” de estruturas binárias e é pelo discurso que se condiciona a experiência do gênero.

A teoria feminista humanista distingue-se da teoria social do gênero. A primeira concebe “o gênero como um atributo da pessoa” (BUTLER, 2016, p.32) em que ela é esse núcleo que comporta um gênero preestabelecido. Comporta

características universais “de razão, moral, deliberação moral ou linguagem” (idem).

O problema desta teoria está em não considerar os fatores históricos e sociais que se relacionam e determinam a construção do gênero. Nisso, se distingue da segunda. Em razão desses fatores, não se pode pretender identidades universais. Elas não são iguais, permanentes ou estão, necessariamente, unificadas e coerentes e entre si.

Butler (2016) ainda chama atenção para outros fatores que fazem parte da construção da identidade. As práticas que regulam a formação e a divisão do gênero, por exemplo, em que medida, elas constituem a identidade? De que maneira elas formam a coerência do sujeito? Como controlam a noção de identidade?

A autora sugere que a identidade é mais um ideal normativo que uma descrição da experiência da pessoa. As características de coerência e continuidade exigidas são normas de inteligibilidade. Tais normas são instituídas e mantidas pelo social, “não são características lógicas ou analíticas da condição de pessoa” (BUTLER, 2016, p. 43). Essa identidade é ainda subsidiada “por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade” (idem) e, portanto, os que fogem a estas concepções, a estas coerências, encontram-se em não conformidade com o padrão estabelecido.

Como já foi tratado anteriormente, para Butler (2016), são as práticas reguladoras que produzem as identidades. Estas devem ser coerentes. A construção dessas identidades se dá a partir de uma matriz de normas dos gêneros, os quais também devem ter a característica da coerência e da continuidade nas relações entre “sexo, gênero, prática sexual e desejo” (BUTLER, 2016, p. 43). Os gêneros que mantêm essas relações de coerência são chamados de “gêneros inteligíveis”.

Sob este ponto de vista, a forma e o significado atribuídos à sexualidade devem corresponder ao que as leis culturais estabelecem como coerente. O desejo sexual, via prática sexual, deve corresponder ao que as normas impõem como coerente ao “sexo biológico” e ao “gênero cultural”. Ocorre que o desejo, ao ser heterossexualizado, produz oposições não-simétricas e discriminadas entre masculino e feminino, os quais “equivalem”, respectivamente, ao macho e à fêmea.

Concebe-se aqui a identidade como “efeito de discursivas práticas” (BUTLER, 2016, p.45). É necessário observar, em que medida, essas práticas são reguladoras e são, predominante e compulsoriamente, heterossexuais no que se refere à identidade de gênero.

Conforme Foucault apud Butler (2016), a identidade é um princípio cultural, caracterizada pela ordem e pela hierarquia. Esse princípio, como percebe-se, não é de ordem natural, causal, é arbitrário. É uma ficção reguladora.

O regime de sexualidade, historicamente construído, regulamenta e rege a experiência sexual. A maneira pela qual regula essa experiência é por meio da

categorização distinta, binária e opositora do sexo. O que parece ser relação de causa entre sexo, experiência sexual, comportamento e desejo, é, na realidade, efeito desse modo de regime. Essa aparente relação causal, compulsoriamente heterossexualizada, é produzida pelo discurso naturalista e a partir da metafísica da substância.

Se a noção de uma substância permanente é uma construção fictícia, produzida pela ordenação compulsória, de atributos em sequências de gênero coerentes, então o gênero como substância, a viabilidade de homem

e mulher como substantivos, se vê questionado pelo jogo dissonante de atributos que não se conformam aos modelos sequenciais ou causais de inteligibilidade. (BUTLER, 2016, p. 55)

Assim, linhas de coerência, estabelecidas pela cultura, regulam atributos, os quais geram uma “aparência de substância permanente ou de um eu com traços de gênero” (idem). O efeito substantivo do gênero é performance posta pelas práticas que o regulam.

Estas concepções permitem pensar performances “não coerentes” aos “gêneros de inteligibilidade” como as de homossexuais, de hermafroditas, de transgêneros, bem como as de heterossexuais que fogem a este padrão de coerência. A sociedade, por meio da cultura e dos discursos, estabelecem as práticas “femininas” e “masculinas”. Agir diferente do estabelecido, é ser “incoerente”, “errado”.

Mulheres precisam ter atitudes “de mulher”, “comportamento feminino” e não masculino. Desse modo, desde antes do nascimento até à velhice, homens e mulheres são enquadrados dentro de padrões. Há cores, brincadeiras, linguagens e comportamentos “certos” para cada um dos gêneros.

Pela perspectiva psicanalítica lacaniana, a distinção binária que se faz entre os sexos não é uma simples fundação da metafísica da substância. A lei “em nome do Pai” produz uma construção fictícia do “sujeito” masculino. Esta lei simbólica proíbe o incesto e estabelece as relações de parentesco. Ela faz a separação entre filho e mãe, bem como a proibição do desejo que a menina possui pela mãe e pelo pai. Da menina, ela exige que assuma a função da maternidade e dê continuidade às relações de parentesco. Nisto, há a imposição de “um deslocamento infinito do desejo heterossexualizante (BUTLER, 2016, p.60). Segundo esta concepção, o feminino não é a marca do sujeito, ele é uma falta. Simbolicamente ele se

manifestará por meio de “regras linguísticas diferenciais” (BUTLER, 2016, p.61) que consequentemente criam distinção sexual.

As leis de proibição instituem as posições de masculino e feminino e produzem os gêneros culturalmente inteligíveis. A produção dessa sexualidade inconsciente retorna no campo do imaginário. O inconsciente funciona como sede de uma sexualidade recalcada, a qual aparece via discurso “como a própria impossibilidade de sua coerência” (BUTLER, 2016, p.62). Pelo discurso, é possível notar a fragilidade da coerência exigida para a identidade sexual.