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3.5 O letramento literário em contextos de inclusão social e multiculturalismo

3.7.1 Identidades(s) surda(s) em contexto (multi)cultural

Na seção anterior, foi referido que o pertencimento identitário é um elemento importante para a resistência cultural de coletividades sociais minoritárias. Este pertencimento, conforme já apontado, não é uma condição constante e inalterável.

85 Isso significa que as identidades não são atributos inatos, constituindo-se de modo definitivo em apenas um momento da vida das pessoas.

Nesse sentido, é possível perceber que muitos traços da identidade são formados com base nos estímulos recebidos pelo momento histórico em que vivemos, nas experiências vivenciadas nos ambientes que frequentamos e nas ideologias compartilhados pelas relações sociais que estabelecemos. Considerando-se que cada um desses fatores não ocorre isoladamente na subjetividade humana, observa-se que eles contribuem, também, com o estabelecimento de novas formas de conhecimento.

Em vista disso, é possível compreender que a constituição da identidade é um processo que se autoalimenta, afinal, consoante a dinâmica das alteridades, os sujeitos são atualizados pelas coletividades das quais fazem parte, pelos ambientes que frequentam e, também, pelas pessoas que compõem esses ambientes. Tal especificidade revela que a construção do conhecimento e a atribuição de significados para os objetos culturais que nos chegam são fenômenos relacionados e cujas dinâmicas de elaboração subjetiva podem ser transformados por influência de fatores como a educação recebida.

Esse entendimento está expresso em dispositivos legais como as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), que declaram que a educação é um processo de construção de identidades (BRASIL, 1998c, p. 62) e, em vista disso, deve pautar-se pelo reconhecimento da própria identidade e das identidades dos outros. Trata-se da ética da identidade, um dos princípios elementares para a reorganização curricular do “novo Ensino Médio”.

Enquanto princípio educativo, “a ética da identidade [...] se constitui a partir da estética e da política e não por negação delas. Seu ideal é o humanismo de um tempo de transição” (op. cit., p. 78). Além disso, essa orientação evidencia uma disposição educativa atenta à relevância da dualidade entre o campo da subjetividade e da racionalidade/objetividade para os processos de aprimoramento humano.

Quando transposto para o campo da educação de surdos em perspectiva de multiculturalismo e multiletramentos, a propriedade desse princípio torna-se ainda mais evidente, afinal, via de regra, tais sujeitos vivenciam intenso trânsito entre as identidades surda e não-surda. Nesses casos, fornecer aos surdos elementos que contribuam com a formação de sua própria identidade é proporcionar uma educação mais efetiva e significativa em diversos aspectos: intelectual, sensível, político,

86 simbólico, entre outros. Mas, o que caracterizaria a identidade surda? O que significa ensinar literatura tendo em vista o diálogo com essa identidade?

A princípio, é importante destacar que não há significado fixo e estável que defina a identidade. Mesmo porque, como já referido, as identidades humanas estão em permanente processo de (re)elaboração, o que dificultaria a determinação precisa e indiscutível de sua definição. Além disso, diferentemente do que o conceito autoreferenciado de identidade enquanto condição de “aquilo que se é” pode propor, a identidade se dá, também, em função de oposições, isto é, com relação ao “que não se é”.

Por essa lógica, é possível entender que os conceitos de identidade e diferença possuem estreita vinculação entre si. Isso significa que a noção de identidade não se dá em termos absolutos, mas relativos a outras concepções. Portanto, quando se afirma algo como “ele é brasileiro”, declara-se de forma implícita que, entre diferentes tipos de nacionalidades existentes, apenas uma descreve de forma apropriada a condição do declarante da afirmação feita. Da mesma forma, se todos fossem brasileiros, tal afirmação não teria razão de ser em termos gerais (cf. SILVA, 2000).

Assim, é possível entender que a identidade, enquanto processo de reconhecimento com elementos de igualdade, seja o ponto de referência inicial, os discursos que se tem sobre ela envolvem relações e contextos complexos que incluem múltiplas outras identidades com as quais não se tem afinidade. Essa correlação é significativa para o contexto educacional porque evidencia que, mesmo para falarmos de nós mesmos, dependemos da referência representada pelo outro.

Tal constatação revela que a visão que se tem do mundo e de si próprio é uma representação construída coletivamente. Interpretações deste tipo, por vezes, estão eivadas de consensos e estereótipos que podem (e deveriam) ser atualizados e transformados pela ampliação dos horizontes de expectativas e pelo conhecimento de mundo das pessoas.

Sendo assim, enfatiza-se que, atrelado aos conceitos “do que se é”, estão os do que “se pensa que é”. Isso acontece porque a elaboração da identidade pode ser compreendida como “processo, em permanente movimento de deslocamento, como

87 travessia, como uma formação descontínua que se constrói em sucessivos processos de desterritorialização e reterritorialização” 13 (BERND, 2003, p. 19).

No caso do esforço por compreender a identidade surda, é importante ter em mente que a influência das diferenças é ainda mais produtiva, contribuindo não apenas para o entendimento do sujeito surdo em si, mas de toda a coletividade da qual ele faz parte. Essa predisposição acontece porque uma característica marcante do ser surdo é, justamente, a complexa pluralidade de seus traços identitários.

Para apresentar uma dimensão de tal complexidade, cita-se a delineação proposta por Perlin (citada por GESUELI, 2006, p. 284), que refere cinco grupos distintos de identidades surdas que buscam descrever alguns modos como o surdo se insere no mundo. Esses grupos podem se recombinar e, inclusive, corresponder a diferentes momentos da vida de uma pessoa surda.

Os cinco grupos identitários são assim propostos pela pesquisadora:

1) identidade surda: aquela que cria um espaço cultural visual