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Para referir a importância das práticas de ensino da leitura e do letramento literários voltadas, sobretudo, aos alunos surdos, convém ampliar um pouco o enfoque e considerar as relações que se estabelecem entre a dinâmica tríade estudantes-escola- leitura. Este afastamento é proposto com o intuito de demonstrar a abrangência de contextos que se articulam às práticas letradas.

Assim, inicia-se a reflexão alertando para o papel da escola no estabelecimento dessa estrutura. Tal destaque faz com que esse ambiente de formação seja amplamente referido como um dos principais agenciadores institucionais dos mais variados letramentos (KLEIMAN, 2007).

A importância estratégica da atuação da escola reside, sobretudo, na concentração de recursos que essa instituição possuiria para fornecer os elementos que permitam aos alunos fazer o melhor uso possível da linguagem como um todo. Em vista disso, as escolas reuniriam condições para articular “uma multiplicidade de habilidades de leitura e de escrita [...] a uma ampla variedade de materiais de leitura e escrita” (SOARES, 2006, p. 24).

No entanto, a disposição de condições alegadamente propícias não faz do trabalho da escola uma tarefa fácil, infalível ou ilimitada. Então, observa-se que não é possível à escola contemplar, por exemplo, a vertiginosa abrangência de materiais que podem ser apreendidos pelo conceito de letramento. Essa limitação faz com que, normalmente, o foco de atuação escolar se circunscreva ao desenvolvimento das habilidades necessárias ao estudo de textos escritos em detrimento de outros.

Tal orientação, inclusive, está presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que postulam ser

49 [...] preciso que as situações escolares de ensino de Língua Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Por usos públicos da linguagem entendem-se aqueles que implicam interlocutores desconhecidos que nem sempre compartilham sistemas de referência, em que as interações normalmente ocorrem à distância (no tempo e no espaço), e em que há o privilégio da modalidade escrita da linguagem. (BRASIL, 1997, p. 24)

Essa concepção está, em grande parte, alicerçada no princípio segundo o qual os textos escritos são objetos de leitura complexos que demandam o domínio de competências e habilidades muito específicas. Como esses conhecimentos e processos mentais não surgem espontânea e automaticamente, caberia ao ensino formal desenvolver estratégias para sua aquisição e desenvolvimento. Assim, a leitura precisaria ser ensinada e essa responsabilidade é, ainda, normalmente atribuída à escola.

Esse é um paradigma educativo consolidado e, de acordo com ele, a leitura de textos escritos, ainda que não exclusivamente, constituiria um elemento importante para estimular a formação de leitores mais proficientes devido à sua complexidade e especificidade. Sendo assim, o domínio dessa habilidade forneceria às pessoas condições para responder de modo profícuo às mais diversas demandas de leitura e escrita existentes nas sociedades letradas contemporâneas.

Em vista deste contexto, a leitura pode ser entendida como “uso e compreensão de textos escritos e como reflexão sobre os mesmos” (BRASIL, 2001, p. 29). O caráter reflexivo apontado teria em vista o aprimoramento de habilidades pessoais para a “participação plena na vida em sociedade” op. cit., loc. cit.). Para tal aprimoramento, conforme já mencionado, seria fundamental o papel das escolas.

Como visto, a preferência pelo trabalho pedagógico com textos que privilegiem a modalidade escrita da linguagem não acontece por acaso, mas como reflexo do esforço das escolas em estimular a formação de leitores mais competentes. Nesse cenário, o estudo dos mais diversos tipos de textos escritos constituiria material de interesse da escola, pois funcionaria como “tecnologia” para o aperfeiçoamento da habilidade de leitura dos estudantes. Isso porque “todos os domínios discursivos, sem exceção, exigiriam e desenvolveriam habilidades complexas e competências sociais de seus leitores” (PAULINO, 2005, p. 61).

50 No entanto, dentro do extenso rol de textos escritos, historicamente, as escolas costumam eleger como apropriados apenas alguns tipos (ou gêneros) de textos específicos que, por força da tradição e do hábito, tornam-se consagrados pedagogicamente. Neste processo, uma parte considerável de obras que fazem parte das práticas de leitura que ocorrem fora das salas de aula são, sistematicamente, desconsideradas, mesmo que sejam amplamente utilizadas na vida cotidiana dos estudantes.

Conforme proposta dos Novos Estudos do Letramento (New Literacy Studies), a adoção predominante de certo tipo de textos nas escolas (e na própria sociedade) não ocorreria aleatoriamente. Ela seria definida em função das modalidades de letramento adotadas. Sedo assim, as práticas de leitura seriam orientadas segundo duas concepções diferentes de letramento, o “modelo autônomo” (ou “logocêntrico”) e o “ideológico”.

No ambiente escolar predominaria o modelo autônomo de letramento. Por esse paradigma, entende-se o texto escrito como um produto de natureza intrínseca, isto é, como elemento de limites precisos e cujos sentidos estariam presentes no encadeamento lógico de suas partes constitutivas. Tais sentidos seriam depreensíveis pela leitura em processos facilmente replicados em ambiente escolar.

O traço de “autonomia” atribuído a este conceito estaria embasado na noção segundo a qual a leitura constitui um produto completo em si mesmo . Consequentemente, as práticas de letramento ocorreriam “por meio da linguagem descontextualizada, do discurso autônomo e do pensamento analítico” (STREET, 1995, p. 154, com tradução minha) e, principalmente, apartado de seus contextos de produção e de recepção.

Por seu turno, o modelo ideológico de letramento estaria estruturado com base no entendimento da leitura e da escrita como práticas “indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade”. Por essa lógica, reconhece-se “a variedade de práticas culturais associadas à leitura e a escrita em diferentes contextos” (ROJO, 2009, p. 99). Tal entendimento admite a existência e legitimidade da pluralidade das práticas letradas, mesmo aquelas ainda não adotadas pelas instituições convencionais de ensino.

A preponderância do modelo autônomo nos currículos escolares deve-se, sobretudo, à intensa valorização atribuída ao domínio do código escrito da língua

51 portuguesa. Essa valorização possui razões que partem da já referida complexidade do texto escrito, mas envolvem também questões de natureza político -cultural, como a tradição e o prestígio sociais que tal modalidade linguística possui.

Dito isso, fica evidente que a utilização prática de determinados registros linguísticos em detrimento de outros envolve aspectos. Entre eles relações de poder (simbólico, político e cultural) que, dentre outros desdobramentos, resultam no estabelecimento de modalidades “dominantes” e “vernaculares” (ou “locais”) dos letramentos. Neste contexto, os letramentos considerados dominantes seriam aqueles relacionados a espaços formais de interação, a exemplo das escolas, igrejas e ambientes de trabalho. Por seu turno, os letramentos vernaculares resultariam de vivências e contatos informais cotidianos, como é o caso da convivência familiar, comunitária ou entre amigos.

A adoção predominante ou exclusiva de uma modalidade de letramento é algo controverso. Uma das razões para a sua crítica diz respeito ao caráter excludente desta prática que, ao optar pelo ensino de uma modalidade de expressão em detrimento de outras, restringe a formação oferecida. Consoante essa linha de pensamento, tal restrição pode resultar em prejuízo pedagógico.

No que diz respeito à área de linguagens, por exemplo, a perda parece ser evidente. Isso porque um dos objetivos da formação escolar neste campo do saber deveria ser, justamente, o de fornecer instrução mais abrangente pela exposição dos estudantes a modos variados de interagir com a língua escrita.

Dito isso, observa-se forte incompatibilidade entre as formas como a leitura e a escrita vêm sendo ensinadas nas escolas e o complexo e dinâmico sistema de interações práticas constituído e utilizado pelos estudantes fora do ambiente escolar. Ao desconsiderar as experiências e vivências interacionais dos alunos, a escola restringe o extenso rol de habilidades utilizadas por eles em suas práticas comunicativas corriqueiras. Tal proceder “distorce a complexa natureza da leitura e da escrita”. (PAHL; ROWSELL, 2004, p. 3, com tradução minha).

O exame do cenário apresentado evidencia que, no que tange às práticas de letramentos, um grande desafio que se apresenta às escolas é o de promover a convergência dos pontos positivos dos modelos ideológico e o autônomo, extraindo o que há de melhor nas duas propostas. Desta maneira, seria possível assegurar o

52 desenvolvimento de ações pedagógicas comprometidas com os usos sociais da escrita e nas quais não sejam marginalizadas as práticas vernaculares dos estudantes.

Para tanto, a leitura crítica e aprofundada não apenas de textos considerados consagrados, mas também dos que integram as interações discursivas cotidianas faz- se necessária. Essa proposta leva em consideração que "a experiência com textos variados e de diferentes gêneros é fundamental para a constituição do ambiente de letramento." (BRASIL, 1998b, p. 151).

Neste caso, entende-se como “obrigação da escola, dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura” (SOARES, 2008, p. 33). Tal orientação constitui um dos pressupostos centrais da teoria dos multiletramentos. Essa perspectiva será citada porque, entre outras contribuições, entende a leitura enquanto prática social e essa orientação se harmoniza com a proposta de letramento literário inclusivo que será desenvolvida no presente estudo.

Mas essa não é a única contribuição da teoria dos multiletramentos. Como será demonstrado a seguir, essa concepção está inserida em um contexto mais amplo, que diz respeito não apenas aos letramentos e à escola, mas, sobretudo, aos vários papeis que esta instituição desempenha enquanto importante agência oficial de letramentos, literários ou não.