• Nenhum resultado encontrado

Grupos de pesquisa no diretório DGP (CNPq)  2013 a

5.1 Lugares de fala, espaços de diálogo

As reflexões apresentadas até aqui revelam a existência de pontos que se julga serem importantes para o tema da formação do leitor literário surdo inserido em turmas de ensino regular inclusivo. Como fio condutor desses pontos está o respeito à consideração do leitor surdo e seus modos de leitura como instâncias relevantes para o estabelecimento de uma relação mais empática e significativa com os conteúdos literários.

Dito isso, considera-se como pertinente à educação literária a consideração da subjetividade cultural como elemento possível para a aproximação entre o leitor surdo e a Literatura. Essa consideração é proposta tendo em vista que

166 na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito da leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e, sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem. (COSSON, 2012, p. 30)

No entanto, embora evidencie-se as práticas de letramento literário como proposta válida para a afirmação e reconhecimento da convivência profícua entre as alteridades e espaço para afirmação das identidades culturais surdas, questionamentos substanciais surgem no cotidiano das aulas de literatura em perspectiva inclusiva. Dentre eles, um se destaca. Trata-se da preocupação com o desenvolvimento de uma formação literária que não implique em mera substituição de práticas negligentes ou assistencialistas que caracterizaram a educação de surdos no passado por uma tolerância estéril, igualmente pouco propensa ao diálogo com a diferença e, em vista disso, pouco produtiva.

Nesse ponto, destaca-se que não se vislumbra a existência de uma fórmula infalível que afaste de maneira definitiva e exclusiva a ameaça de novos problemas no curso da formação do leitor literário surdo. Isso porque a educação literária dos surdos envolve questões complexas que não podem ser respondidas de pronto e nem de modo isento de questionamentos. No entanto, reitera-se a confiança na validade de alguns encaminhamentos já apontados neste estudo. Sobretudo no que diz respeito à existência da comunidade surda e à convivência profícua e harmoniosa entre os que a compõem.

Dito isso, chama-se a atenção para a importância da busca pelo equilíbrio entre o protagonismo surdo e a validade dos mais variados pontos de vista dos membros da comunidade surda, surdos e não-surdos. Isso posto, entende-se que podem ser considerados, em perspectiva dialógica e sem prejuízo às causas e demandas surdas, as considerações, interesses e demandas presentes e representadas nos processos de interação entre as diversas pessoas que podem compor essa coletividade.

Tal predisposição está pautada no entendimento segundo o qual, nos processos de interação humana e suas diferenças, tanto os aspectos da alteridade quanto a disposição à reciprocidade são instâncias cuja relevância deve ser considerada. De

167 outra maneira, com concepções relativistas e limitantes ou, de maneira oposta, pela estipulação de determinada visão do mundo como única válida em função de seu percurso histórico de subjugação, pouco se caminhará em direção à construção de interações comprometidas com a observação ética e o respeito recíproco de direitos humanos presentes em cada indivíduo ou coletividade e seus lugares de fala.

Nos últimos anos, a expressão “lugar de fala” tem sido frequentemente utilizada para referir os grupos e indivíduos que se entendem (ou são entendidos) como socialmente excluídos e de quem, em função dessa perspectiva, foi/é negado o espaço para plena expressão de seus valores, opiniões e relatos de experiências. Essa expressão, de natureza metafórica, está fortemente ligada ao compromisso com a representatividade e legitimidade de expressão de todas as pessoas, sobretudo daquelas que, no passado e/ou no presente, tenham sido alijadas desse tipo de liberdade.

O conceito de lugar de fala não está necessariamente articulado a nenhum saber teórico específico, no entanto, sua orientação socioantropológica é evidente e está pautada no reconhecimento das mais diversas alteridades enquanto dimensões legítimas para a interlocução e interação entre as pessoas. Tais dimensões são consideradas legítimas porque cada pessoa, amparada em suas convicções e vivências pessoais, enxerga, experiencia e se expressa sobre o mundo de modo distinto, mas tão válida quanto qualquer outra.

Subjacente à noção de lugar de fala está a crítica sobre a concessão ou a negação do direito de fala ou de livre expressão. Esse tipo de avaliação destaca a existência da multiplicidade de assimetrias existentes nas relações humanas, particularidade que resulta das mais diversas, dinâmicas e incessantes negociações simbólicas entre interesses, ideologias e visões de mundo diferentes entre si e, por vezes, antagônicas e hierarquicamente estabelecidas.

Embora não seja possível precisar de maneira cabal a origem da expressão lugar de fala, Ribeiro (2017) aponta como hipótese provável para sua gênese os discursos e reflexões promovidos pelos movimentos feministas negros desenvolvidos nos anos 80, notadamente os relativos ao “feminist standpoint”, linha crítica de pensamento de orientação decolonial. Essa perspectiva está voltada para a análise e combate da condição de subalternidade de vozes historicamente silenciadas ou diminuídas e, por

168 isso, valoriza os estudos e debates relativos às noções vinculadas ao entendimento de lugares de fala.

No campo da linguística da enunciação, a noção de lugar de fala também é referida como matéria de interesse. Tal interesse deve-se ao fato desse campo de estudo refutar o caráter meramente instrumental da linguagem, entendendo essa faculdade como um processo complexo de interação que funciona, simultaneamente, como instrumento responsável pela comunicação.

Dessa diretriz decorre o entendimento da linguagem como expressão que possuiria dimensões subjetivas/imateriais que também determinam sua função comunicativa. Por essa linha, é possível perceber a relevância do fator social para a estruturação e prática da interação linguística, afinal, “é dentro da, e pela língua que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente” (BENVENISTE, 1995, p. 27).

De acordo com essa orientação, considera-se que a linguagem é constituída por um enunciador (individual ou coletivo) que; ainda que não perceba esse fenômeno conscientemente; relaciona-se a outrem. Isso ocorre porque a enunciação é um processo que se insere (explícita ou implicitamente) em outros enunciados em contexto de intensa interlocução. Assim, “qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc.)” (BAKHTIN, 1999, p. 126).

Imerso em tal interação, tanto aquele que deu origem à fala ou assumiu lugar de escuta de outras pessoas com suas próprias expressões, quanto seus interlocutores tornam-se instâncias inter-relacionadas que representam pontos de referência interna às interações enunciativas, estabelecendo seu próprio espaço (ou lugar) de fala/enunciação. Esses lugares podem ser percebidos em diferentes níveis: simbólico, psíquico, pragmático, fisiológico, sintático, semântico ou semiótico. É pela interação entre todas as instâncias que a língua e as interações enunciativas são estabelecidas.

Embora os lugares de fala possuam uma dimensão de significação subjetiva e individual evidente, assumindo a função de expressão do pensamento, é na esfera social que suas funcionalidades tornam-se mais intensas. Por esse prisma, a enunciação pode ser compreendida como “um ato social com todas as suas implicações: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades, etc (...) pois todo falante ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da

169 significação." (ORLANDI, 2001, p.17). Por extensão, “as relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados” (op. cit., p. 22).

Um efeito importante que precisa ser considerado quando são analisadas as interpretações de “lugar de fala” diz respeito ao estabelecimento de perspectivas que podem determinar a estagnação ou o aperfeiçoamento desse conceito. Um exemplo claro de tais interpretações é a defesa de posicionamentos extremados que atribuem a determinados lugares de fala discricionariedade absoluta, eclipsando a possibilidade interlocução. Nesses casos, sob a intenção de reforçar a validade das perspectivas de quem passou ou ainda passa por contextos de exclusão, são estabelecidos “lugares de fala” mais ou menos autorizados.

Essa linha de pensamento pode ser considerada restritiva, sobretudo se for levado em conta que, por mais que uma voz seja representativa e mereça ser considerada, os limites de sua representatividade não são absolutos. Estes limites são relativizados pela representatividade da fala do outro, que igualmente possui legitimidade para expressar-se.

Por esse prisma, não se vislumbra que um lugar de fala sobreponha-se a outro. Do contrário, será reproduzida uma condição de incomunicabilidade e intransigência, transformando o conceito de lugar de fala, isto é, de interação discursiva, em mera alternância de vozes não comunicantes.

Além disso, a desconsideração sumária do lugar de fala daquele que não foi, individual ou coletivamente, sujeito de processos de exclusão estabelece novo processo de exclusão. Isso porque não leva em conta que as pessoas também são sensíveis e capazes de se posicionar criticamente a respeito de experiências e situações, ainda que não sofridas diretamente por elas. Nesse caso, desconsiderar outras perspectivas é potencialmente tão danoso quanto negar a expressão daquele que sofreu diretamente uma experiência de exclusão, preconceito ou de desvalorização.

Tal ponto de vista é pertinente para as reflexões a respeito da formação do leitor literário em ambiente escolar porque

o segredo para a formação de verdadeiros leitores (efetivos, ávidos, habituais, etc.) reside nas partilhas e nos intercâmbios (de entusiasmos, dificuldades, conexões, interpretações, etc.) que nascem a partir das diferentes leituras feitas pelos jovens no espaço escolar e para além dele. Nessa mesma linha de raciocínio, não basta

170 que existam acervos de obras escritas nas escolas nem mesmo bons espaços, se a eles não for somada uma pedagogia e uma didática da leitura que abram espaços de conversa e de partilha a respeito das vivências de leitura do alunado. Isto faz ver ainda que a leitura não é um ato solitário envolvendo tão somente um leitor e um texto, mas sim uma prática cultural de natureza coletiva, que se enreda com outras práticas e que envolve múltiplos participantes, situações, motivações, desafios, encantos e desencantos, sempre “compartilhados” no grupo. (SILVA, 2012, p. 114 e 115)

Para o despertar desse nível de envolvimento, conforme referido por Souza e AMARILHA (2006), um caminho possível passa pela consideração menos restrita das práticas de letramento literário nas escolas. Essa orientação engloba, como continuamente sugerido neste estudo, a prática de ações nas quais seja desenvolvida a perspectiva cultural orientada para o aprofundamento da cidadania crítica, do desenvolvimento da criatividade e pela consideração das diversas contribuições que podem advir das vivências sociais dos alunos.

Neste sentido, tendo em vista o caso específico da formação do leitor literário surdo, destaca-se a perspectiva da leitura enquanto prática que estimula o envolvimento coletivo é igualmente válida. Sobretudo se orientada para a consideração dos mais variados lugares de fala envolvidos na múltipla conformação de sujeitos que compõem a comunidade surda. Assim, não se entende como válidas representações que atribuam caráter inferior ao lugar de fala de qualquer interlocutor, principalmente quando este encontra-se revestido de intencionalidade afim, como ocorre com os membros, surdos ou não, da referida comunidade.

Por esse ângulo, é importante não insistir na postura de fingir (ou silenciar) sobre concepções opositivas que existem, existiram e sempre existirão. Isso porque, no curso das incessantes interações que se estabelecem entre os seres humanos, em algum momento há de se encarar o choque de interesses ou opiniões. Nesse cenário, entende- se que a defesa extremada das diferenças não deve ser maior que a disposição ao diálogo e ao consenso. Assim, insiste-se no esforço pela busca de equilíbrio entre vozes dissonantes que não representam antagonismos inconciliáveis, apenas perspectivas diferentes.

Assim, argumenta-se que, embora existam diferenças que, historicamente, têm instaurado processos de segregação e exclusão, estas não podem ser tomadas como motivação para o revide de injustiças sofridas, o que pode criar novas exclusões. Além

171 disso, é pertinente destacar que, mesmo entre diferentes culturas, visões de mundo, ideologias, individualidades, conformações (etc.), há um ponto de contato importante: todos somos diferentes em maior ou menor grau. A singularidade presente em cada um de nós nos irmana e convida ao diálogo, ainda que haja forte tendência à propagação de sentimentos de cisão e práticas de silenciamento de lugares de fala discordantes ou minoritários.

Essa inclinação é justificada pela crítica à proposta de convivência com a diferença como uma tentativa de reduzir uma realidade complexa a uma situação de atenuação forçada e artificial ou o apagamento do percurso hist órico dos indivíduos — situações referidas como ciladas da diferença por PIERUCCI (1990). No entanto, paradoxalmente, se a crítica ao diálogo estabelece limitações para a interlocução, a própria crítica pode ser entendida como contraproducente. Sobretudo se ela convergir para a estagnação que normalmente advém dos radicalismos que reprimem a criação de espaços para o estabelecimento de novas propostas e reflexões.

Tais riscos podem ser diminuídos se for buscado o que GADAMER (1997) propôs como “fusão de horizontes”. Grosso modo, esse conceito defende a necessidade de empatia para a superação de verdades ou formulações inicialmente entendidos como inconciliáveis e que criam pontos de estagnação do conhecimento ou compreensão humana.

A fusão de horizontes implica na consideração da perspectiva do outro como elemento fundamental para o estabelecimento de um novo entendimento necessário para a criação de diferentes níveis de entendimento e significação. Nesses termos, fusão de horizontes pode ser entendida como “plenitude da conversa, na qual ganha expressão uma coisa que não é só de interesse meu ou do meu autor, mas de interesse geral” (GADAMER, 1997, p. 404).

Com o amparo da proposta referida, destaca-se que a predisposição ao diálogo entre culturas, vivências, valores, ideologias e interesses (entre outras formas de “diferenças”) é uma das dimensões possíveis para a prática da convivência dialógica sem desconsiderar ou preterir lugares de fala. Tal predisposição não deve ser considerada em perspectiva abstrata e distanciada, mas como percurso possível e necessário para o enfrentamento de questões práticas cotidianas, como é o caso do ensino de Literatura em contexto de inclusão de alunos surdos. Isso porque “incluir”, conforme entendido nesse estudo, não se restringe à presença física de alunos

172 especiais em turmas regulares ou à adaptação curricular. A inclusão está orientada para a transformação da realidade e das práticas educativas haja vista seu objetivo principal, o desenvolvimento humano (FREITAS, 2006).