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Ideologia por herança cultural

A maioria das pessoas vai formando seu conjunto de ideias sem muita reflexão. Esse conjunto de ideias recebe o nome de ideologia. Todos nós temos nossa ideologia, mas de maneira geral não temos consciência disso. Julgamos que nossas ideias refletem sempre a realidade. Não nos damos conta de que muitas dessas ideias foram colocadas em nossa cabeça pela educação familiar, pela escola, televisão, jornais, moda, cinema etc. (Pi- letti, 1994, p.11)

Com base na definição acima, o emprego do termo “ideologia” será subdividido em dois níveis de enculturação, o familiar e o nacional. Neste se incluem “escola, televisão, jornais, moda, cinema etc.”. A herança cultural familiar é o traço mais característico do grupo Miwa, pois sua professora, casada com o líder do Shinzan-kai – grêmio de shakuhachi da Tozan-ryū –, é filha dos precursores de koto e shakuhachi e mãe da terceira geração, que mostra uma tendência na continuidade dos instrumentos da fundadora Miwa Miyoshi. A única variação é que a professora atual prioriza o repertório sōkyoku em detrimento do repertório nagauta,17 pois os nisei e sansei do grupo não parecem

demonstrar interesse pelo estilo predominante da primeira geração. Como no caso da etnicidade, a herança cultural familiar não é conduta exclusiva do grupo Miwa. Embora não sucedam à mes- ma escola de suas mães, as professoras dos grupos Miyagi e Seiha tocam koto por hereditariedade musical. Em depoimento gravado em janeiro de 2003, a professora do grupo Seiha responde sobre o significado musical, sintetizando os comportamentos ideologia por herança cultural.

Eu sou simples. Eu gosto de música e não sei explicar o porquê. Sempre gostei de cantar, tocar e esqueço de tudo quando pratico. Desde pequena eu participava de coral ou conjunto e era muito requisitada [...]. Minha mãe, que tocava shamisen e era professora de dança, sempre nos incentivou para a música. Uma vez minha filha foi solicitada a explicar as partes do

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quimono na escola. Ela estranhou que, entre tantas colegas nikkei, só ela sabia. O fato de ela reconhecer a importância em conhecer sua cultura de origem, isso já foi muito gratificante.18

Com exceção dos grupos de Okinawa – que manifestam, em maior escala, atitudes coletivistas, importando-se mais com a continuidade do grupo social do que com a linhagem familiar –, observou-se o eixo comum da herança familiar. Seguindo o exemplo das pioneiras Miwa Miyoshi e Kikue Hayashida, além da professora Saito, do Miwa-kai, as professoras Tomoi Inoki, da Yamada-ryū, Yūko Ogura e Reiko Nagase, do Miyagi-kai, e Tamie Kitahara, do grupo Seiha, ensinaram koto para as filhas, apontando para a continuidade de suas respectivas escolas. Cabe incluir uma observação de Renato Ortiz (2000, p.62-3) sobre a percepção nipônica de família:

Uchi (dentro) e soto (fora) são conceitos que as crianças aprendem

desde a infância. A casa, a família são uchi, o que se encontra fora de seu âmbito tem uma conotação negativa, perigosa. [...] o universo da família é associado à noção de “limpeza”. Ele seria por natureza “seguro, contrapondo-se à sujeira” e às diversidades existentes “lá longe”. O que se encontra “dentro” está protegido, fora do seu alcance dos elementos estranhos existentes no dia a dia dos “outros”.

Essa dicotomia não é um atributo endógeno da sociedade japonesa. Indagada sobre a motivação principal para se estudar koto, uma das mães do Miwa-kai respondeu, abrangendo qualquer tipo de atividade ou aprendizado da cultura, sobretudo, ancestral:

Ocupar o tempo com o conhecimento nunca é demais. Aprender o

koto ajuda a criança a fixar o idioma entrando em contato com suas raízes

18 Uma das apresentações do grupo Seiha abriu com um poema de Akira Morioka como se fosse um lema da preservação, mesmo “ao longe”, ou seja, discretamente, mas para sempre. “O céu azul límpido e o vento que sopra suave/ Ao longe o som de uma roca a fiar/ As meninas depositam seus sonhos/ Neste fio firme e delicado/ O fio que se transformará no tecido/ O tecido num lindo quimono/ Este sonho continuará para sempre/ Ontem, hoje e amanhã.”

DÔ – CAMINHO DA ARTE 39

de maneira prazerosa. É muito bom também porque, como a juventude de hoje corre muitos riscos, a criança fica ocupada prevenindo as possibi- lidades de más companhias, vícios, enfim, de fazer tudo o que não presta.

Roberto da Matta (2001, p.27), após enfatizar que a casa, na cos- mologia brasileira, é onde deve reinar a ética, o correto, “a harmonia sobre a confusão, a competição e a desordem”, prossegue:

Tudo que está no espaço da nossa casa é bom, é belo e é, sobretudo, decente. [...] Os tabus são como nós e nos ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social, como membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde ninguém conhece ninguém – esse mundo tenebroso da selva de pedra; e como membros diferenciados que residem numa dada parte da cidade e que podem transformar esse local onde moram em algo único, especial, singular e “legal”.

Passando da ideologia inculcada no núcleo familiar para o âmbito da nação, há um dado relevante. A maioria das entrevistadas issei não respondeu à pergunta sobre o significado do fazer musical. As palavras de Satoshi Tanaka (apud Koellreutter, 1983, p.69)19 talvez

expliquem o fato:

[...] não possuímos o dom de formular opiniões, o que procuro explicar pelo fato de que todos somos homens que “pensamos da mesma maneira”. [...] Frequentemente o medo impede o japonês de expressar livremente o que pensa, pois receia ser mal interpretado.

O receio mencionado por Tanaka seria ainda mais acentuado nas mulheres. E o pensamento homogêneo da nação talvez advenha da própria escrita japonesa. O termo ongaku/música é composto pelos ideogramas “som” e “prazer”. Apenas dois issei responderam o óbvio, ou seja, o sentido literal “som prazeroso”. Até aqui o conceito não parece conflitante com a definição da palavra “música” encontrada em

19 Publicação resultante da troca de correspondência sobre estética, entre o professor Koellreutter e o sr. Tanaka.

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dicionários brasileiros: “arte ou ciência de combinar o som de forma agradável ao ouvido”.

Para se ter uma ideia melhor do que representa o termo “praze- roso”, havia duas perguntas sobre o gosto musical nos questionários aplicados. Para o issei, o gosto musical predominante é o da música clássica ocidental e, em segundo lugar, vem a música popular urbana japonesa do gênero ryukōka. Quanto à questão “insatisfações mu- sicais”, novamente as respostas em branco predominaram, ou pelo motivo exposto por Tanaka, de não querer fazer juízos de valor, ou por desconhecerem a música brasileira.20