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Princípios artístico-religiosos do budismo maaiana

No início, o budismo de Nara era muito influente e os monges eram condecorados pelos governantes a altos postos, realizando gran- des cerimônias para a paz e a prosperidade da nação. As doutrinas

DÔ – CAMINHO DA ARTE 75 percorriam os monastérios e atingiam as pessoas leigas. Porém, com o passar dos séculos, essas escolas perderam muito de sua influência. Algumas foram amalgamadas às escolas Shingon ou Tendai, explicadas adiante, e outras desapareceram. Apesar disso, o estágio inicial do bu- dismo japonês teve um impacto indelével sobre seus valores religiosos básicos, intimamente ligados a suas maiores ramificações: o budismo esotérico, a Terra Pura budista e o zen. Cabe ao esforço científico e intuitivo compreender a manifestação plástica de conceitos altamente abstratos que caracterizam grande parte dessa arte.

O budismo ensinava que o mundo era profano e que o caminho para a iluminação (“o caminho óctuplo”) não só nos libertaria do ciclo das reencarnações (samsara) como também nos conduziria para uma região espiritual de sublime beleza (Terra Pura). Até então, no Japão antes do budismo, só havia os kami (deuses), cerca de 8 milhões – número grande, mas não maior do que os “deuses invasores” do continente, entre eles o próprio Buda. A crença nativa teve que se organizar num salto, também se autodenominando “caminho” – no seu caso, “dos deuses”, o xintoísmo –, mas ainda sem estátuas que representassem qualquer uma dessas divindades. Como representar o deus do vento ou de todas as outras forças da natureza? O budismo trazia um potencial artístico incontrolável e associado à fé, ou seja, a arte também é um caminho para a iluminação, prenunciando a beleza de um mundo após a morte, o mundo de Buda. Os salões de adoração a Buda do Leste Asiático e suas imagens foram dotados de rica ornamentação, refletindo um senso de prazer que é expresso nos textos básicos de maaiana tais como os sutras Myōhōrenge-kyō, Daihannya-haramitta-kyō (Sutra da Grande Perfeição e Sabedoria) e Amida-kyō (Sutra Amida Nyorai). Esse tom predominante das imagens votivas budistas é denotado pelo termo japonês shōgon, uma manifestação enfeitada ou majestosa, com uma iconografia visual que interessou muito aos japoneses em repre- sentações específicas.

A arte budista havia transmitido as tradições da Índia, mas, em meio a essa arte, um estilo novo, mais de acordo com o pensamento do povo japonês, foi produzido em várias nuances. Ou melhor, de acordo com a interpretação peculiar dos japoneses em relação ao budismo,

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acabaram por surgir novas atitudes de crença, e de acordo com elas é que as imagens foram produzidas. Em uma dessas representações, tenta-se alertar para os mundos inferiores de existência, paralelos ao dos seres humanos, nos quais se poderia reencarnar de acordo com as ações perpetradas durante uma existência neste mundo. Outra mostra os mundos superiores das divindades ainda presas ao ciclo das reencarnações. Uma terceira, enfim, seria a dos mundos ainda mais superiores, de Budas e discípulos. Os Budas vêm de onde o sol se põe, ou para onde vão os mortos. O budismo explica em detalhes esses mundos após a morte, incontáveis paraísos e infernos. Dentre as inovações mais notáveis estão o sincretismo xintobudista e as imagens raigō. O sincretismo não só fez os deuses nativos do Japão encarnarem em corpos de Budas como também abriu uma possibilidade de divi- nização a qualquer ser humano que se dedicasse à iluminação ou que fosse considerado iluminado pela sua posição social e por defender a crença. Em raigō, ou seja, as imagens do Buda Amida Nyorai em seu gesto de “boas-vindas à Terra Pura”, Budas já completamente iluminados, além dos inúmeros deuses protetores, viriam na hora da morte para salvar os crentes e conduzi-los a uma seara ditosa, a “Terra Pura”. Essas representações foram exigidas pelos crentes japoneses que ouviam as pregações dos sutras e necessitavam de uma visualização em qualquer forma de arte, transformando as formas tradicionais da Índia.

Por pregar “um paraíso realizável na Terra” pelos rituais e pela arte, o budismo esotérico às vezes é interpretado como uma conve- niência aristocrática em oposição ao budismo hinayana (exotérico), pois este só garantia o paraíso após a morte (nirvana) e, mesmo assim, àqueles que se dedicassem a uma austera vida ascética. A diferença entre o budismo exotérico e esotérico é explicado com mais deta- lhes logo adiante. O budismo esotérico é tido como o último ramo do budismo maaiana, entre os séculos IV e V. Tem a sua origem na cultura nativa da Índia e prega a realização pela oração através de leis encantatórias dos rituais do hinduísmo. É a doutrina pregada pelo hōsshin, “a natureza absoluta de Dainichi Nyorai”, e é considerada secreta porque representa a iluminação personificada no hōsshin, não podendo ser revelada àqueles que não tenham sido iniciados por um

DÔ – CAMINHO DA ARTE 77 kanjō8 apropriado. No budismo esotérico, a essência do budismo não

pode ser compreendida pelo ser humano comum, e, para atingir a condição de Buda, o devoto deve meditar diante de certas imagens, estátuas e mandalas e realizar certos ritos, baseando-se em regras que dão formas características e atributos para várias artes. Ele ensina os preceitos de Buda com base nos sutras, em oposição ao budismo exotérico, que deseja alcançar o nirvana; e, de acordo com a doutrina secreta (himitsu-no kyōgi) e as Leis da Magia, o esoterismo acredita no auxílio que vem do mundo dos Budas.9

Contudo, a representação visual do paraíso esotérico é complexa. Tem uma forma altamente abstrata do cosmos e todas as coisas ema- nam do Grande Sol, Buda Dainichi Nyorai. Além disso, o relaciona- mento entre Buda e suas manifestações, a ordem cósmica, não poderia ser conhecido verbalmente, porque o budismo esotérico foi fundado sobre o princípio dos dois aspectos de Buda: o princípio cósmico imutável e a manifestação física de Buda no mundo natural, que são o mesmo aspecto, mas em mundos diferentes. O único modo de visuali- zar simbolicamente esses mundos se dá através da ryōkai-mandara (“a mandala dos dois mundos”, explicada adiante). Acredita-se que ela foi copiada na China e levada ao Japão em 859 pelo monge Enchin (814- 891), da escola Tendai. Trata-se da mais antiga mandala colorida ainda existente no Japão. Essa escola e a Shingon foram as mais influentes na difusão do budismo maaiana.

8 Kanjō ou denpōkanjō. Na escola Shingon, é o ritual para que um asceta suba para a posição de bonzo, quando se derrama em sua cabeça uma água perfumada, kōzui. 9 Basicamente, os ensinamentos esotéricos são ministrados a um círculo restrito e

fechado de ouvintes, enquanto os ensinamentos exotéricos, palavra praticamente abolida dos dicionários comuns, são transmitidos ao público sem restrições e de forma acessível, dado o interesse generalizado. Em outras palavras, não há misticismo no exoterismo, enquanto o esoterismo está embebido de significados ocultos, assim como sua iconografia. Sua apropriação pela aristocracia japonesa não significa uma verdadeira compreensão da sua metafísica, mas era a aristocracia que financiava sua arte como uma forma de devoção.

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