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A reconstrução “pura” do elo perdido

Muitos imigrantes do pós-guerra relatam que, antes de virem para o Brasil, nunca tinham se interessado em aprender instrumentos tradi- cionais japoneses. Na pesquisa de campo viu-se que uma boa parte das executantes de koto outrora aprende(u) piano. O professor da Shinzan- -kai tocava clarinete e um casal (ele do Shinzan-kai, e ela do Miyagi-

31 Morador de Santos, cidade histórica dos imigrantes japoneses, ele integra um dos assentos cativos da diretoria da AOKB e frequenta as aulas de minyō, para praticar o canto ancestral acompanhado do seu sanshin, percorrendo o trajeto Santos-São Paulo sempre que um desses compromissos o chama.

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-kai) era integrante de orquestra, antes de emigrarem. Emprestando as lentes de Hashimoto (1995, p.31), analiso que, trocando o violino e o clarinete pelo shakuhachi, o piano pelo koto, eles conseguiram, pois, administrar o conflito da perda da terra mãe. E, para garantir a nitidez do objeto amado longínquo, eles passam a defender energicamente a própria cultura, condenando atitudes de “deterioração” ou “contami- nação dos valores” na terra nativa. Conforme depoimento de um dos membros mais ativos do Shinzan-kai:

Alguns instrumentistas jovens japoneses percorrem o mundo afora e arrebatam prêmios em concursos internacionais tocando Beethoven, Bach etc. Mas se alguém pedir para ele tocar alguma peça japonesa, ele sequer sabe de alguma. O jovem alemão, além de Bach, sabe alguma melodia tradicional, mas o japonês nada... E aí, como é que ficamos?33

Sua expressão seria uma indignação pela falta da “virtude da ver- gonha” (ver Benedict, 1997) nesses jovens ocidentalizados. Tanaka (apud Koellreutter, 1983, p.70) expõe também um temor similar sobre a ocidentalização:

Receio que muitos japoneses que desde a Restauração Meiji se ocupam com demasiada assiduidade da cultura ocidental, não percebam o quão distante estão de sua própria cultura. [...] não estão apenas interessados em integrar outras culturas, mas tentam também, além disso, e sempre de novo, renunciar à sua própria cultura.

Uma aluna da Escola Miyagi também se revolta com a recente diretriz da escola japonesa, fornecendo uma associação de causa e efeito: “Como é que se retira o hino nacional das escolas japonesas?! É por isso que a juventude começou a pintar os cabelos de amarelo e cantar aquelas músicas barulhentas...”. O hino nacional do Japão representaria o sentimento de lealdade ao imperador e às dinastias, orgulho nacional. Considero que romper com o símbolo ameaçaria

DÔ – CAMINHO DA ARTE 47 todos os preceitos construídos na história, a identidade, o porto seguro do povo japonês. No entanto, a nova diretriz do ensino japonês impôs a música tradicional como disciplina obrigatória: os meninos aprendem shakuhachi e as meninas, koto. Enquanto observadora participante, consta que o hino nacional Kimigayo faz parte do repertório sōkyoku.

Os imigrantes parecem ignorar o preenchimento da lacuna, pre- ferindo lembrar que aqui estão seguros da contaminação ocidental na terra natal. No Japão, os meios de comunicação de massa divulgam, por exemplo, um trio de koto tocando a Ária da quarta corda, de J. S. Bach, ou um duo de shakuhachi e koto interpretando um tango virtuosístico de Astor Piazzolla. Os executantes substituem o quimono por vestes de grife, preocupados com a fachada altamente moderna, ou com a tal da aparência ocidental forjada ou artificial, inferida no depoimento acima, através do formato e cor dos cabelos, cirurgia plástica nos olhos, nariz, seios etc. No Brasil, a TV Cultura, de São Paulo, apresentou Rokudan [Peça em seis ciclos], Haru no umi [Mar da primavera]34 e Shika no

tone [O cio do veado],35 executadas por professores e assistentes da

ABMCJ, com as mulheres trajando quimono e todos em sua aparência natural. Quando há cabelos claros, não são tingidos, pois pertencem a descendentes de europeus.

O professor da Academia Tozan sustenta uma inédita relação entre afinação e comportamento humano, na seguinte assertiva:

Em 1680, na fusão da música chinesa no gagaku havia doze modos distintos. Cada escala tinha um temperamento diferente de acordo com o shō. O koto então era afinado na quinta natural da escala dos físicos,

onde o coração fica mais puro. [...] Depois do temperamento do piano, a música ficou comercial, o homem perdeu a sua profundidade, ficou mais ambicioso e propenso a guerrear.36

34 Peça para shakuhachi e koto, de Michio Miyagi, composta em 1929. Através dos programas recolhidos e da pesquisa de campo, foi observado que Haru no umi é a terceira peça mais tocada das escolas de koto no Brasil.

35 Peça para shakuhachi, uma das preferidas da Kinko-ryū, liderada pelo iemoto grão-mestre Iwami Bai-kyoku V.

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Dessa forma, para os imigrantes o fazer musical, além de ser um eficaz meio de gerenciar o luto da terra amada, pode recuperar, por meio da sua reconstrução, a sua mais pura fragrância na terra de acolhimento, já que se mostra deteriorada na terra natal. E os descendentes, internos e externos à comunidade, na busca de um refinamento pessoal, de sua- vização de suas vidas ou de aperfeiçoamento espiritual, reconstroem um mundo idealizado, livre de contaminações. Se retomarmos os de- poimentos mencionados, recolhidos nas escolas de koto e shakuhachi, sejam de issei, nisei, sansei sejam de não nikkei, poderíamos afirmar que, num consenso geral, portanto, a música representa a reconstrução da terra ou de uma terra perdida no espaço e no tempo.

Retomando a assertiva do professor Koellreutter, não há como separar ética de estética, pois o fazer artístico, a acepção do “belo”, compreende antes uma postura ética. Esse amálgama entre ética e estética pode ser mais bem esclarecido pelo posicionamento de Shūji Izawa, que empreendeu a reforma do ensino musical das escolas pri- márias e secundárias do Japão, em 1879. Segundo Izawa (Tamba, 2001, p.155), além de favorecer o desenvolvimento físico, o papel da música é promover a formação sociomoral da criança e do jovem. Desse modo, o belo seria o ser eticamente correto antes do fazer estético.

Acredito que, em contexto transterritorial, a prática da música tra- dicional japonesa pode conservar essa mentalidade de Izawa, conforme externou anteriormente a pedagoga em relação ao caminho das artes para a “retidão dos sentidos” e a “formação do caráter”. No Brasil, a maioria das alunas parece não se importar com a obtenção de diplomas por estágio, enquanto no Japão há um sistema de taxas em progressão geométrica para se alcançar a habilitação máxima. Herança talvez do que William Malm (1978, p.71) chamou de “outorga” mercantilista para “jovens ansiosas” em melhorar o “dote matrimonial”. Atual- mente, a tradição ainda representa a ascensão de status social, mas sob a égide do consumo, enquanto no Brasil o fazer estético pode estar mais relacionado à preservação de um mundo não contaminado, con- servando os ideais éticos de forma mais acentuada. Ou talvez, menos artificial do que no Japão, onde a tradição aparenta ter se tornado quase um produto mercadológico, um item a mais da sociedade de consumo.

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