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O envelhecimento na sociedade ocidental vem acompanhado pelo afastamento do mercado de trabalho e por sua fragilidade física mais enfatizada que a real. Na modernidade capitalista com tecnologia avançada e modelos, inclusive de comportamentos, que se tornam rapidamente ultrapassados, os idosos, com seus gestos mais lentos, encontram-se numa situação meio indefinida (Britto da Motta, 1998).

Alguns estudos, como os de Britto da Motta, vêm demonstrando que, a despeito da imagem de fragilidade e impotência que é atribuída aos idosos, com muita freqüência se encontra o idoso como autônomo, provedor e protetor das gerações mais novas.

Os idosos, como argumenta a autora, tem um papel dentro da família ligado à reprodução. Mesmo que contraditório à primeira vista, considerando o conceito de reprodução latu senso, além da simples multiplicação de nascimentos, os idosos têm um relevante papel para sobrevivência física e social da família. A idéia de dependência dos idosos não corresponde à realidade vivida por muitos deles que contribuem com a sua renda certa e a inventividade doméstica em muitos lares (Britto da Motta 1998). Os profissionais identificam algumas situações desse tipo nas áreas.

Fica a vó criando e a mãe vai trabalhar. A vó fica com o menino em casa a mãe sai pra trabalhar. (...) Porque, porque na verdade é aquela coisa. Tem os avós, os patriarcas, digamos assim, daquela casa, então tem a filha que engravidou cedo. (...)Sem nada, sem casar, sem marido sem emprego, sem dinheiro. E já fica lá. (...) Então já ta lá e lá continua. Então pronto. (Grupo de discussão médicos).

Ou às vezes também pode ser a avó, a pensão da avó sustentando a quantidade de netos, que os netos já vem com os filhos, já vêm com os maridos. (Entrevista auxiliar de enfermagem).

E tem uma casa mesmo, essa semana, que a doutora entrou, que a doutora ficou assim horrorizada. Porque ela disse: - como é que vive

vocês? – Ah! Vivemos como Deus quer. – Qual o salário daí? Alguma coisa, quem é que compra as comidas? Ela disse: - Não... é o salário da minha vó, que quando ela recebe por mês é o que.... 200, 260 parece, né, o salário. Aí tem de comprar o leite para o neto, a comida dela que é uma paciente diabética, hipertensa, não pode comer de tudo. (Ou) Ela dá prioridade a dieta dela, deixa o resto com fome, ou ela come tudo e esquece da doença dela. Porque ela não pode seguir uma dieta, porque se ela for comprar só a comida da dieta, os outros vão ficar com fome. E a avó é obrigada a alimentar esse menino, entendeu?/ Aí ...., pra situação daquela avó é muito constrangedor isso aí. (Grupo de discussão auxiliares de enfermagem).

Apesar dos profissionais perceberem que o idoso muitas vezes é provedor, com papel fundamental na sobrevivência da família, isso não é percebido como um fator que diminua a fragilização do mesmo dentro da família. Ao invés de se perceber o idoso como autônomo, prover a família é encarado como um sinal de exploração, seja ela intencional ou não.

“A avó é obrigada a alimentar o menino”, prover a família é quase um sinal de que ‘trabalhou a vida inteira e não pode nem ter uma velhice tranqüila, porque os filhos continuam lá’. “A filha engravidou cedo sem marido, ou traz o marido junto”. Comprar comida para a família é tirar o que deveria ser do idoso.

O fenômeno do envelhecimento vem acompanhado de um estereótipo negativo. A noção do idoso dependente, necessitando de proteção é a destacada. A relação dos idosos e suas famílias muitas vezes é encarada sem uma leitura mais aprofundada. Scott exemplifica algumas situações nas quais podem-se questionar as interpretações comumente dadas às relações dos idosos com seus familiares.

Apresentar indícios de sub-nutrição pode se relacionar mais às condições gerais da família do que de qualquer distribuição interna desigual de alimentos. Repartir os cômodos da casa deixando espaços mais diminutos para os idosos pode ser um reconhecimento da valorização da sucessão dos seus próprios filhos no patrimônio familiar (Scott, 2004 p. 14).

Nos serviços de saúde, e no nosso caso no PSF, o que predomina é a imagem dos idosos vitimados dentro da família.

É, porque o idoso na realidade nossa aqui ele é... fica no canto da casa. O pior quarto é o dele, se a casa não for dele o pior, a pior localização da casa fica o quarto dele, ele não tem o que fazer o dia todo, né. Então ir ao posto, ir ao médico, falar com a enfermeira, né então é uma atividade sim. É ir ao shopping.

(Grupo de discussão médicos)

Assim, querer ir ao posto seria, de certa forma, uma fuga para a realidade dentro de casa. Além de segregar os espaços, o idoso no pior lugar, a família não teria também cuidado com os idosos.

Idosos absolutamente abandonados. (...) É, caótico, porque...Não tem o que fazer. Idoso que mora sozinho não toma remédio não faz exame. É. O descompromisso com a velhice é algo que dói muito. / Tem um japonês que ele... Ele não sabe ler, ele mora sozinho tem oitenta e lá vai fumaça. Ele não adianta. Ele é hipertenso a pressão dele chega lá duzentos e lá vai quando por não sei quanto. (...) E não tem quem cuide / Não tem quem cuide, mora só, sozinho. Ai Deus. (Grupo de discussão médicos)

Mesmo quando se reconhece que esse abandono não é total, pois tem um parente morando próximo, vigora a noção de que a família não cuida. Quanto a essa questão, aparecem relatos das pessoas que vivem no interior como sendo mais atenciosas com os idosos.

E a questão do idoso abandonado. / Muitas vezes eles são abandonados, eles são abandonados, assim, entre aspas. Porque, se a gente for avaliar um direitinho, é, pelo menos lá na minha área, os idosos que eu tenho morando sós eles têm alguma família que mora bem próxima algum familiar bem próximo. A filha, e... / Mais não cuida. (Grupo de discussão médicos)

No ano que eu passei, morei na verdade, no interior, eu notava exatamente o contrário. Havia um compromisso maior. Aquele pessoal de sítio, que morava distante eles cuidam dos velhos deles, sabe, cuidam realmente. (...) Eles não tinham assim muitas vezes faltava uma orientação, pra eles, sabe. Falta por exemplo, um, uma história que eu acho interessante. Fui fazer visita na casa de uma senhora num sítio distante ela tinha hipertensão teve um AVC e aí ficou hemiplégica... E aí a mastigação dela também foi comprometida, né. Então a filha descompensava, ficava estressada com a mãe. (...) Aí então ela disse ‘ó doutor ela não come nada. Tudo que a gente bota na boca ela bota pra fora’. Eu disse me mostre a comida. Feijão, caroção de feijão.

(...) Aí então eu disse não. Com feijão, não. A senhora vai machucar o cuscuz e vai dar pra ela. Ta entendendo? O cuscuz vai ter de colocar, um leitinho de gado como eles chamam lá, o leitinho de gado, vai molhar mais. Quer dizer, a orientação faltava. (...) Então quer dizer, é diferente daqui. Lá faltava assim a orientação, o norte. Mas o compromisso existia, o carinho existia. Aqui não muitas vezes eles têm orientação mas eles realmente não querem, eles não têm compromisso. Ta entendendo é diferente. Aí isso me chamou muito a atenção quando eu vim pra cá. (Entrevista profissional de medicina).

A própria idéia de que os filhos não cuidam dos pais está relacionada ao tipo de comportamento idealizado dos membros da família. Se os pais e, principalmente, as mães têm um amor natural pelos filhos, e dedicam boa parte da sua vida e da sua juventude aos mesmos, o que se espera é que ao envelhecer os filhos retribuam o esforço cuidando dos idosos. (Badinter, 1980).

Mas o “descuido” dos filhos com os pais podem ter outras razões que não a “maldade ou ingratidão”. A própria queda da fecundidade e a inserção da mulher no mercado de trabalho são fatores que trazem implicações para o cuidado aos idosos.

A diminuição do número de filhos significa a redução de membros da família cuidadores em potencial. Como mostra Nascimento (2000) as mulheres idosas solteiras admitem ir para um asilo quando não puderem mais se cuidar sozinhas pelo fato de não terem constituído família com marido e filhos. Já que, na expectativa delas, os filhos é que seriam os mais indicados para cuidar. Além disso, a mulher que era tradicionalmente a cuidadora da família tem seu tempo reduzido ao atuar no mercado de trabalho.

Outra noção que merece um olhar mais atento é a idéia de que os idosos vão ao posto de saúde “por não ter o que fazer”.

Ele (o idoso) não tem o que fazer o dia todo, né. Então ir ao posto, ir ao médico, falar com a enfermeira, né então é uma atividade sim. É ir ao shopping. (Grupo de discussão médicos)

Além da realidade já demonstrada por outros autores dos idosos como também produtivos, as conversas com os mesmo durante o trabalho de campo demonstram que eles têm, sim, bastante atividade no seu dia a dia,

cuidam da casa, fazem trabalhos extras para garantir uma renda a mais para a família.

Dona Ana, ao voltar do passeio dos idosos no SESI comenta: Eita, a doutora marcou a reunião para quinta-feira e eu tenho tanta coisa para fazer, tenho muita encomenda para entregar... mas eu vou dar um jeito. (Ela costura e tem uma lojinha, junto com a filha. Ela mora com esta filha e o neto)

A idéia do idoso sem ter o que fazer como um dos motivos que torna a sua presença constante revela-se, no mínimo, insuficiente, uma vez que os profissionais com freqüência também se referem à ociosidade dos jovens da comunidade e ao desemprego dos homens adultos e estes são, justamente, os que menos freqüentam o posto.

A interpretação dos profissionais, como sendo o posto um local de lazer para os idosos é bastante interessante, uma vez que o posto é, em última instância, uma unidade de saúde, cuja representação é relacionada com a doença, com os aspectos degenerativos da velhice tão propagados. Talvez a estrutura do PSC, montada numa casa, próxima da casa dos idosos, onde a sala de espera é um terraço e se conversa com os “vizinhos” altere essa percepção. Não pelo espaço em si, e sim a proximidade. Isto também está relacionado com a afinidade desenvolvida com os profissionais, de uma amizade, que pode se alterar quando muda a equipe.