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Com o objetivo de estabelecer um procedimento puramente racional para escolha dos princípios, John Rawls irá propor um instrumento racional de bloqueio denominado ―véu da ignorância‖. O objetivo é anular completamente qualquer possibilidade de que contingências específicas da vida influenciem os pactuantes na escolha dos princípios. A ideia por trás deste instrumento é que condições sociais ou circunstâncias particulares específicas não devem ser decisivas no debate social, de maneira a evitar que os princípios de justiça sirvam, primordialmente, a interesses particulares.

Com esse propósito, assumo que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Eles não sabem como as várias alternativas irão influenciar ou afetar o seu caso particular, e são obrigados a avaliar os princípios unicamente com base nas condições gerais (RAWLS, 1999, p. 118).

Na posição original, atrás de um véu de ignorância, Rawls supõe que as partes envolvidas no processo deliberativo não possuem qualquer tipo de informação particular. Este instrumento é fundamental para teoria rawlseana, pois, segundo ele, embora as pessoas, em boa parte do tempo, tenham interesses e necessidades semelhantes, o que faz que em algumas situações trabalhem em cooperação, os planos particulares de vida ou a própria concepção de bem de cada indivíduo pode se tornar um impedimento para construção de uma sociedade mais justa, isto porque, objetivos particulares podem, em hipótese, levar as pessoas a fazerem revindicações conflitantes em relação a recursos naturais ou sociais

disponíveis. Sobre a importância de evitar que os interesses particulares sejam levados em consideração, Rawls afirma: ―eles são interesses de uma pessoa concreta que considera sua concepção de bem como digna de reconhecimento e que faz em seu nome exigências igualmente merecedoras de satisfação‖ (RAWLS, 1999, p. 110) 49.

Para Rawls, embora seja possível pensar, em condições normais, numa sociedade cooperativa, a pluralidade de concepções de bem e os interesses particulares, certamente farão com que a deliberação acerca dos princípios de justiça esbarre num conflito de interesses, situação que, consequentemente, leva a sociedade a um impasse para se definir o papel da justiça.

Assim, como notei no início, embora uma sociedade seja um empreendimento cooperativo para a vantagem mútua, ela é tipicamente marcada por um conflito e, ao mesmo tempo por uma identidade de interesses. Há uma identidade de interesses uma vez que a cooperação social possibilita à todos uma vida melhor do que qualquer um teria se tentasse viver apenas do seu próprio esforço. Há ao mesmo tempo um conflito de interesses, uma vez que os homens não são indiferentes em relação a como os maiores benefícios produzidos pela sua colaboração são distribuídos, pois, a fim de perseguir seus objetivos, cada um prefere uma parte maior a uma parte menor (RAWLS, 1999, p. 109).

Na posição original, Rawls assume que as partes envolvidas se situam atrás de um véu da ignorância que impede os indivíduos de conhecer fatos particulares de sua vida e sociedade, permitindo que as partes apenas tenham acesso a informações gerais, sendo esta a única base para escolha dos princípios a serem adotados. O véu da ignorância impede que os indivíduos conheçam seu lugar na sociedade (sua classe social), sua sorte na distribuição de bens, dotes naturais e habilidades. Além disso, não é possível que o pactuante conheça suas concepções

49 A partir da afirmação rawlseana de que o ―interesse‖ é um obstáculo para o consenso na

posição original,é preciso admitir que algumas questões podem representar dificuldades para teoria, algo que ele mesmo reconhece no texto. Segundo Rawls, a principal delas é se os envolvidos no processo de deliberação deveriam discutir sobre os princípios de justiça tendo em vista o bem-estar social das próximas gerações, ou seja, se os pactuantes teriam alguma obrigação moral com uma terceira parte interessada, como, por exemplo: seus descendentes. Ele se ―esquiva‖ deste debate e afirma que o objetivo de sua teoria é tentar ―derivar todos deveres e obrigações da justiça de condições razoáveis‖. Isto é, Rawls estabelece que seu único objetivo, ao tratar da posição original, é cuidar do aspecto formal da escolha dos princípios, deixando as demais discussões para um momento posterior (Cf. RAWLS, 1999, p. 111).

de bem, seu plano racional de vida, e nem mesmo seus traços psicológicos. E mais, com intuito de se chegar a princípios com validade universal, não se permite nem mesmo que as partes saibam acerca de aspectos particulares de sua própria sociedade. Em síntese, os pactuantes não conhecem posições econômicas e políticas da sociedade, ou o nível social e cultural que a mesma atingiu (Cf. RAWLS, 1999, p. 119).

Na teoria rawlseana, só não há limites para informações genéricas. Mas qual seria o conteúdo de tais informações? Segundo Rawls, os pactuantes teriam acesso a leis e teorias gerais, isto é, acesso a domínios teóricos nos mais variados campos do saber, tais como: no campo filosófico, sociológico, econômico e histórico entre outros. Como não é permitido aos pactuantes conhecer fatos particulares de sua vida ou sociedade, ou seja, situações empíricas, o embasamento teórico serviria de base para a concepção de justiça no pós-pacto.

Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem é que a sua sociedade está sujeita as circunstâncias da justiça e a qualquer consequência que possa decorrer disso. Entretanto, considera-se como um lado que elas conhecem os fatos genéricos sobre a sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e os princípios da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis que regem a psicologia humana. Não há limites para informação genérica, ou seja, para leis ou teorias gerais uma vez que concepções da justiça devem ser ajustadas às características dos sistemas de cooperação que devem regular, e não há razão para excluir esses fatos (RAWLS, 1999, p. 119).

Portanto, embora sem acesso a fatos particulares, na posição original, a razão tem acesso a conhecimentos teóricos para formulação dos princípios que serão incorporados à estrutura básica da sociedade. O véu da ignorância é uma condição essencial na satisfação dos requisitos rawlseanos para formulação dos princípios, ou seja, é fundamental que os interesses e as inclinações pessoais não influenciem na escolha de princípios que determinará toda organização social. Contudo, Rawls reconhece que a noção de véu da ignorância pode levantar sérias dificuldades para sua teoria. Segundo ele, seus críticos podem objetar que a exclusão de quase todas as informações acerca das condições individuais

particulares, dificultaria o entendimento dos próprios pactuantes acerca da importância da posição original (Cf. RAWLS, 1999, p. 120-121).

Sobre este ponto, Rawls afirma que a crítica não se sustenta, pois, a posição original e o recurso do véu da ignorância representam nada mais do que uma situação imaginaria que pode, a qualquer tempo, ser simulada e aplicada em qualquer sociedade democrática. Neste caso, a validade moral e a aplicabilidade prática dos princípios de justiça estarão condicionadas ao cumprimento formal das restrições impostas.

A noção de véu da ignorância levanta sérias dificuldades. Alguns podem objetar que a exclusão de quase todas as informações particulares podem dificultar o entendimento da própria noção de posição original. Assim, poder ser útil observar que uma ou mais pessoas podem, a qualquer tempo, passar a ocupar essa posição, ou, talvez melhor, simular as deliberações que seriam tomadas nessa situação hipotética, simplesmente raciocinando de acordo com as restrições apropriadas. Ao argumentarmos em favor de uma concepção de justiça, devemos ter certeza de que ela está entre as alternativas permitidas e satisfaz as restrições formais estipuladas (RAWLS, 1999, p. 119).

Em geral, podemos dizer que com o recurso teórico do véu da ignorância, a teoria da posição original continua a apresentar indivíduos voltados para seus próprios interesses a deliberar sobre a ideia de justiça mais adequada para uma sociedade, mas a diferença é que o debate se dá sem saberem o lugar que ocupam na sociedade e que tipo de indivíduos serão no que se refere a talentos e habilidades naturais. Os indivíduos estão na ―posição original‖ e ―por trás de um véu de ignorância‖ no propósito de escolher o melhor caminho para suas vidas e para sociedade. Contudo, dada limitação imposta pela situação imaginada por Rawls, é impossível, em sua visão, que os princípios oriundos do pacto sejam injustos.

De acordo com Kolm, em Teorias Modernas da Justiça (2000), da maneira que a posição original é apresentada em TJ, pode-se distinguir três razões diferentes que motivam o indivíduo na escolha dos princípios, são elas: ―evitar os efeitos da desigualdade e das contingências nos poderes relativos que poderiam influenciar essa escolha coletiva; evitar vieses egoístas pela mera enunciação dos princípios; e oferecer um método de pensamento para testar, a priori, as intuições

éticas‖ (KOLM, 2000, p. 235). Deste modo, os indivíduos na posição original seriam todos idênticos, o que anularia os efeitos tanto de meios diferentes quanto no que diz respeito aos fins.

A posição original é o status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos básicos nela estabelecidos sejam equitativos. Esse fato delimita o conceito de ―justiça como equidade‖. Está claro, portanto, que eu quero afirmar que uma concepção de justiça é mais razoável que a outra, ou mais justificável no que diz respeito à ―justiça como equidade‖, quando pessoas racionais na situação inicial escolhem seus princípios para o papel da justiça preferindo-os aos de outra concepção (RAWLS, 1999, p. 16).

Portanto, em sua teoria da justiça, John Rawls vê a posição original com um método de raciocínio para testar ou ampliar nossas concepções acerca da justiça para que possamos chegar a esses princípios por meio de um equilíbrio reflexivo. Contudo, a posição original enfrenta diversas críticas, as mais citadas são: primeiro, que a posição original seria contrafactual, pois no mundo real ninguém conseguiria simular e escolher de maneira isenta; segundo, mesmo que fosse possível uma situação contratual tal como a proposta por Rawls, a mesma não conseguiria eliminar por completo o egoísmo individual; e por fim, uma vez que a posição original nada mais é do que uma situação hipotética que os indivíduos assumem num dado momento, ele não explica qual a motivação que os levaria a simular tal situação. A pergunta permanece: o que motivaria as pessoas a se colocarem nesta posição? Ainda mais se considerarmos que os privilegiados, a princípio, não teriam nenhuma razão para agir desta forma.

Kolm, também concorda com essas críticas e vai mais além. Para ele, a teoria de Rawls exige que o indivíduo assuma uma perda hipotética de sua identidade, de modo que, uma vez escolhidos os princípios de justiça, ao retornar para vida social é provável que os conflitos e inclinações individuais continuem os mesmo, e provavelmente não se tería leis ou regras que pudessem normatizar tais conflitos. Isto porque, como não é possível ter acesso a informações particulares, tanto sobre o indivíduo quanto acerca da sociedade em que se vive, provavelmente as leis oriundas do pacto não dariam conta de todas as demandas sociais (Cf. KOLM, 1999, p. 240).

Todavia, o que interessa, neste trabalho, é observar como Rawls, por meio de sua construção argumentativa, formata sua ideia de Estado, e analisar a partir do contexto da justiça distributiva, se é possível pensar um Estado liberal para além do Estado mínimo tal como propôs Nozick50. Assim sendo, é possível perceber que os princípios obtidos com procedimento construtivista são considerados, por Rawls, como válidos, pois representam o resultado de um equilíbrio reflexivo entre indivíduos livres e iguais, igualmente posicionados numa situação ideal (Cf. RAWLS, 1999, p. 18). Apresentado o que para Rawls representa as condições ideais onde se poderiam alcançar princípios de justiça válidos para todos, passo a analisar os princípios de justiça enquanto tal.