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Publicidade das provas e a imparcialidade do juiz

1.2 NOZICK: LIBERAL OU LIBERTÁRIO?

1.2.3 Publicidade das provas e a imparcialidade do juiz

Todo indivíduo tem o direito de acesso a uma quantidade de informações que justifique e demonstre a confiabilidade e a imparcialidade do procedimento que o condenou (NOZICK, 2011, p. 130). Nozick vai mais longe e sustenta que na falta desta demonstração, o acusado tem legitimidade moral para defender-se e resistir à imposição de um procedimento relativamente desconhecido ou tendencioso, pois tal resistência não representa uma contestação da lei natural, mas sim ao procedimento. A falta de publicidade das provas e a incerteza quanto a isenção do

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Outro motivo que também devemos levar em conta, no que se refere à criação do sistema estatal, é que a ideia de que a agência de proteção, uma vez dominante, se limitaria à simples prestação de serviço, parece utópica. Esta é uma posição defendida por muitos anarcocapitalistas. Neste ponto, parece correto o argumento de John Stuart Mill. Segundo o autor, todo poder na sociedade tem a tendência de transformar-se em poder político, pois ele não é inerte, mas sim um poder ativo (MILL, 2006. p. 24). Desse modo, a não criação do Estado poderia deixar os indivíduos sujeitos à tirania de um pequeno grupo.

procedimento de aplicação da justiça, legitimam uma ação retaliatória por parte do indivíduo que está sendo punido.

O princípio é o seguinte: se alguém tentar sujeitar uma pessoa a um procedimento indigno de confiança ou parcial, ela pode resistir em defesa própria. Ao aplicar este princípio, a pessoa estará resistindo aos sistemas que - como resultado de uma completa e cuidadosa avaliação - consideras imparciais ou indignos de confiança (NOZICK, 2011, p. 131).

O ponto central deste segundo argumento consiste em afirmar que apenas o Estado pode garantir um julgamento justo e imparcial numa sociedade organizada. Não há nada, nesse momento da discussão, sobre o indivíduo possuir força suficiente para defender seus direitos, disso Nozick trata quando explica o processo de surgimento do Estado. Para Nozick, no momento em que os homens se tornam juízes em causa própria, sempre tendem a julgar em benefício próprio, podendo gerar uma sensação generalizada de injustiça na sociedade.

A sensação mútua de estar sendo vítima de injustiça pode ocorrer mesmo diante do mais evidente direito e da concordância de ambas as partes acerca dos fatos relativos à conduta da pessoa; e, quando os fatos ou os direitos forem, de alguma forma, pouco nítidos, mais propícia se tornará a situação a esses embates retaliatórios (NOZICK, 2011 p. 13).

A não garantia de que as disputas entre os indivíduos possam ser resolvidas de maneira justa, pode dar início a uma situação incontrolável de retaliações entre os envolvidos no conflito. Isso porque, uma vez que as pessoas não confiem na conduta ética a ser adotada, ninguém mais aceitará as punições ou retratações impostas, mesmo que sejam impostas por uma agência de proteção e estejam em conformidade com a lei natural. Portanto, a figura de um juiz imparcial para arbitrar as contendas sociais, é de extrema importância para a manutenção da ordem. Neste aspecto, Nozick segue John Locke quando este afirma que os homens sempre concedem a si mesmos o benefício da dúvida e, na maioria das vezes, decidem que a razão está do seu lado.

Porque, sendo cada homem, nesse estado, juiz e executor da lei da natureza, sendo os homens parciais para consigo, a paixão e a vingança podem levá-los a exceder-se nos casos que os interessam, enquanto a negligência e a indiferença os tornam por demais descuidados nos casos de terceiros (LOCKE, 1991, §125, p. 264).

O problema está na imparcialidade e na publicidade do julgamento quando não há supervisão do Estado. Como já mencionado, para Nozick, ―a aplicação privada e pessoal de punições ou retratações (incluindo os direitos que são violados quando alguém sofre uma punição excessiva) leva à discórdia e a uma série infindável de atos de retaliação e exigências de indenizações‖ (NOZICK, 2011 p. 13). Nozick não é a favor de que os indivíduos elejam, de maneira particular, seus próprios procedimentos de justiça, pois a prática poderia levar a sociedade ao caos. Neste ponto, os libertários poderiam se contrapor a Nozick com o seguinte argumento: bem, se deixarmos a cargo do Estado a aplicação da justiça, o aparelho estatal passará a ser a última instância da consciência moral, passando a ser considerado o responsável último por estabelecer os limites do bem e do mal. Esta ideia é inaceitável para os libertários. Segundo Bakunin, como citado anteriormente, o Estado é o governo de uma minoria de favorecidos que visam apenas seus interesses com a prerrogativa de julgar entre o certo e o errado. Para ele, essa minoria sempre irá buscar seus próprios interesses e não a justiça.

Para os libertários, a ideia de que os indivíduos possuem direitos naturais e a obrigação de resguardá-los não justifica a existência do Estado. Segundo os libertários, deveríamos considerar que, mesmo sem a existência de um aparelho estatal, arrumações podem ser feitas para que eventuais problemas sejam sanados e evitados, ou pelo menos para que se tornem menos constantes. Ou seja, a discussão acerca dos limites do Estado deve ser precedida pela questão acerca da necessidade de sua existência ou não (Cf. NOZICK, 2011, p. 3). Em outras palavras, antes de aceitar a necessidade do Estado como remédio inevitável para os dilemas da vida social, é preciso analisar se no próprio estado de natureza os indivíduos não poderiam, por si mesmos, resolver suas questões.

A crítica libertária parece não se sustentar, pois Nozick não cria nenhum direito especial quando delega ao Estado a incumbência de aplicar a justiça. Os limites da legalidade ou da moralidade não passam a ser definidos pelo Estado

como afirmam os libertários, a lei natural continua a ser o parâmetro ético para aplicação da justiça. Na visão nozickiana, os direitos processuais são direitos decorrentes da lei natural e podem ser violados tanto pelo indivíduo como também pelo próprio Estado, basta que não sigam os princípios da lei natural. Contudo, para ele a diferença é que, com a presença do Estado no processo arbitral é possível estabelecer um padrão mais confiável para todos. No início de AEU, Nozick afirma claramente que os indivíduos têm direitos e há coisas que nenhuma pessoa ou grupo (Estado) pode fazer sem violá-los, ou seja, os direitos individuais são tão fortes que limitam a ação do Estado (Cf. NOZICK, 2011, p. IX). Portanto, tal como qualquer indivíduo ou cidadão, o Estado também está sujeito às leis da natureza e não há nenhum direito especial que o autorize a transgredir as leis da razão. O que é reservado ao Estado é a exclusividade no julgamento e no anúncio da punição. Cito uma passagem importante para o ponto.

Tendo em vista os nossos objetivos, podemos prosseguir dizendo que uma condição necessária para existência do Estado é que ele (uma pessoa ou organização) declare que punirá, de maneira mais exemplar possível [...] todos que descobrir que recorreram à força sem autorização expressa (NOZICK, 2011, p. 29).

Portanto, embora o Estado seja pensado como a instância que prescreve o procedimento de justiça a ser seguido numa sociedade, não existe, em AEU, nenhuma afirmação de o que o Estado é a única alternativa possível para a aplicação da justiça, nem de que pode criar leis que desrespeitem a lei natural. O Estado não cria nenhum tipo de consenso para julgar as pendências, e muito menos cabe a ele estabelecer a norma ética a ser seguida. O próprio Estado pode ser punido por atos tirânicos ao violar a liberdade individual. Vale citar Nozick.

Devemos dizer que o Estado que surge do estado de natureza, por meio do processo descrito, substituiu o estado de natureza, que, por conseguinte, não existe mais, ou devemos dizer que o Estado existe no interior do estado de natureza, sendo, por este motivo, compatível a ele? Não há dúvida de que a primeira afirmação se adequa melhor à tradição lockeana. Mas o Estado surge de maneira tão gradual e imperceptível do estado de natureza de Locke, sem nenhuma

tentados a ficar com a segunda opção (NOZICK, 2011, p. 170, grifo

nosso).

A teoria do Estado mínimo não cria nenhum direito novo, nem garante aos agentes do Estado qualquer direito especial. Assim, não parece possível sustentar a tese de que Nozick cede ao Estado o monopólio do uso da força ou algum direito especial. O que ele faz é mostrar que, para que a justiça seja devidamente executada, não basta punir o acusado, é necessário também que o acusado seja declarado culpado, de maneira pública, por meio de um procedimento isento. Segundo Faggion (2013), Nozick introduz um princípio epistêmico que estabelece a publicidade da culpa como exigência fundamental para punir um acusado.

A introdução desse princípio epistêmico servirá para demonstrar que qualquer um teria o direito de proibir a execução de uma pena se a culpa do réu não é devidamente comprovada aos olhos do público. É com base nesse direito que, após ter tornado público todos os procedimentos que ela considera especialmente capazes de condenar inocentes, uma organização teria legitimidade moral para punir quem usasse um procedimento diferente dos listados para punir um de seus membros por um crime alegado (FAGGION, 2013).

Fica claro que a real intenção de Nozick é garantir que todas as questões sociais sejam arbitradas por um magistrado imparcial. Ele até admite que o Estado, na maioria dos casos, dificilmente deixará de reivindicar o direito de executar a pena a ser aplicada, mas decide passar ao largo da questão. Ele não se ocupa, neste momento, em discutir se o Estado deve reivindicar o monopólio do uso da força, nem se cabe ao Estado a exclusividade em dar cumprimento à punição estabelecida.

Não fica claro se o Estado tem de reivindicar o direito de punir o transgressor e, na verdade, é duvidoso que qualquer Estado deixasse de punir um grupo significativo deles dentro das suas fronteiras. Passo ao largo da questão relativa ao tipo de ―poder‖, ―legitimidade‖ e ―permissibilidade‖ que está em questão (NOZICK, 2011, p. 29).

Entretanto, em certa medida, não parece que os libertários estejam completamente errados. Não é necessário recorrer à teoria anarcocapitalista para citar exemplos de sociedades que se organizaram sem a necessidade de um aparelho estatal coercitivo para manter a ordem. O historiador britânico Lord Action, ao escrever a famosa The History of Freedom and Other Essays (1907), cita o povo hebreu após sua saída do Egito como um exemplo de organização social cuja unidade não se fundamenta no poder coercitivo estatal, mas sim na unidade da raça e da fé.

O governo dos israelitas era uma federação, permaneciam em unidade não pela autoridade política, mas pela unidade da raça e da fé. Unidade fundada não sobre a força física, mas por uma aliança voluntária. O princípio de autogoverno era realizado não apenas em cada tribo, mas em toda comunidade (ACTION, 2011, p. 25).

A época mencionada por Lord Action, também ficou conhecida como o período dos regentes ou dos juízes. Foi um período histórico do povo israelita, entre 1390 a 1030 AC., cuja liderança política, religiosa, militar e o julgamento de disputas sociais ficavam a cargo de líderes temporários sem a necessidade de uma estrutura estatal, que por "instrução divina" unificava e dirigia as tribos hebreias25. Sem um governo central ou uma força coercitiva para manter a ordem, as tribos de Israel encontravam na religião o vínculo que as unia e que mantinha a consciência da sua identidade nacional26.

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se propor para Nozick a seguinte questão: dado que o Estado não pode ser visto como única possibilidade de arranjo social em que se aplica um procedimento de justiça, não seria melhor pensar uma espécie de organização civil, sem Estado, para julgar as disputas sociais? Não seria isso mais coerente para um autor que se diz libertário? Para responder à pergunta formulada, passo, agora, a outro argumento nozickiano que justifica a existência do

25 Cf. livro de Juízo, antigo testamento, Bíblia.

26 Convém deixar claro que, com este exemplo, não tenho por objetivo tecer um juízo de valor

sobre o modelo das tribos hebraicas, na época mencionada. Essa estrutura está muito distante de representar uma garantia das liberdades básicas do indivíduo. A menção tem como único objetivo mostrar a possibilidade de pensar diversos arranjos sociais onde a aplicação da justiça pode ocorrer mesmo sem a presença do Estado.

Estado mínimo. O argumento pode ser formulado nos seguintes termos: é necessária a existência do aparelho estatal para que se tenha a garantia de que a sentença proferida em um julgamento seja cumprida.

Apenas por estratégia de argumentação, é possível aceitar que os anarcocapitalistas estão corretos e que os direitos processuais do Estado são direitos especiais criados após a formação do Estado, ou seja, não emanados da lei natural. Imaginemos ainda que os indivíduos resolvam suas disputas sempre de maneira independente e em conformidade com a lei natural. Para isso, é necessário também abraçar a utopia de que todos seguirão de maneira espontânea a lei natural sem permitir que as paixões os governem no momento da decisão. A única argumentação dos libertários anarcocapitalistas que não vou considerar aqui é a presunção de que os condenados aceitem a legitimidade do julgamento e a punição estabelecida.

Ora, não parece difícil imaginar a existência de fontes não estatais de direito, e reconhecer a existência de tribunais não estatais que possam se posicionar de maneira moral sobre diversas questões, um exemplo é a religião. Em algumas igrejas, é comum que os fiéis, ao transgredirem a norma religiosa, sejam ―julgados‖ e recebam algum tipo de sanção ou punição. Na igreja católica, por exemplo, existe um tribunal Eclesiástico que opera em conformidade com o Código de direito canônico da Igreja Romana. Neste tribunal, a Igreja aplica os princípios do código canônico e orienta os cristãos católicos em situações diversas. Contudo, o problema é que, na maioria dos casos, as fontes não estatais de justiça não possuem força suficiente para impor uma sentença, o que torna o julgamento inócuo quando o objetivo é a restituição material de uma ofensa. Situação que, na visão de Nozick, leva a aceitar a necessidade de um poder coercitivo.

Portanto, é possível dizer que a crítica libertária à teoria de nozickiana não se sustenta, pois não há a criação de nenhum direito especial para o Estado. O Estado está restrito as funções de proteção tendo de agir sempre em conformidade com a lei natural. Não se encontra na teoria nozickiana nenhum elemento textual que autorize afirmar que o Estado possui qualquer direito especial, pois, além de estar submetido às leis da razão, podendo ser considerado como moralmente ilegítimo caso as transgrida, ele deve seguir os preceitos morais originários da lei

natural não podendo criar leis coercitivas a posteriori, isto é, após a criação do Estado.

Mas afinal, Nozick é um libertário ou liberal? Diante do que foi exposto até aqui, é possível dizer que Nozick tenta se apresentar como um autor libertário, no entanto, uma vez que libertarianismo rejeita toda e qualquer pretensão estatal, a leitura de Nozick como um liberal também é válida. A ideia defendida, em AEU, é a de que a existência do Estado em nada viola os direitos naturais do indivíduo, e que o aparelho estatal tem como única e exclusiva função defender os direitos individuais. Os argumentos da mão invisível, da publicidade da culpa e do juiz imparcial tentam demonstrar que não há nenhuma incoerência entre a defesa da liberdade individual e a existência do Estado mínimo. Portanto, uma vez que é possível considerar Nozick como um libertário, prossigo na análise do pensamento de nozickiano a partir da perspectiva de um liberalismo mais radical do que a concepção clássica27. Este posicionamento terá grande importância no momento de analisar as possíveis contradições de sua teoria e a sua crítica à prática da justiça distributiva.

No intuito de melhor compreender o conceito de liberdade em Nozick, passo a escrutinar a origem deste conceito e discutir se ele deve ser considerado negativo ou positivo. Noutras palavras, depois de tratar a legitimidade do Estado mínimo passo à discussão sobre o espaço que a liberdade individual deixa para a ação estatal.