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3 A IGREJA: SACRAMENTO DE CRISTO E SOLIDÁRIA AOS POVOS CRUCIFICADOS

A Igreja Latino Americana, solidária àqueles que são os crucificados de hoje, “deve

exprimir seu testemunho e seu serviço neste continente, que enfrenta problemas angustiosos

como os de integração, desenvolvimento, profundas modificações e miséria.” 149

A Constituição Dogmática Conciliar do Vaticano II Lumen Gentium, n. 284 exorta que: “A Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano.” Com efeito, a Igreja na América Latina e no Caribe é

enviada pelo Senhor a dar testemunho de Cristo, anunciando seu Evangelho – A cruz de

Cristo – e oferecer seu serviço de caridade principalmente aos mais pobres. “No esforço por

promover sua dignidade, do acesso e também no empenho de promoção humana nos campos da saúde, da economia solidária, da educação, do trabalho, do acesso a terra, da cultura, da

habitação e assistência.” 150 A Igreja seguindo o seu mestre e Senhor: prega a cruz, abraça a

cruz e anuncia a cruz, pois a cruz é um “símbolo que conduz, para fora da Igreja e do anelo

religioso para dentro da comunhão com os oprimidos, perdidos, excluídos e crucificados da

história.” 151 Pois a verdadeira espiritualidade cristã não é vivida distante do mundo, mas

mergulhada nele, em seus conflitos e situações. O cristão atraído pelo Cristo crucificado, e assumindo a sua cruz ele não foge do mundo para refugiar-se no abrigo da espiritualidade. Ao contrário, é ela mesma quem o atira para o mundo, lá onde ela vai viver sua fé e a missão de anunciar e fazer crescer o Reino que Jesus inaugurou. O Papa Bento, na homilia da missa de abertura da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina, disse que:

149DOCUMENTO DE MEDELLÍN. Bispos da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 131. As próximas

citações vamos colocar a sigla MEDELLÍN.

150DAp, n. 98 151

[...] como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu amor, que culminou no sacrifício da Cruz, assim a Igreja cumpre sua missão à medida que, associada a Cristo, cumpre a sua obra, conformando-se em espírito e concretamente com a caridade do seu Senhor.152

3.1 - A Igreja na América Latina nos convida a contemplar os pobres e crucificados pela cruz de Cristo

PAULO VI já afirmara que “A América Latina apresenta uma sociedade em

movimento, sujeita a transformações rápidas e profundas”.153 Desta forma, o Episcopado

Latino-Americano “não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes

na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em

muitos casos chega a ser miséria desumana.”154

A Igreja comunidade solidária aos povos crucificados:

Unida à de outras instituições nacionais e mundiais, tem ajudado a dar orientações prudentes e a promover a justiça, os direitos humanos e a reconciliação dos povos. Isso tem permitido que a Igreja seja reconhecida socialmente em muitas ocasiões como instância de confiança e credibilidade. Seu empenho a favor dos pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano têm ocasionado, em muitos casos, a perseguição e inclusive a morte de alguns de seus membros, os quais consideraram testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho valente de nossos santos e santos, e aqueles que, inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo. 155

152 BENTO XVI. Palavras do Papa Bento XVI no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 89 et seq. 153MEDELLÍN, p. 131. Exortação de Paulo VI ao CELAM, 24 de novembro de 1965, IV 8 154 Ibid., p.143.

Em Medellin, os Bispos assumiram o compromisso de que todos os membros da Igreja

são chamados a viver a pobreza evangélica156:

Uma Igreja que denuncia a carência injusta dos bens deste mundo e o pecado que engendra; Uma Igreja que prega e vive a pobreza espiritual como atitude de infância espiritual e abertura para o Senhor.

Uma Igreja que se compromete ela mesma com a pobreza material. A pobreza da Igreja é, com efeito, uma constante na história da salvação. 157

“A Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da união com

Deus e da unidade de todo o gênero humano.” 158 Ora a Igreja é este sacramento através da

ação de cristãos evangelicamente comprometidos, a Igreja pode completar sua missão de

sacramento de salvação tornando-se instrumento do “Senhor, que dinamize eficazmente em

direção a Ele a história dos homens e dos povos.” 159

Jesus não é o anunciador de uma mística separada de toda referência com o mundo ou um ascetismo desencarnado. No ensinamento e na ação de Jesus há, pelo contrário, a unidade entre dimensão transcendente e dimensão imanente da salvação. Também a sua morte de cruz não pode de modo algum ser considerada como religiosidade destacada do mundo, que separa a criação da redenção. Ao contrário, Jesus morreu na cruz para demonstrar o amor libertador de Deus que transforma o mundo. A morte de Jesus na cruz conferiu ao mundo e à história a

156 Em Medellin, exortaram os Bispos do CELAM: “O exemplo e o ensinamento de Jesus, a situação angustiosa

de milhões de pobres na América Latina, as iniciativas exortações do Papa e do Concílio. Põem a Igreja latino- americana ante um desafio e uma missão a que não pode fugir e à qual deve responder com a diligência e audácia adequadas à urgência dos tempos. Cristo, nosso Salvador, não só amou aos pobres, mas também, ‘sendo rico se fez pobre’, viveu na pobreza, centralizando sua missão no anúncio da libertação aos pobres e fundou sua Igreja como sinal dessa pobreza entre os homens.” [...] “A Igreja na América Latina, dadas as condições de pobreza e subdesenvolvimento do continente, sente a urgência de traduzir esse espírito de pobreza em gestos, atitudes e normas, que tornem um sinal mais lúcido e autêntico do senhor. A pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo. A situação atual exige, pois dos bispos, sacerdotes, religiosos e leigos o espírito de pobreza que ‘rompendo as amarras da posse egoísta dos bens temporais, estimula o cristianismo a dispor organicamente da economia e do poder em beneficio da comunidade’ (Paulo VI, 23/07/ 68). ‘A pobreza da Igreja e de seus membros na América Latina deve ser sinal e compromisso. Sinal do valor inestimável do pobre aos olhos de Deus; compromisso de solidariedade com os que sofrem. p. 145-146

157 MEDELLÍN, p. 145. 158 LG, 284.

característica de um campo no qual vai se impondo a Nova Criação, desde aqui e agora. Assim a salvação, a libertação, com respeito à sua realização histórica, não se inicia no momento da nossa morte individual ou no fim da história da humanidade no seu conjunto, quando o bom Samaritano voltará: “este é o momento da consumação dela, na contemplação

de Deus, na eterna comunhão com ele: inicia agora e aqui, à beira da estrada.” 160 Jesus Cristo

morreu na cruz, a fim de que o homem experimente Deus como salvação e vida, em todos os âmbitos da existência. Portanto, se a Igreja, junto com todo o gênero humano e na história, está a serviço deste desígnio, então “ela pode ser Igreja, apenas se for Igreja para os outros.”161

Exprime assim a Gaudium et spes; “a alegria e a esperança, a tristeza e a angústia dos

homens do tempo atual, sobretudo dos pobres e de todos os aflitos, são também a alegria e a

esperança, a tristeza e a angústia dos discípulos de Cristo” ou “não é verdadeiramente

discípulo de Jesus;” 162 ou ainda: “ou a Igreja, nesta perspectiva, se apresenta não como uma

comunidade religiosa separada do mundo e auto suficiente, mas como sacramento universal

de salvação,” 163ou a “Igreja, em sua natureza e missão, não é plenamente Igreja.” 164 A Igreja

é “verdadeiramente tal se for fiel à sua missão libertadora para a salvação integral do mundo, a qual tem a sua origem na mensagem de liberdade e de libertação de Jesus e no próprio agir de Jesus.” 165

A Igreja na América Latina é Igreja dos pobres e crucificados na medida em que ela segue os passos do seu mestre e Senhor, numa época na qual a hostilidade e avidez se tornaram superpotências, numa época em que, como nunca, temos necessidade do Deus vivo que nos amou até a morte de cruz, o Bom Samaritano que, no seu amor desmedido, na

160 MÜLLER, G. L. Pobre para os pobres a missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 15 161 Ibid., p.16

162 Ibid.

163 Cf. Constituição Dogmática Lumen Gentium e Catecismo da Igreja Católica, n. 721. 164 MÜLLER, G. L. Pobre para os Pobres. 2014, p. 17.

carnalidade da existência concreta, se inclina sobre os crucificados: os sofredores, os oprimidos e os necessitados de salvação; numa época, enfim, na qual temos necessidade de uma Igreja que: “seja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a

misericórdia pouca possibilidade tem hoje de inserir-nos em um mundo de ‘feridos’, que têm

necessidade de compreensão, de perdão, de amor.” 166

A opção preferencial pelos pobres sempre foi assumido pelo Episcopado Latino Americano em todos os documentos conclusivos das conferências Gerais. No entanto, esse argumento, de grande inspiração evangélica, surge, como sabemos, em Puebla (n. 31-39). A sua recepção nas comunidades cristãs do continente e em muitas das suas celebrações litúrgicas foi enorme. Santo Domingo o retomou, ampliando a lista daqueles rostos e pedindo que fosse depois enriquecida.

O Documento de Aparecida deu este passo ao retomar essa idéia da tradição eclesial latino-americana das últimas décadas, aliás, o passo foi bem maior, pois em Aparecida há

duas listas dos pobres e crucificados nos quais devemos “reconhecer o rosto de Cristo.” 167

Sustenta-se com precisão e firmeza que o desafio que provém desses rostos sofredores penetra as coisas em profundidade: “Eles desafiam o núcleo do trabalho da Igreja, da pastoral e de

nossas atitudes cristãs (DAp, n. 393). A razão é clara e exigente, pois “tudo o que tenha

relação com Cristo tem relação com os pobres, e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo: ‘Tudo quanto vocês fizeram a um destes meus irmãos mais

pequeninos, a mim o fizestes’(Mt 25,40).” 168Há, portanto, uma estreita relação entre Cristo e

o pobre e o texto crucial é o de Mateus 25, extremamente presente na história da

166 FRANCISCO. Pronunciamentos do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulo; Loyola, 2013, p.54. 167 Cf. DAp. n. 65, 402 e 407-430. Aí se fala, entre outros, de migrantes, deslocados, vítimas de HIV/ AIDS,

meninas e meninos vítimas de prostituição infantil, dos excluídos por causa do analfabetismo tecnológico, dos drogados, dos doentes de tuberculose, dos presos em condições desumanas. São mencionadas também, ainda uma vez, as mulheres indígenas, afro-americanas, que Aparecida considera com maior atenção do que as conferências precedentes.

evangelização e na solidariedade com os pobres deste continente, é o fundamento dessa perspectiva.

Referente à citação de Mateus, o próprio Papa João Paulo II destacou que este texto

bíblico “ilumina o mistério de Cristo.” 169“Porque em Cristo o grande se fez pequeno, o forte

se fez fraco, o rico se fez pobre” (DAp, n.393). De fato, o texto de Mateus não se limita a uma pura questão de comportamento por parte do cristão, a um fato de ética de inspiração evangélica; mas nos indica um caminho a seguir para compreender o Emanuel, o Deus

Conosco, o Deus presente na história humana. “Se não chegarmos até este ponto, não

podemos compreender a sua profundidade e alcance. Os contrastes que a frase citada

apresenta são particularmente significativos e evocativos.” 170

A cruz de Jesus nos convida a contemplar os crucificados de nosso continente, pois: “No rosto de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, maltratado por nossos pecados e glorificado

pelo Pai, nesse rosto doente e glorioso,” 171com o “olhar da fé podemos ver o rosto humilhado

de tantos homens e mulheres de nossos povos e, ao mesmo tempo, sua vocação à liberdade dos filhos de Deus, á plena realização de sua dignidade pessoal e à fraternidade entre todos. A

Igreja está a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas de Deus.” 172

O Santo Padre o Papa Bento XVI em seu discurso inaugural de Aparecida insiste no Deus de rosto humano e, conseqüentemente, na sua presença na história: “Deus é a realidade fundante, não um Deus só pensado ou hipotético, mas o Deus de rosto humano; é o Deus-

conosco, o Deus do amor até a cruz.” 173 O tema mateano do Emanuel – de origem vetero

testamentária – penetra as suas palavras e oferece um sólido apoio para falar dos

169 JOÃO PAULO II. Novo Millennio Ineunte. São Paulo: Paulus ; Loyola, 2001, n. 49.

170 MÜLLER, G. L. Pobre para os pobres a missão da Igreja. São Paulo: Paulinas. 2014, p. 112. 171 JOÃO PAULO II. Novo millennio Ineunte. São Paulo: Paulo; Loyola, 2001, n.25 e 28. 172 DAp, n.32.

compromissos que os cristãos e a Igreja no seu conjunto devem assumir diante da situação da América Latina e do Caribe.

O Santo Padre o Papa Bento XVI, no início de seu discurso, com uma linguagem que no passado, alguns olhariam com desconfiança, ele afirma que: “O Verbo de Deus, fazendo-se

carne em Jesus Cristo, tornou-se também história e cultura.” 174 Ou seja, fazendo-se homem,

entra na história humana e se coloca numa cultura. Trata-se de dimensões necessárias e

carregadas de conseqüências para uma compreensão apropriada da mensagem cristã: “uma

mensagem que se realiza na história e que, ao mesmo tempo a transcende.” 175

Ser Igreja Missionária e Samaritana é a vocação da Igreja na América Latina, para os pobres e crucificados. Isto é ao mesmo tempo um convite para professarmos a nossa fé, pois a fé cristã nos faz sair do individualismo e cria uma comunhão com Deus e, por conseguinte, entre nós: “A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos leva à comunhão: o encontro com Deus é, em si mesmo e como tal, encontro com os irmãos, um ato de convocação, de

unificação, de responsabilidade para com o outro e para com os demais.” 176

A opção pelos pobres é uma caminhada para a comunhão e encontra nela o seu significado mais profundo e exigente. Continua Bento XVI: “Nesse sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por

nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9).” 177é a fé num Deus que se fez um

conosco e que se manifesta no testemunho do amor prioritário de Jesus Cristo pelos pobres e crucificados.

Sobre isto diz o Cardeal Müller:

É nesse modelo de encarnação que o texto aparece citado em Aparecida: “Nossa fé proclama que – afirma baseando-se numa frase da exortação Eclesia in America (n.

174 Ibid., n.1, p. 269.

175 MÜLLER, G. L. Pobre para os pobres. A missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 108. 176 DAp., disc. N. 3, p. 273.

67). ‘Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem’. Continua depois com a citação do discurso do Papa: “Por isso, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza” (discurso, n.3). O “por isso”, que equivale ao “neste sentido” do discurso do Papa, bem como a menção do rosto, humano e divino, de Cristo, reafirmam do mesmo modo o fundamento desta opção: a fé em Cristo. Esta é a raiz de tudo. 178

Essa opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, “o Deus feito homem, que se fez nosso

irmão (Hb2, 11-12).” 179 A fraternidade entre o Cristo crucificado e os povos crucificados, a

comunhão da qual falava o discurso inaugural, é acentuada em Aparecida com referência à carta aos Hebreus. O mesmo documento dois números depois retoma a idéia da opção

preferencial pelos pobres, como implícita na fé cristológica e como nascida dela: “De nossa fé

em Cristo nasce também à solidariedade como atitude permanente de encontro, irmandade e serviço” (DAp, n. 394). Esses termos diferentes sublinham a relação entre Cristo e a opção pelos pobres e crucificados.

Assim, tal ligação é recordada também na reflexão teológica que acompanhou essas considerações e que encontramos nas três conferências latino-americanas precedentes. Nelas

aparece claramente o fundamento cristológico da “opção pelos pobres,” 180 ou seja, os

crucificados. Além disso, todas fazem referência ao mesmo texto de 2Cor 8, 9, ao qual aludem tanto Bento XVI quanto Aparecida. Sem dúvida, porém, a formulação que encontramos nos seus textos confere precisão, atualidade e grande vigor a uma perspectiva que pôs um selo indelével sobre a vida da Igreja no continente e também além dele. Desse modo, a “opção pelos pobres e crucificados se estrutura como pilar do Documento de

178 MÜLLER, G. L. Pobre para os Pobres. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 110.

179 DAp., n. 392. O documento acrescenta uma frase a este texto: “Opção, no entanto, não exclusiva, nem

excludente”, para enfatizar o sentido que a palavra “preferencial” encerra.

Aparecida, e é verdadeiramente exata porque se trata de um pilar de vida e de reflexão para o

discípulo de Jesus.” 181

3.2 - A Igreja na América Latina é Igreja Samaritana: comprometida com a cruz dos pobres e marginalizados

No primeiro capitulo desta dissertação já mencionamos o discurso de convocação para o Concílio proferido pelo Papa João XXIII, o Discurso do Cardeal Lercaro e o discurso do Papa Paulo VI e as luzes que os documentos do próprio Concílio Vaticano II, e as luzes que estes trouxeram para a teologia da cruz na América Latina e Caribe, particularmente a partir da II Conferência Geral realizada em Medellín (Colômbia), em 1968, ou seja, apenas três anos depois do Concílio, cujo tema foi: “A Igreja na transformação atual da América Latina à luz do Concílio”. Essa conferência foi a primeira e, em certos aspectos, a única recepção continental da mensagem conciliar, que impregnou as suas conclusões com evidentes repercussões em vários setores da Igreja universal, em particular nos países pobres. Essa recepção foi, em geral, um exemplo de fidelidade e criatividade.

181 É interessante observar, a propósito disso, que um primeiro esboço da mensagem apresentava numa só frase a

opção preferencial pelos pobres e pelos jovens. No entanto, houve uma intervenção que recordou o caráter bíblico e global, em virtude da sua raiz evangélica, da opção pelos pobres e da condição de linha pastoral da opção pelos jovens; por isso decidiu separar estas duas afirmações e o texto foi redigido como segue: “Manter como renovado esforço a nossa opção preferencial e evangélica, da opção pelos pobres” e, em seguida, “Acompanhar os jovens na sua formação e busca de identidade, vocação e missão, renovando a nossa opção por eles”. Esse acompanhamento é um aspecto pastoral, certamente importante, do qual o documento final fala no contexto da pastoral juvenil (cf. DAp, n. 446a).

Os Papas João XXIII e Paulo VI, o Vaticano II e Medellín abriram, portanto, um caminho que muitos cristãos, e a Igreja no seu conjunto, percorreram nestes anos, não sem dificuldades e incompreensões, oferecendo um testemunho que, em muitos casos, foi caracterizado pelo sangue do martírio daqueles que se comprometeram com os pobres, os marginalizados, ou seja, os crucificados da nossa sociedade. Neste sentido assim se expressou

Müller: “Esta é uma confirmação dolorosa do fato de que essas perspectivas pastorais e

teológicas não eram questões abstratas.” 182

Por sua vez, o Documento de Aparecida afirmou: “Iluminados pelo Cristo, o

sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana (cf. Lc 10, 25- 37), recordando que ‘a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica

libertação cristã’.” 183 A menção da “história do samaritano” 184 é reveladora porque indica

como viver o seguimento de Jesus. O gesto do samaritano deve inspirar a prática da caridade nos discípulos de Jesus. Pois nele se mostra a supremacia do outro e a necessidade de abandonar o seu caminho para ir ao encontro dele; esta é uma das linhas de força da mensagem de Jesus. Embora esta seja a atitude a ter em relação a toda pessoa, ele se torna ainda mais exigente no caso daqueles que vivem numa situação de crucificados: marginalização social. Trata-se de um texto estritamente ligado àquilo que o sentido da cena do juízo final contada por Mateus 25, nos indica. É esta a mesma ligação que Paulo VI faz no seu discurso.

A parábola é contada depois de um diálogo sobre o amor a Deus e o amor ao próximo que leva o doutor da lei a perguntar a Jesus: “Quem é o meu próximo?”. A resposta que ele

182 MÜLLER, G. L. Pobre para os pobres. São Paulo: Paulinas, 2014, p. 132. 183 DAp, n.26.

184 Coloca-se em discussão a condição de parábola desse trecho porque, para ser exato, não é uma comparação e

porque não parece fazer alusão ao Reino de Deus. Realmente, é muito singular. Apesar disso, embora o Reino não seja mencionado explicitamente, o testemunho do samaritano com o seu serviço ao próximo, ao pobre e ao marginalizado, denuncia a sua presença na cotidianidade da história humana. Portanto, pode ser considerado como um “relato exemplar”, um gênero que se encontra também em outros lugares do evangelho de Lucas. Cf.

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