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A igreja de Santo Estêvão situada em pleno bairro de Alfama ocupou desde sempre um papel preponderante na vida social dos seus habitantes309.

Também ela foi fundada logo após a tomada da cidade aos Mouros, e acreditava-se que a sua presença protegia sobretudo os mareantes e o pequeno burgo piscatório.

A igreja, dedicada ao culto de Santo Estêvão, o mártir ordenado diácono pelos Apóstolos de Jesus, que foi lapidado no ano 35 D.C pelos romanos em Jerusalém e acusado pelos judeus de blasfémia310, constituía também um símbolo do triunfo cristão e uma memória aos soldados mártires que pereceram na conquista da cidade, em Outubro de 1147311.

A igreja medieval tinha beneficiado da especial protecção real, que lhe concedera em 1305 os dízimos do Alqueidão para a sua manutenção e mais tarde D. Dinis e a rainha Santa Isabel doaram o padroado desta igreja ao bispo de Lisboa312.

O primitivo edifício era já monumental, cinco naves, capela-mor e tribuna em talha dourada313, ocupando um especial relevo na paisagem citadina e importante na vida dos habitantes de Alfama, chegando a ocorrer problemas e conflitos com os moradores que viviam na zona de Santa Engrácia e que frequentavam o templo, obrigando a infanta D. Maria a intervir e a pedir o desmembramento das freguesias em 1568.

309

Também considerada uma igreja popular ou de particular devoção primitiva do povo, como o foi a igreja dos Mártires ou de São Vicente. Manuel Ferreira da Silva: in Dicionário de História de Lisboa, Santo Estêvão (Igreja), p.868.

310

Jorge Campos Tavares, Dicionário dos Santos, Lello Editores, 2001, p.52. O Santo tinha como atributo a palma do martírio e o Livro dos Evangelhos, alusão ao facto de ter sido diácono.

311 Como vem referido nas Memórias Paroquiais, “Esta Igreja de Santo Estevão teve prencipio

logo que El Rey o/ Serinissimo Senhor Dom Affonço Henrriquez tomou esta/ cidade, que foy na era de mil, cento e quarenta e sete(…)”. Fernando Portugal e Alfredo de Matos, Lisboa em 1758: Memórias Paroquiais de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p.120.

312

Lisboa em 1758: Memórias Paroquiais de Lisboa, 1974, p.120. “(…) o Serinissimo D. Affonço terceiro, em o anno de mil/ trezentos, e sinco; fez doação a esta Igreja dos dízimos do/ Alqueidão, e o Serinissimo Rey Dom Dinnis com sua molher,/ Santa Izabel fizerão doação do padroado desta igreja ao/ Bispo de Lisboa, Dom Jaime (…)”. Também apresentado e citado por Manuel Ferreira da Silva: in Dicionário de História de Lisboa, Santo Estêvão (Igreja), p.868.

A igreja permaneceu na sua primitiva feição até 1733, ano em que a Irmandade do Santíssimo Sacramento, sediada no edifício, decidiu pela sua nova reedificação, demolindo-se a antiga construção que ameaçava ruína.

No cartório da actual igreja existe o: “Livro para se lançar a despesa da Obra da

Igreja do Invicto Mártir Santo Estevão, que esta nossa Irmandade do Santíssimo Sacramento lhe reedifica novamente314”, nele se encontram as importantes

informações sobre a nova construção, despesas várias com a quantidade de materiais usados, arquitectos e artistas envolvidos neste projecto.

A primeira pedra da obra foi lançada a 5 de Julho de 1733, acção decorrente da decisão final da Irmandade, que em Dezembro do ano anterior, havia decidido pela sua reconstrução, e o acontecimento vem mencionado no traslado da escritura que se encontra no livro de actas da Irmandade315, presidido pelo Juiz João Leite Ferreira e assinado por todos os Irmãos.

Pela leitura dos livros de despesa, as obras de construção, iniciadas em 1733, tiveram um ritmo constante e rápido. A Irmandade era uma das mais importantes da cidade e tinha bastantes rendimentos, para além dos donativos dos Irmãos e das esmolas do povo.

Manuel da Costa Negreiros foi o arquitecto escolhido para a elaboração do novo risco da Igreja, o seu nome não foi escolhido em vão, na sua família, a profissão era conhecida e o seu pai, José da Costa Negreiros, tinha-se destacado como empreiteiro nas obras de Mafra e do Aqueduto das Águas Livres, o que deve ter sido condição necessária e suficiente para a sua escolha.

Para além disso, o arquitecto era natural da freguesia do Socorro, tendo nascido na rua João do Outeiro, perto do Castelo, e residido na mesma zona onde casara316, não se encontrando muito longe das zonas da Graça ou de Alfama. O risco para o projecto teve início em 1732317 e aqui o arquitecto não se distanciou muito da igreja do Menino Deus da autoria de João Antunes318.

314

São dois os livros de despesa sobre a reedificação da igreja, que teve início em Dezembro de 1732 até 1752 e numa 2ª fase até 1770, in Cartório da Igreja de Santo Estêvão de Alfama.

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Treslado da Escreptura que se lançou no cofre com a primeira pedra do alicerce da nova Igreja no pé do arco do Cruzeiro e Capela mor do lado da Epístola”. In Livro de Actas da Irmandade do Santíssimo Sacramento, Cartório da Igreja de Santo Estêvão. Anexo II,

Documento nº 23. 316

De facto, existem algumas semelhanças entre as duas: a planta em forma de rectângulo de ângulos cortados, embora em Santo Estêvão se trate de um quadrado com as arestas cortadas319, o uso de mármores polícromos e os embutidos em algumas capelas laterais, que nos fazem pensar que o arquitecto, para além da influência ludoviciana que recebera em Mafra, não ousou muito distanciar-se das igrejas vizinhas: Menino de Deus e Santa Engrácia320.

Outra semelhança encontra-se na sua localização, pelo facto de se situar num terreno ingreme da zona de Alfama. Também nesta situação particular não seria de esperar do arquitecto outra opção que não fosse o risco de uma planta centralizada, quadrada e neste caso num efeito de octógono. Não tinha espaço nem terreno para mais.

Tal como Santo Estêvão se situa num alto de uma colina321 e num lugar acidentado mas privilegiado com vista para o bairro de Alfama e para o Tejo, o mesmo se passa com a igreja do Menino de Deus, situada na colina junto à cerca do Castelo, o que obrigaria a este tipo de desenho para a planta do edifício.

Sabemos que as igrejas “concorriam” entre si no prestígio e na arte. A Irmandade do Santíssimo Sacramento desejava para Santo Estêvão uma nova igreja tendo escolhido um arquitecto de renome e utilizando os melhores materiais.

Pela leitura dos livros de despesa da obra da igreja, percebe-se a cuidada contabilidade. Tudo era mencionado ao pormenor e a boa vontade dos membros

317 A primeira Indicação no livro de despesa da obra da igreja, menciona “Anno de 1732.

Louvado seja o Santíssimo Sacramento. Despesa que fez o nosso Irmão The/Soureiro o Reverendissimo Padre Clemente do Santissimo Sacramento”, diz respeito à quantia de 21.585 réis gastos em despesas com os materiais e o trabalho do pedreiro José da Costa.

Será que se trata de José da Costa Negreiros, pai do arquitecto Manuel da Costa Negreiros? Esta hipótese é levantada por Francisco Gentil Berger em op. cit., p.112. Se assim for a sua presença só iria até ao ano de 1735, ano do seu falecimento.

318

Ver Anexo I, Imagens nº 99, 100 e 101.

319

A Igreja e o Sítio de Santo Estêvão de Alfama por Sidónio Miguel, Amigos de Lisboa, Lisboa, 1939, p.19.

320

Ver Anexo I, Imagem nº102.

321 “Esta Igreja de Santo Estevão de Alfama esta cituada/ no alto”. Fernando Portugal e Alfredo

de Matos, Lisboa em 1758: Memórias Paroquiais de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p.119.

da Irmandade e dos paroquianos conduziram, em algumas situações, aos pagamentos devidos pelas obras executadas.

Só assim também se explicam as consideráveis somas pagas ao arquitecto Negreiros pelo seu trabalho. Logo em Julho de 1733, foi-lhe entregue 48 mil réis pelo risco da igreja, quantia bastante razoável para a época322.

Santo Estêvão é também uma extensão da igreja e basílica de Mafra, sagrada em 1730 e o lugar de aprendizagem de Manuel da Costa Negreiros. Em Lisboa é um dos raros exemplares de arquitectura joanina construída de raiz e sobrevivente ao Terramoto de 1755. É a imagem do que seria a arquitectura religiosa em Lisboa se não tivesse ocorrido o trágico episódio.

As obras em Santo Estêvão decorreram nesta primeira fase sob a orientação de Costa Negreiros, tendo recebido, a seguir ao pagamento pelo risco da igreja, o vencimento de 6.400 réis pelo menos até 1740. Contou com a colaboração dos mestres pedreiros Francisco Xavier Botelho e José da Costa, (este o primeiro nome que figura nos livros de despesa), e com o mestre carpinteiro Pedro dos Santos Perote323.

Desta primeira fase ficaram concluídos os alicerces da igreja, as paredes, as capelas do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição, os painéis alusivos aos santos, tecto da igreja, sacrário da capela do Santíssimo e a sacristia.

Do risco de Negreiros saiu a planta da igreja e o levantamento da mesma. Do interior destacam-se sobretudo as capelas da Conceição e do Senhor Jesus dos Aflitos324 que foram desenhadas por este, decoradas com colunas torsas ou salomónicas e em que foram usados os embutidos e os mosaicos florentinos na banqueta. Nesta última capela, um medalhão em mármore rosa da Arrábida, representando a Virgem com o Menino, sob o olhar de um querubim, rematado por um arco querenado, faz desta capela uma imagem rara no panorama das igrejas setecentistas e anteriores a 1755.

322

Anexo II, Documento nº 23, p.69.

323

Livro para se lançar a despesa da Obra da Igreja do Invicto Mártir Santo Estevão, Livro 1, fls.3, 11, 13, 24 e 26. Ver Anexo II, Doc. nº 23.

Nesta fase ainda e coincidente com o ano de 1740, Negreiros é nomeado arquitecto da Casa do Infantado, ao serviço do Infante D. Francisco, e acumulando o seu trabalho em Santo Estêvão com os novos projectos para o Infantado, nomeadamente a capela do hospício da Cruz da Carreira, à Carreira dos Cavalos, actual rua Gomes Freire e as intervenções no palácio da Bemposta.

Para além disso, em 1744, por determinação régia, foi enviado para as obras do palácio das Necessidades, onde vem a trabalhar com o futuro genro Eugénio dos Santos Carvalho325.

É por volta da década de quarenta que surge a figura de Mateus Vicente nas obras da Igreja de Santo Estêvão. O nosso morador no beco do Pino Vai, a São Nicolau, acumulando ao seu trabalho ao serviço de Ludovice, e por precisar de “riscar papeis para fora”326

, deve ter sido convidado por Negreiros, (que o conhecia e convivera com ele nas obras em Mafra), para a continuação das obras na igreja de Alfama. Desta forma se explicam os inúmeros sinais da sua intervenção no interior do edifício assim como a sua presença documental nos livros de despesa a partir de 1749327.

Mateus Vicente conhecia as obras de Santo Estêvão. Quando aqui chegou, encontrou uma igreja já delineada, alicerces, paredes e as capelas do lado esquerdo, precisamente: Nossa Senhora do Carmo, Conceição e Santíssimo Sacramento, as que beneficiaram do uso de mármores, porque as restantes são em madeira. O altar-mor, embora projectado, foi concluído em parte devido à sua intervenção, como veremos.

É de admitir que tenha intervindo activamente nas obras entre 1742 e 1745 até 1747, quando foi convidado a conceber a construção do palácio de Queluz pelo

325 A filha de Manuel da Costa Negreiros, Francisca Teresa de Jesus da Costa Negreiros casou

com Eugénio dos Santos em 1747, foram estes os pais do também arquitecto José Manuel de Carvalho Negreiros (1752-1815).

326

Esta frase vem mencionada no processo de habilitação do Santo Ofício de Mateus Vicente quando se descreve “de que ocupação vive o habelitando”. À data do processo, em 1747, o mesmo terá dito que estava ao serviço do arquitecto Ludovice e que riscava papeis para fora. Ver Anexo I, Doc. nº 2.

327

Mateus Vicente só surge mencionado nos livros de despesa a receber o seu pagamento pela intervenção nas obras em 1749, o que se depreende que tenha começado o seu trabalho nos anos anteriores.

Infante D. Pedro, que lhe reconheceu, na época, o devido valor pelos trabalhos que executara na igreja de Santo Estêvão.

Em 1749328 Mateus Vicente recebeu 6.400 réis pelo seu trabalho em Santo Estêvão na companhia do mestre pedreiro Francisco Xavier Botelho e do mestre carpinteiro Pedro dos Santos Faria.

Sabemos, pelo livro de despesa, que a principal obra que decorreu no interior da igreja entre 1745 e 1747 foi precisamente o retábulo do altar-mor de quatro colunas, em mármore rosa, sob um arco quebrado, onde se assentaram os dois anjos e o Cristo crucificado, em mármore branco, da autoria do escultor José de Almeida, que vieram da igreja do convento de Mafra e que serviram para a ocasião da sagração desta última329.

O altar-mor foi já pensado para receber esta importante herança, dado que o arco quebrado, e projectado para o efeito, se enquadra no conjunto escultórico. Os anjos assentam nas laterais do arco e o Cristo crucificado está sob uma peanha, rematando o conjunto.

Nos livros de despesa só em finais de 1750 os anjos foram transportados de Mafra para Santo Estêvão, e foram gastos 7720 réis330, pelo que atendendo à distância percorrida e às dificuldades inerentes aos acessos, não seria de admirar a demora na chegada à igreja. A colocação da escultura no altar só deve ter ocorrido em 1751.

O retábulo do altar-mor da igreja de Santo Estêvão enquadra-se estilisticamente na acção de Mateus Vicente em intervenções posteriores, nomeadamente na igreja de São Francisco de Paula331, obra contemporânea de Santo Estêvão com o seu início em 1751.

A existência das colunas de capitel coríntio, o arco quebrado, a base das colunas com os anjos rematados por arcos contracurvados, mais delicados e de pormenor mais cuidado, em comparação com o existente na capela de Nossa

328

Em 1749, Negreiros encontrava-se doente, sendo também esta uma das razões apontadas para a sua substituição nas obras de Santo Estêvão.

329

Ver Anexo I, Imagens nºs 105 e 105 a.

330

Livros de despesa com a obra da igreja de Santo Estêvão, ano de 1750. Anexo II, Doc. nº

23.

Senhora da Conceição332, indicam a clara presença da intervenção do arquitecto e talvez explique o pagamento que tenha recebido em 1749, por este trabalho, dado que estas obras decorreram entre 1746-47.

Foram estas mesmas, que surpreenderam o infante D. Pedro, que governava a Casa do Infantado, precisamente nesta época.

Após a conclusão do altar-mor, seguiram-se as intervenções de pormenor na sacristia, nos caixotões de madeira, arco da capela, azulejos, “(...), a talha e

mais obra da igreja”, paga a Mateus Vicente em 1751.

Neste ano, o arquitecto executou a talha para a banqueta do altar da sacristia, a talha do painel da via-sacra, o painel e a cobertura da capela da sacristia, e toda a obra na capela, hoje conhecida como o cartório da igreja333.

Esta última conjuga todo o traço de Mateus Vicente, em talha dourada. Actualmente está dedicada a São Lourenço, mas na época era chamada de “nova sacristia”. Mais uma vez nos frisos do altar desta capela, surge-nos a assinatura em “M”, o remate típico do arquitecto com que assina os seus trabalhos. A capela apresenta um arco quebrado coroado com um querubim e toda uma talha trabalhada e semelhante à capela da Senhora da Soledade no interior da igreja.

Estas obras foram pagas em 1751 e saíram do risco de Mateus Vicente334. Em 1752 foi paga a importância referente à lâmpada de prata que se colocou na capela de Nossa Senhora da Soledade e o dourado da talha na referida capela, o que nos leva a concluir, mais uma vez, a sua autoria nestes trabalhos de pormenor e finais na construção de Santo Estêvão. Este foi o último pagamento que recebeu pelas obras executadas.

Em 1755, o livro de despesa da igreja refere danos em casas próximas e situadas junto à igreja, na rua do Paraíso e de Santa Marinha, e pertencentes à Irmandade, mas pouco ou nada refere sobre se a igreja de Santo Estêvão foi afectada pelo Terramoto de 1 de Novembro.

332

Ver Anexo I, Imagens nºs 107.

333 Ver Anexo I, Imagens nºs 108-111. 334 Ver Anexo II, Doc. nº 23.

De qualquer forma, os ajustes finais, feitos pela Irmandade de Santo Estêvão, em 1757, são apenas com o mestre pedreiro Manuel Dias.

Por esta época Mateus Vicente encontrava-se absorvido pelas obras de Queluz e pela campanha de restauro que encabeçou nos moinhos de maré situados no concelho do Seixal.

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