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3 CONCRETIZAÇÃO DA IGUALDADE: A QUESTÃO DAS

3.3 ASPECTOS POLÊMICOS DAS POLÍTICAS DE COTAS

3.3.1 Igualdade formal versus igualdade material

Esta primeira objeção relaciona-se especificamente com a possibilidade de violação do art. 3º, IV, da Constituição Federal, que estabelece como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos sem preconceito de raça ou cor, e do art. 5º, caput, que determina o tramamento igual de todos perante a lei. Esta questão foi abordada no capítulo anterior e será retomada nesse momento para fins de investigação da legitimidade normativa da política de cotas.

O ordenamento jurídico brasileiro insere-se no paradigma do Estado constitucional de direito. Este, como já referido, além de preservar as conquistas das fases anteriores de seu processo evolutivo, enunciando formal e abstratamente a igualdade em direitos e de tratamento perante a lei para todos, assume, em virtude do esgotamento do projeto liberal, um caráter comprometido com a demanda pela concretização dos direitos sociais. Nesse sentido, mais do que simplesmente melhorar as condições sociais de existência (MORAIS,

86 Sobre as principais objeções à política de cotas, ver também, entre outros, Rios (2008),

1996, p. 74), objetiva a transformação da realidade social ou, em outras palavras, do status quo.

O programa para esta transformação é dado pelos direitos fundamentais, cujo conteúdo, posto por uma constituição rígida, possui força vinculativa a todos os poderes do Estado e estabelecem que, de um lado, nem sobre tudo se pode decidir, nem mesmo por maioria, e, de outro, nem sobre tudo se pode deixar de decidir. Correspondem as primeiras às garantias negativas e as últimas às garantias positivas e apontam para um aspecto substancial dos regimes democráticos enquanto artifícios da promoção de igualdade (redução das desigualdades intoleráveis) e da dignidade (FERRAJOLI, 2006, 2007a; CADEMARTORI, S. 2006).

De todo modo, a igualdade é um princípio normativo, que, enquanto meta-direito individual, prevê o igual tratamento das pessoas apesar de serem de fato diversas, e, enquanto meta-direito social, que as pessoas devem ser tratadas tão iguais quanto possível e o fato de serem social e economicamente desiguais ser reconhecido que essas desigualdades intoleráveis removidas ou compensadas.

De acordo com o que vimos na subseção 2.3.1 (FERRAJOLI, 2001, 2007a), à igualdade formal correspondem garantias que reconhecem as diferenças entre as pessoas e justamente por esta razão demandam um tratamento igualitário, de modos a impedir que novas desigualdades sejam geradas. À igualdade substancial correspondem, por sua vez, dois tipos de garantias. De um lado, um conjunto de medidas destinadas a denunciar as diferenças enquanto fontes de privilégio e discriminação (nesse sentido, fala-se no estabelecimento de regras transitórias de atuação). De outro lado, as garantias que determinam o tratamento distinto sempre que um tratamento igual penalize as diferenças.

As políticas de ação afirmativa parecem transitar entre estes dois últimos tipos. Em primeiro lugar, enquanto denúncia de que as diferenças com fundamento na raça dos indivíduos, em virtude do passado escravista e discriminatório, constituem uma barreira ao pleno gozo dos direitos fundamentais por parte da população negra. Nesse caso, contribuem para a desnaturalização das relações sociais discriminatórias postas. Em segundo lugar, o tratamento desigual no caso da implementação das cotas raciais encontra justificação quando considerado que, tendo em vista a desigualdade social de fato, explicitada nos indicadores sociais apresentados no primeiro capítulo, o

tratamento absolutamente igualitário exclui essa parcela da população do acesso ao ensino superior.

Diante do exposto, importa confrontar as políticas de ação afirmativa em geral e de cotas raciais em particular, enquanto medidas que buscam a efetivação da igualdade substancial, com os critérios de verificação de violação da isonomia propostos por Celso Antônio Bandeira de Mello87 (1998). Nesse sentido, em primeiro lugar, os programas que estabeleceram cotas raciais não singularizam de maneira atual e definitiva um destinatário singular, mas, ao contrário, contemplam um grupo social, e, em segundo lugar, o critério discriminatório empregado está presente nas pessoas, qual seja, o de pertença racial ou étnica.

No que tange ao terceiro argumento, salienta-se que as medidas de ação afirmativa guardam pertinência lógica com a disparidade dos regimes empregados, uma vez que a “discriminação social”, que antepõe obstáculo aos usufruto de direitos por parte de grande contingente da população negra, “justifica a discriminação jurídica afirmativa” (RIOS, 2008, p. 194). Ademais, é amplamente aceito que a educação superior é importante elemento de ruptura inter-geracional dos ciclos de pobreza88. Como vimos na primeira parte deste trabalho, a pertença racial compõe relevante elemento de reforço da exclusão social.

Em quarto lugar, presente também a pertinência lógica em abstrato entre a medida implementada e os objetivos almejados, consistentes no caso na transformação social com a criação de novas condições de vida por meio do acesso ao ensino superior, ampliando a diversidade racial nas universidades e abrindo espaço para a redução das desigualdades fáticas intoleráveis (art. 3, I e III, e art. 170, VII, ambos da CF), bem como combate ao racismo e redução da discriminação com fundamento em preconceito de raça (art. 3º, IV, da CF). Estes são todos objetivos constitucionalmente prestigiados.

Finalmente, em quinto lugar, os critérios desequiparadores estabelecidos extraídos da interpretação das normas que instituíram os diferentes programas de ação afirmativa – sejam elas oriundas do legislativo ou dos conselhos universitários – são clara e evidentemente assumidos.

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Nesse momento desconsideraremos o órgão responsável pela implementação, ou seja, se o programa tem origem nos poderes legislativos ou nos conselhos universitários. Retomaremos esta questão no ponto 3.3.5.

Para finalizar, importa salientar, no mesmo sentido do exposto por Rios (2008), que o que se quer afirmar aqui é a compatibilidade das ações afirmativas, particularmente na modalidade de cotas raciais, com o ordenamento constitucional brasileiro. Contudo, deve-se considerar que o mandamento constitucional da igualdade substancial demanda aos poderes públicos que atuem no sentido da redução das desigualdades intoleráveis. Todavia, é evidente que compete à administração pública, nos seus diferentes níveis, a elaboração das estratégias que julgarem mais convenientes para a consecução dos fins constitucionais, tal como exposto.