• Nenhum resultado encontrado

3 CONCRETIZAÇÃO DA IGUALDADE: A QUESTÃO DAS

3.3 ASPECTOS POLÊMICOS DAS POLÍTICAS DE COTAS

3.3.3 O critério raça para escolha dos beneficiários

Pouco consenso tem havido em relação às políticas de ação afirmativa para a população negra no Brasil. Com efeito, a objeção relativa à escolha do critério de pertença racial é, ao lado daquela que indica a violação do princípio constitucional da igualdade, certamente a que gera maiores polêmicas. Esta tensão engloba diferentes argumentos: (a) a dificuldade de identificação dos beneficiários, em decorrência da miscigenação ocorrida no Brasil; (b) o entendimento de que a desigualdade no Brasil está associada com questões de classe e não tanto de raça; e (c) o recrudescimento do processo de exclusão dos brancos pobres.

A questão relativa à identificação dos beneficiários possui, por sua vez, dois aspectos. Em primeiro lugar, o método utilizado pela instituição para a definição de pertença racial; em segundo lugar, a inclusão dos pardos na categoria negros.

Em relação ao primeiro aspecto, no caso das cotas raciais, os candidatos geralmente devem apresentar uma auto-declaração na qual indiquem a qual grupo pertencem. Em alguns casos, é exigida também a entrega de fotografias ou atestados para confirmação das informações prestadas.

Osório (2004, p. 86-7) aponta a existência de basicamente três métodos de identificação racial: auto-atribuição de pertença (no qual o sujeito indica qual o grupo racial considera-se membro), hetero- atribuição de pertença (no qual um, ou mais de um, terceiro indica qual o grupo racial considera o indivíduo membro) e identificação por meio das técnicas biológicas com a análise do DNA.

Conforme já destacado na seção 1.1, o método da identificação por meio de técnicas biológicas, embora mais ao sabor da “objetividade científica” não se sustenta por duas razões principais. Em primeiro lugar, muitas dessas pesquisas não lograram identificar conclusivamente as raças através do código genético dos indivíduos. Em segundo lugar, ainda que o fizessem, o que realmente importa para fins de combate ao racismo e formulação de políticas públicas sensíveis à raça é o modo pelo qual a sociedade utiliza esse conceito para hierarquizar seus membros. Com efeito, “[a]o branco racista comum, pouco importa o fato de que geneticamente é praticamente igual ao negro que discrimina: bastam as diferenças visíveis da cor da pele, do cabelo e das feições92” (OSÓRIO, 2004, p. 93).

O IBGE utiliza os dois primeiros critérios. Entretanto, tanto a auto quanto à hétero-atribuição não são critérios absolutamente seguros. Com efeito, o principal problema envolve a variação social da cor, sendo extensa a literatura que aponta para o embranquecimento da população na medida em que se observa alguma forma de ascensão social. Essa questão poderia influenciar os dois métodos, uma vez que, por um lado, em decorrência da ideologia racista brasileira, os indivíduos mais abastados poderiam negar sua ascendência africana, mas, por outro, não há garantias de que um terceiro não possa incorrer na mesma situação. Como afirma Osório, “[n]o fundo, a opção pela auto ou pela hétero-atribuição é uma escolha entre subjetividades: a do próprio sujeito da classificação, ou a do observador externo” (2004, p. 96). O fato é que pesquisas analisadas pelo autor, umas nas quais as entrevistas indicavam sua pertença racial, outras nas quais o próprio entrevistador o fazia, indicam um elevado grau de concordância em relação à percepção quanto ao pertencimento racial.

No que se refere à inclusão dos pardos na categoria negros ou afrodescendentes, refere-se que estes são constituídos pela imensa população de mestiços, que são o resultado dos cruzamentos das raças branca, negra e indígena. Certamente os critérios de pertença a grupos são contingentes e suscetíveis de transformação, resultado de processos políticos e sociais bastante complexos e, como já referido, o resultado de campanhas de incentivo à afirmação de identidades tem contribuído para recuperar o orgulho de pertença racial.

92 Para ver mais sobre os problemas envolvidos na identificação biológica,

De acordo com Osório, o agrupamento de negros e pardos justifica-se, primeiramente, porque da análise das estatísticas sócio- econômicas de ambos os grupos, verifica-se um parâmetro uniforme de exclusão. Em segundo lugar, pelo fato de o preconceito os dois grupos são vítimas possuir a mesma natureza: em termos raciais, é pela parcela negra que são discriminados (2004, p. 114).

Feres Júnior (2006, p. 57) destaca que, na região sul do Brasil, 72% dos afrodescendentes consideram-se brancos. Esse fenômeno é explicado, pelo menos parcialmente, pela ideologia do branqueameno, já que muitos indivíduos buscam associarem-se a características valoradas positivamente pela sociedade, buscando assim escapar da discriminação. Para o autor, a

legitimidade das políticas de ação afirmativa no Brasil assentam-se em três fatos sociológicos muito claros: 1) o perfil sócio-econômico daqueles que se identificam como pretos e pardos é similar e, por seu turno, 2) significativamente inferior ao dos brancos; 3) juntas essas frações totalizam quase 50% da população brasileira (FERES JÚNIOR, 2006, p. 58).

Entretanto, manifesta receio na divisão da sociedade entre brancos e não-brancos. Em realidade, sua preocupação é que as políticas de ação afirmativa contemplem os auto-declarados pardos. Sua posição é a de que sejam observadas as categorias utilizadas e consagradas pelos institutos de pesquisa, como o IBGE, de modo que, eventualmente, possam servir como padrão programas em favor de outros grupos discriminados (2006, p. 59-60).

No que tange ao argumento de que a desigualdade social brasileira estaria mais relacionada a preconceitos de classe do que raciais, como visto no primeiro capítulo, todos os autores pesquisados (RIBEIRO, 1980, 2006; FERNANDES, 2007, 2008; PRADO JÚNIOR, 2004; NOGUEIRA, 1998) indicam que os problemas relativos mais graves relacionados à desigualdade social estão, efetivamente, vinculados à questão da classe. Todavia, a esse sistema de exclusão, indubitavelmente soma-se o preconceito racial, que, como já salientado, no Brasil é “de marca” (NOGUEIRA, 1998). Nesse sentido, não é mera coincidência que, sendo metade da população brasileira negra, grande parte dela seja pobre, discriminada e excluída.

Ademais, se os pobres são discriminados por serem pobres, não se pode deixar de salientar que a maioria desses são negros, que se tornaram ou mantiveram-se “pobres” em decorrência de uma herança da sociedade escravista que, de uma parte, mantinha-se a partir de pré- concepções racistas e, de outra, não incluiu, quando de sua abolição, o negro na ordem social competitiva.

Finalmente, em relação ao possível reforço na exclusão dos brancos pobres, Rios propõe que se pense em uma sociedade livre de racismo. Nessa situação,

a injustiça estrutural que beneficia a maioria branca não existiria e, via de consequência, os candidatos brancos menos qualificados não conquistariam os benefícios que lhes são propiciados, uma vez que estes postos acabariam sendo melhor distribuídos entre as diversas raças (2008, p. 183).

Esta situação hipotética nos permite concluir que as medidas de ação afirmativa racialmente consciente não diminuiriam as possibilidades de êxito dos brancos pobres, já bastante reduzidas. De outra banda, a pesquisa de Bowen e Bok (2004) demonstrou que as chances de um candidato branco ser admitido em um contexto racialmente neutro seria apenas pouco maior do que num sistema que desconsiderasse critérios raciais.

Não obstante, os programas de ação afirmativa que tem utilizado cotas conjugam favorecimentos a candidatos oriundos de escolas públicas e a membros de grupos étnicos discriminados, mormente negros e indígenas. Nesse sentido, é importante que as cotas estabelecidas, em particular às relativas à raça, mantenham proporcionalidade com a representatividade do grupo na região na qual a medida está sendo implementada. A utilização dos dois critérios parece reduzir muito a força deste argumento.

Considerando o exposto nesta subseção, importa reafirmar que o objetivo das cotas raciais é justamente nomear a raça como um problema a ser enfrentado, na medida em que complexos processos sociais estabelecem sistemas de pertença hierarquizada. Nesse sentido, o fato de os espaços sociais de maior prestígio ser frequentados por uma desproporcional maioria branca não é vista como uma questão de raça. Para se comprovar que não o é, a ocupação desses espaços passa a ser monitorada para que se assegure que efetivamente não o é. Entretanto,

como salienta Scott, “na aplicação das políticas de ação afirmativa, a raça permaneceu uma questão de „negritude‟ e não de „branquitude‟ (da mesma forma como o gênero era uma questão de mulheres e não de homens)” (2005, p. 25).