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III A EPIFANIA

No documento UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA (páginas 149-173)

As descobertas dos segredos do mundo abalam-nos, ao descobri-los, porque imaginamos então revelar-lhe o seu mistério e nele o seu infinito. Mas esse infinito é finito logo depois, e o mistério permanece. E foi reduzido a um qualquer real. Mas todo o real imediato tem já em si o mistério que se mede pela nossa interrogação. Uma pedra. Uma flor. Há assim de vez em quando um instante em que esse mistério explode em revelação, se condensa, se torna visível com um relâmpago e nos absorve a vida toda e em que tudo o mais é demais. Escutas neste momento um pássaro idiota que canta para ninguém. De que mais precisas para o mistério existir? E te comoveres até ao esgotamento de ti? Até não haver mais universo para lá?

O termo epifania está desde épocas muito antigas ligado a uma manifestação imediata, visível e poderosa do poder da divindade (invisível) que, assim, efectua uma modificação importante nas situações terrenas. O exemplo mais conhecido deste sentido do termo é a festa cristã da Epifania que celebra a manifestação da divindade de Cristo aos magos e consequentemente a chegada de um salvador à Terra. Neste tipo de epifania enfatiza-se a interpretação específica do significado final de uma experiência divina, tal como irá acontecer na conversão de S. Paulo na estrada de Damasco e nas Confissões de Santo Agostinho. Segundo o autor, estando uma tarde no jardim, ouve uma voz cantante que lhe ordena a leitura de um livro, a partir da qual todas as suas dúvidas se dissiparão e que ele interpretará, num processo mais característico do intelecto do que da percepção, como a voz de Deus. A conversão de Santo Agostinho estabeleceu um padrão para muitas conversões religiosas como por exemplo as dos Puritanos ao longo dos séculos XVII e XVIII, que se baseavam no reconhecimento de uma influência externa, interpretada como intervenção divina, agente de libertação dos aspectos pecadores, e de renovação através da graça e favor de Deus. Neste tipo de revelação ou iluminação mística (que não deve ser confundida com o reconhecimento ou "anagnorisis" teorizado por Aristóteles no capítulo 16 da Poética) para além de se valorizar o objecto revelado, invariavelmente de origem divina, como já referimos, é necessária a anulação do eu e o desprezo pelas sensações físicas ou a mortificação dos sentidos, funcionando a experiência de percepção aqui apenas como matéria prima conducente à interpretação.

No sentido secular, perfeitamente distinto do anterior, o termo epifania associa- se, em primeiro lugar, aos românticos que valorizaram o peso emocional das experiências de percepção reveladora, o processo mental que elas suscitam, a revelação sugestiva e não definitiva.

Já em meados do século XVIII Hume apresentava as noções de independência, originalidade e indivisibilidade dos momentos que se sucedem, um após outro, com origem nas nossas percepções e Rousseau alargava o mesmo conceito à recordação de determinados pontos do passado, que plenos de força e significado partiam de incidentes triviais e aliando-se à emoção o transportavam ao êxtase. Jay Brian Losey na

sua tese “Modern Epiphany from Wordsworth to Joyce”1 considera-o um percursor de

Wordsworth, Joyce e Woolf e da epifania moderna pelo facto de associar o registo dos momentos comuns que o impressionam profundamente ao comentário sobre a forma como eles lhe marcaram o crescimento da alma ou o desenvolvimento da consciência. Em Confessions e Reveries ele associa duas experiências separadas pelo tempo, integra- as na narrativa e transmite ao leitor o seu significado. É o que acontece no episódio das pervincas:

Je donnerai de ces souvenirs un seul exemple qui pourra faire juger de leur force et de leur vérité. Le premier jour que nous allâmes coucher aux Charmettes, Maman était en chaise à porteurs, et je la suivais à pied. Le chemin monte: était assez pesante, et craignant de trop fatiguer ses porteurs, elle voulut descendre à peu près à moitié chemin pour faire le reste à pied. En marchant elle vit quelque chose de bleu dans la haie, et me dit: Voilà la pervinche encore en fleur. Je n’avais jamais vu de la pervenche, je ne me baissait pas pour l’examiner, et j’ai la vue trop courte pour distinguer à terre les plantes de ma hauteur. Je jetai seulement en passant un coup d’oeil sur celle-là, et près de trente ans se sont passés sans que j’aie revu de la pervanche ou que j’y aie fait attention. En 1764, étant à Cressier avec mon ami M. du Peyrou, nous montions une petite montagne au sommet de laquelle il a un joli salon qu’il appelle avec raison Belle-Vue. Je commençais alors d’herboriser un peu. En montant et regardant parmi les buissons, je pousse un cri de joie: Ah! Voilà de la

pervenche! Et c’en était en effet. Du Peyrou s’aperçut du transport, mais il en

ignorait la cause; il l’apprendra, je l’espère, lorsqu’un jour il lira ceci. Le lecteur peut juger par l’impression d’un si petit objet, de celle que m’ont faite tous ceux qui se rapportent à la même époque.2

Sterne levantava a hipótese de que o cérebro humano pudesse apreender uma porção determinada de tempo, de extensão proporcional ao valor que tem para o indivíduo que a apreende. É, no entanto, Wordsworth quem nos apresentará as noções seminais de uma poética dos momentos de iluminação no Prefácio de Lyrical Ballads:

The principal object, then, which I proposed to myself in these poems was to choose incidents and situations from common life, and to relate or describe them throughout; as far as was possible, in a selection of language really used by men; and at the same time to throw over them a certain colouring of imagination, whereby ordinary things should be presented to the mind in an unusual way; and further, and above all, to make these incidents and situations interesting by tracing in them, truly though not ostentatiously, the primary laws of our nature: chiefly as far as regards the manner in which we associate ideas in a state of excitement.3

e no poema “The Prelude”:

There are in our existence spots of time Which with distinct pre-eminence retain A vivifying Virtue, whence, depress’d (...)

In trivial occupations, and the round Of ordinary intercourse, our minds Are nourished and invisibly repair’d, A virtue by which pleasure is enhanced, That penetrates, enables us to mount,

When high, more high, and lifts us up when fallen. This efficacious spirit chiefly lurks

Among those passages of life in which We have had deepest feeling that the mind Is lord and master, and that outward sense Is but the obedient servant of her will. Such moments worthy of all gratitude, Are scatter’d everywhere, taking their date From our first childhood.4

A epifania é, aqui, uma percepção, incidente, situação ou experiência curta, ocasional e vulgar, à qual se associam sentimentos e emoções interiores e que adquire, por isso mesmo um significado especial e revelador para aquele que a vive, dando origem à criação de novas imagens e formas de linguagem com o auxílio da imaginação ("luz auxiliar" do espírito) e da memória. Este processo, que gera um estado de excitação no poeta e no qual Wordsworth baseia a sua técnica e o conteúdo da sua poesia, leva por um lado a uma melhor compreensão da essência do objecto apreendido

(ponto de partida) e por outro revela aspectos fundamentais da sensibilidade, da emoção e da capacidade do receptor/poeta de valorizar a sua experiência e de a registar através da linguagem. O valor destas percepções situa-se não apenas no momento em que ocorrem (geralmente a infância), mas também num tempo posterior em que, de forma retrospectiva, despertam no espírito através da memória: depois de um período em que o espírito se encontra desocupado e tranquilo, um acontecimento visual, associado à actividade física (por exemplo o surgir de qualquer objecto), dá lugar a uma percepção súbita, surpreendente e tão poderosa ("flash upon the inward eye") que produz um estado de espírito impossível de ultrapassar. O objecto que originou a epifania é enfatizado e exaltado devido à associação a emoções e sensações de grande valor - Wordsworth descreve o que vê e como foi afectado por essa visão. Todo o processo conduz a uma melhor compreensão e a uma renovação da experiência individual, à recriação do passado e à evocação de sentimentos semelhantes nos outros.

Podemos distinguir dois tipos de epifanias em Wordsworth: a "epifania proléptica"5, que se baseia em recordações do passado, em que a mente, em resposta a um estímulo do presente, transforma aquela experiência em novos significados e a "epifania adelónica"6, menos característica no poeta, em que uma experiência poderosa de percepção é transformada imediatamente através de associações imaginativas, numa manifestação espiritual. Ambas descrevem um estado de consciência alterado em que Wordsworth procura sempre manter a relação entre o mundo exterior que desencadeia a epifania e o significado que dela resulta, como uma nova forma de ver as coisas.

Coleridge utiliza também o processo epifânico na sua poesia, explorando tal como Wordsworth as impressões e as emoções a ele associadas, mas fá-lo de forma mais psicológica, subjectiva, associada ao sonho e desligada do objecto que as desencadeou. Ao definir imaginação como uma capacidade dupla - por um lado

primária na capacidade da mente de apreender o mundo objectivo - e por outro secundária - ao criar, ao mesmo tempo, de forma imaginativa, uma realidade externa, Coleridge sublinha o valor do pensamento na transformação de um facto acidental num momento de grande significado. Aqui, qualquer percepção vigorosa se pode revestir de um significado revelador se for transfigurada pela mente sensível e pelas fantasias verbais do poeta que consegue, deste modo, tornar evidente o invisível, associando sentimentos e emoções diversos a uma única imagem e aos objectos que a desencadearam, captando, em tais momentos, tanto o fluir da experiência como o seu carácter ilusório. Este desenvolvimento através de uma série de associações mentais, da interacção do sonho com a memória e o devaneio, culmina numa epifania, geralmente de tipo adelónico, cuja imagem espiritual evidencia e reflecte novos significados e associações. O poema "Frost at Midnight", que parte das reflexões do poeta sobre a geada, junto à lareira, é um bom exemplo do processo. Como refere Ashton Nichols:

The powerful emotions that move throughout the poem are crystallized in the description of a natural process that corresponds to the mental process described in the poem. Like the frost, the mind has the capacity to solidify certain moments in time. Such moments, caught for an instant amid the otherwise transitory flow of consciousness, take on powerful feelings of significance. Out of such illuminated instants we draw 'lovely shapes and sounds' that mold the spirit. Traces of past and present in the mind are like the unseen vapour that produces the frost. In an epiphanic imagination, these mental contents coalesce in secret into powerfully felt verbal images. (...) Like the actual icicles, these vivid moments shine with a light of their own to the moon, which is seen as an image of the mind from which their light is actually derived. This insight is revealed in the literary epiphany.7

A valorização do momento mantém-se, embora de forma diferente, em Keats e em Shelley. O primeiro, ao analisar o processo de construção da alma ("soul making"), diz: "Nothing startles me beyond the Moment. The setting sun will always set me to rights - or if a Sparrow come before my Window I take part in its existence and pick about the Gravel"8. Shelley apresenta em A Defence of Poetry a sua experiência de momentos de fusão da emoção com a percepção, analisando-lhes a origem e efeitos e

relacionando-os directamente com o processo de criação poética. A epifania é, neste caso, um estado de espírito em que a mente funde as suas ideias, de forma imaginária, com objectos inanimados, transformando a experiência numa ideia pura e quase inatingível, o que na prática se traduz na ausência de imagens concretas. Apesar de esta visão intelectual poder não encontrar analogias no mundo material ou possibilidades de verbalização, o momento que produz o sentimento pode ser registado como uma epifania. Citamos o texto:

Poetry is not like reasoning, a power to be exerted according to the determination of the will. A man cannot say 'I will compose poetry'. The greatest poet even cannot say it; for the mind in creation is as a fading coal, which some invisible influence, like an inconstant wind, awakens to transitory brightness; this power arises from within, like the colour of a flower which fades and changes as it is developed and the conscious portions of our natures are unprophetic either of its approach or its departure. (...)

Poetry is the record of the best and happiest moments of the happiest and best minds. We are aware of evanescent visitations of thought and feeling sometimes associated with place or person, sometimes regarding our own mind alone, and always arising unforeseen and departing unbidden, but elevating and delightful beyond all expression: so that even in the desire and the regret they leave, there cannot but be pleasure, participating as it does in the nature of its object.9

Na epifania romântica, a revelação do invisível através do visível e do mundano reveste-se de um significado específico para o próprio poeta devido ao enfatizar da sua resposta particular a tal experiência e da transformação desta através da memória, da inteligência ou da sensibilidade em novos significados, cujos efeitos são apenas subjectivos na sua origem reflectindo uma visão do mundo partilhada por muitos. O tempo cronológico ("chronos"10) é secundarizado em favor do tempo psicológico ou imaginativo ("kairos"), aquele que, como Santo Agostinho refere nas Confissões, inclui os três tempos que existem na alma - o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras.

A partir do período romântico muitos foram os autores que, de formas diversas e sob outras designações, aludiram à intensidade de momentos de revelação que poderemos considerar epifânicos ou de alguma forma associados à epifania.

Em 1838 o americano R. W. Emerson, muito influenciado pelos românticos ingleses, escrevia:

Day creeps after day, each full of facts, dull, strange, despised things (...) presently the aroused intellect finds gold and gems in one of these scorned facts, then finds (...) that a fact is an Epiphany of God. (...)

The least fact to the [seeing soul] is full of meaning (...) A flute heard out of a village window, a prevailing strain of a village maid will teach a susceptible man as much as others learn from the orchestra of the Academy.11

Walt Whitman apresenta em alguns dos seus textos poéticos estados de transe de carácter em parte místico ou sexual e momentos de revelação:

I mind how once we lay such a transparent summer morning,

How you settled your head athwart my hips and gently turn’d over upon me, And parted the shirt from my bosom-bone, and plunged your tongue to my bare-stript heart,

And reach’d till you felt my beard, and reach’d till you held my feet. Swiftly arose and spread around me the peace of knowledge

that pass all the argument of the earth,

And I know that the hand of God is the promise of my own, And I know that the spirit of God is the brother of my own, And that all the men ever born are also my brothers, and the women my sisters and lovers,

And that a kelson of the creation is love,

And limitless are leaves stiff or drooping in the fields, And brown ants in the little wells beneath them,

And mossy scabs of the worm fence, heap’d stones, elder, mullein and poke-weed.12

Tennyson, apesar da dissonância de muitas das suas afirmações e da flagrante diversidade das interpretações dos críticos, refere-se com clareza a estados de transe ("trances"), que lhe alteram a consciência e ocorrem frequentemente em associação com o trabalho poético. Citamos uma descrição da experiência feita pelo próprio poeta e um excerto da obra que ilustra esta relação:

A kind of waking trance I have frequently had, quite up from boyhood, when I have been all alone. This has generally come upon me thro' repeating my own name two or three times to myself silently, 'till all at once, as it were out of the intensity of the consciousness of individuality, the individuality itself seemed to

dissolve and fade away into boundless being, and this not a confused state, but the clearest of the clearest, the surest of the surest, the wierdest of the wierdest, utterly beyond words, where death was an almost laughable impossibility, the loss of personality (if so it was) seeming no extinction but the only true life.13

So word by word, and line by line, The dead man touched me from the past, And all at once it seemed at last

The living soul was flashed on mine, And mine in this was wound, and whirled About empyreal heights ot thought, And came on that which is, and caught The deep pulsations of the world, Aeonian music measuring out

The steps of Time - the shocks of Chance - The blows of Death. At length my trance Was cancelled, stricken through with doubt. (...)

And sucked from out the distant gloom A breeze began to tremble o'er

The large leaves of the sycamore, And fluctuate all the still perfume, And gathering freshlier overhead,

Rocked the full-foliaged elms, and swung The heavy folded rose, and flung

The lilies to and fro, and said

‘The dawn, the dawn’ and died away; And East and West, without a breath, Mixt their dim lights, like life and death, To broaden into boundless day.14

Walter Pater, cuja influência no desenvolvimento do sentido secular de epifania no século XX é decisiva devido ao seu apego à valorização da pureza da experiência, apresenta-nos na obra Marius the Epicurean uma personagem que, ao acreditar no valor do momento presente e ao procurar reter esses pontos transitórios registando cenas num bloco-notas, faz uso desta técnica:

It was become a habit with Marius - one of his modernisms - developed by his assistance at the Emperor’s ‘conversations with himself’, to keep a register of the movements of his own private thoughts and humours; not continuosly indeed, yet sometimes for lengthy intervals, during which it was no idle self- indulgence, but a necessity of his intellectual life, to ‘confess himself’, with an intimacy, seemingly rare among the ancients; ancient writers, at all events, having been jealous, for the most part, of affording us so much as a glimpse of that interior self, which in many cases would have actually doubled the interest of their objective informations.

(…)

Revelation, vision, the discovery of a vision, the seeing of a perfect humanity, in a perfect world - through all his alternations of mind, by some dominant

instinct, determined by the original necessities of his own nature and character, he had always set that above the having, or even the doing of anything. For, such vision, if received with due attitude on his part, was, in reality, the being something, and as such was surely a pleasant offering or sacrifice to whatever gods there might be, observant of him.15

Por outro lado, na obra citada no capítulo anterior - The Renaissance, refere-se também claramente o momento epifânico:

Now it is part of the ideality of the highest sort of the dramatic poetry, that it presents us with a kind of profoundly significant and animated instants, a mere gesture, a look, a smile, perhaps - some brief and wholly concrete moment - into

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