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IV VIRGINIA WOOLF, KATHERINE MANSFIELD E CLARICE LISPECTOR ENQUADRAMENTO LITERÁRIO E

No documento UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA (páginas 173-200)

Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação para o suicídio.

(Clarice Lispector)

Life without work - I would commit suicide. The work is more important than life.

(Katherine Mansfield)

Of course, literature is the only spiritual and humane career.

O objectivo deste capítulo, tal como foi referido na Introdução, não é estudar as influências literárias, a concepção de arte e a relação com a escrita das autoras, em sentido lato, mas fazer a contextualização biográfica e literária do conceito de momento na obra de cada uma delas, procurando definir os seus contornos de forma clara e articulá-lo com a respectiva prática no género em análise.

As referências mais claras de Virginia Woolf (1882-1941) ao momento encontram-se na memória “A Sketch of the Past” publicada no volume Moments of

Being1 e no artigo ”The Moment: Summer’s Night” incluido na colectânea The

Moment and Other Essays2. O primeiro texto, de carácter mais autobiográfico explicita com muita transparência a dinâmica interior e efeito de tais momentos na vida e na arte da escritora. Eles iniciam-se com um “choque violento e súbito, tão violento que será recordado por toda a vida”. Virginia Woolf apresenta então três exemplos e um quarto algumas páginas adiante, todos seguidos de reflexões:

The first: I was fighting with Thoby on the lawn. We were pommeling each other with our fists. Just as I raised my fist to hit him, I felt: why hurt another person? I dropped my hand instantly, and stood there, and let him beat me. I remember the feeling. It was a feeling of hopeless sadness. It was as if I became aware of something terrible; and of my own powerlessness. I slunk off alone, feeling horribly depressed. The second instance was also in the garden at St. Ives. I was looking at the flower bed by the front door; “That is the whole”, I said. I was looking at a plant with a spread of leaves; and it seemed suddenly plain that the flower itself was a part of the earth; that a ring enclosed what was the flower; and that was the real flower; part earth; part flower. It was a thought I put away as being likely to be very useful to me later. The third case was also at St. Ives. Some people called Valpy had been staying at St. Ives, and had left. We were waiting at dinner one night, when somehow I overheard my father or my mother say that Mr. Valpy had killed himself. The next thing I remember is being in the garden at night and walking on the path by the apple tree. It seemed to me that the apple tree was connected with the horror of Mr. Valpy’s suicide. I could not pass it. I stood there looking at the grey-green creases of the bark - it was a moonlit night in a trance of horror. I seemed to be dragged down, hopelessly, into some pit of absolute despair from which I could not escape. My body seemed paralysed.

These are three instances of exceptional moments. (...) Two of these moments ended in a state of despair. The other ended, on the contrary, in a state of

satisfaction. When I said about the flower “That is the whole,” I felt that I had made a discovery. (...) I only know that many of these exceptional moments (...) seemed dominant; myself passive. (...) And so I go on to suppose that the shock-receiving capacity is what makes me a writer. This blow is or will become a revelation of some order; it is a token of some real thing behind appearances; and I make it real by putting it into words. It is only by putting it into words that I make it whole. (...) From this I reach what I might call a philosophy; (...) that behind the cotton wool is hidden a pattern; that we - I mean all human beings - are connected with this; that the whole world is a work of art; that we are parts of the work of art.(...)

What then has remained interesting? Again those moments of being. Two I always remember. There was the moment of the puddle in the path; when for no reason I could discover, everything suddenly became unreal; I was suspended; I could not step across the puddle; I tried to touch something...the whole world became unreal. (...) Again I had that hopeless sadness; that colapse I have described before; as if I were passive under some sledge-hammer blow; exposed to a whole avalanche of meaning that had heaped itself up and discharged itself upon me, unprotected, with nothing to ward it off, so that I huddled up at my end of the bath, motionless. I could not explain it.3

Encontramos neste texto alguns dos elementos fundamentais da poética de Virginia Woolf articulados com o conceito de momento: a importância da capacidade de “se sentir chocado”, a noção da existência de uma realidade por detrás das aparências, a busca da totalidade através da escrita e da visão unificadora do artista (a única capaz de captar e transmitir um instantâneo da obra de arte escondida por detrás dos factos diários), a noção de símbolo. Mas, acima de tudo, temos neste texto uma descrição pormenorizada do carácter casual e dominador dos referidos momentos.

O texto “The Moment: Summer´s Night” não apresenta o momento como portador de uma revelação, mas procura explicar o seu significado e composição de forma detalhada. Ele inclui impressões sensoriais e visuais, o lado emocional e dissolve-se (ou inclui-se no fluir do tempo) ao tornar-se elemento integrante da escuridão cega (“eyeless dark”) ou dos golpes do vento:

To begin with: it is largely composed of visual and of sense impressions. The day was very hot. After heat, the surface of the body is opened, as if all the pores were open and every thing lay exposed (...). Then the sense of the light sinking back into darkness seems to be gently putting out (...). Then the leaves shiver now and again (...).

But this moment is also composed of a sense that the legs of the chair are sinking through the centre of the earth (...). But that is the wider circumference of the moment. Here in the centre is a knot of consciousness.(...)

All this shoots through the moment, makes it quiver with malice and amusement; and the sense of watching and comparing; (...)

Nothing can be seen. (...)

To be consumed; to be swept away to become a rider on the random wind; (...) to be part of the eyeless dark (...).4

No artigo “To Spain” Virginia Woolf põe em relevo um outro aspecto do momento - a sua intensidade e a noção de paragem no fluxo do tempo:

Try to recall the look of London streets seen very early, perhaps very young, from a cab window on the way to Victoria. Everywhere there is the same intensity, as if the moment, instead of moving, lay suddenly still, became suddenly solemn, fixed the passers-by in their most transient aspects eternally.5

Em “Moments of Vision”, escrevendo a propósito de uma obra de Pearsall Smith, diz:

It is his purpose to catch and enclose certain moments which break off from the mass, in which without bidding things come together in a combination of inexplicable significance to arrest those thoughts which suddenly, to the thinker at least, are almost menacing with meaning. Such moments of vision are of an unnnaccountable nature; leave them alone and they persist for years; try to explain them and they disappear; write them down and they die beneath the pen.6

Gostaria ainda de recordar o extracto do diário, frequentemente citado, em que a autora fala sobre a saturação de cada átomo do momento:

The idea has come to me that what I want now to do is to saturate every atom. I mean to eliminate all waste, deadness, superfluity: to give the moment whole; whatever it includes. Say that the moment is a combination of thought; sensation; the voice of the sea. Waste, deadness, come from the inclusion of things that don´t belong to the moment.7

O conceito de momento é, como tinhamos visto no capítulo II 2, uma das traves mestras do ambiente modernista, uma vez que parte de novas concepções de tempo e de espaço na narrativa. Alguns dos autores que mais marcaram a mudança exerceram uma influência muito particular e por vezes pessoal em Virginia Woolf, que julgamos relevante salientar.

Dois dos romancistas que, pertencendo a uma geração anterior, mais influência terão tido nas primeiras experiências de Virginia em relação à epifania, foram T. Hardy

e J. Conrad. Ambos usam a expressão “moments of vision”, embora Hardy não utilize esta técnica como um elemento essencial como faz Conrad, e ambos são elogiados pela

escritora em relação ao referido aspecto. No artigo “The Novels of Thomas Hardy”8

Virginia declara que a expressão momentos de visão descreve passagens de espantosa beleza e força, introduzidas de forma imprevisível para o leitor e incontrolável para o autor, surgindo como cenas que se destacam do conjunto. Estas cenas, nas quais todos os sentidos participam, exercem sobre aquele um encantamento que virá a desaparecer tal como surgiu. No artigo “Lord Jim” escreve:

That, so it strikes us, is the way in which Mr. Conrad’s mind works; he has a ‘moment of vision’ in which he sees people as if he had never seen them before; he expounds his vision, and we see it, too. These visions are the best things in his books. In “Lord Jim” particularly, how they crowd about us, these wonderful figures - (…) - with their strange experiences all laid bare for an instant before, just as they come from darkness, they fade into darkness again! The gift of seeing in flashes is, of course, a limitation as well as a gift; it explains what we may call the static quality of Mr. Conrad’s characters.9

De Quincey é outro dos autores admirados por Virginia. Segundo escreve no artigo “Impassioned Prose”, a obra Suspiria de Profundis contém passagens que são descrições de estados de espírito, nos quais, com frequência, o tempo se prolonga miraculosamente e o espaço se expande também miraculosamente10.

Ainda na geração anterior temos de referir Tchekov, o herdeiro de uma importante tradição que muito veio a marcar a literatura inglesa. Esta influência, que parece também ter atingido a Europa como uma febre a partir do início do século, iniciou-se em Inglaterra ainda antes da década de setenta, embora com pouca resposta do público. Vários periódicos, entre os quais o famoso Blackwood´s Edinburgh Magazine começaram a publicar artigos e traduções da literatura russa a partir da década de quarenta. Gogol e Turgenev são apresentados ao público inglês cerca de quinze anos mais tarde. A partir de 1854 os contos e romances deste último autor surgem com uma frequência cada vez maior em antologias e periódicos ingleses e

americanos, o que o transforma no primeiro escritor russo a ter sucesso na Europa. Turgenev visitou Inglaterra por diversas vezes tendo conhecido figuras literárias como C. Dickens e G. Eliot e influenciado profundamente outras como Henry James. As primeiras traduções de Dostoievsky aparecerão a partir de 1881, as de Tolstoi posteriormente e as de Tchekov a partir de 1903. As séries de traduções realizadas por Constance Garnett (entre 1912 e 1920) de todos os autores referidos, assim como o livro de J. Middleton Murry - Fyodor Dostoevsky, - publicado em 1916, vieram enraizar definitivamente o interesse da comunidade literária inglesa pelas obras russas.

Virginia Woolf conhecia profundamente esta literatura e admirava-a. Leonard Woolf traduz em colaboração com S. S. Kotelianski e publica em Hogarth Press em 1921 a obra Notebooks of Anton Tchekhov e a própria escritora em colaboração com o mesmo autor, traduz Talks with Tolstoi de Goldenveizert e Tolstoi´s Love Letters em 1923. No ensaio “The Russian Point of View”11 a escritora sublinha a inconclusividade da narrativa, patente essencialmente em Tchekov, a preocupação com a análise da alma, a principal personagem da ficção russa, revelada tanto por Tchekov como por Dostoievsky e a capacidade de se interrogar sobre o significado da vida, mais evidenciada em Tolstoi. O seu interesse por Turgenev é-nos revelado através do diário onde compara este autor com Dostoievsky - o primeiro defende que o escritor deve apresentar apenas o essencial e deixar o leitor construir o resto, o segundo que se deve fornecer ao leitor o máximo de ajuda e sugestões. Embora Gilbert Phelps considere que

os métodos de Turgenev correspondem com frequência aos de Virginia Woolf12,

interessa-nos mais sublinhar aqui o impulso recebido de Tchekov, cujos contos serviram de exemplo para muitas das reflexões feitas sobre ficção moderna e em cuja obra as personagens são reveladas frequentemente através de um “flash”.

Profundamente integrada num mundo de relações e amizades de carácter social e literário, a escritora recebeu de muitos dos seus contemporâneos uma influência determinante. James Joyce foi um deles. No ensaio “Modern Fiction” Virginia faz uma avaliação positiva do trabalho deste autor, elogiando-lhe a sinceridade de intenções, a espiritualidade, a preocupação com o revelar dos reflexos da chama interior que envia as suas mensagens ao nosso cérebro, a coragem ao abandonar a coerência, tão fundamental para as anteriores gerações de escritores, a originalidade de um trabalho que procura apresentar a vida em si mesma. A desaprovação que expressa no diário em relação a Ulysses traduz-se na afirmação do ensaio de que, mesmo que consideremos o trabalho de Joyce difícil ou desagradável, a sua importância não pode ser negada. Ambos procuraram mostrar o momento cheio de intensidade e significado em que a consciência individual é impressionada por uma imagem externa, explorando a experiência da sua percepção pela personagem e os seus efeitos - geralmente a revelação de uma realidade ou verdade de grande valor.

Proust é outro dos autores fundamentais no traçado de um contexto biográfico do “momento”. A própria Virginia reconhece a sua influência. Em 1925, ao terminar Mrs. Dalloway escreve:

I wonder if this time I have achieved something? Well, nothing anyhow compared with Proust, in whom I am embedded now. The thing about Proust is his combination of the utmost sensibility with the utmost tenacity. He searches out these butterfly shades to the last grain. He is as tough as catgut & as evanescent as butterfly’s bloom. And he will I suppose both influence me & make me out of temper with every sentence of my own.13

Quatro anos mais tarde, no ensaio “Phases of Fiction”14 fala detalhadamente das qualidades de Proust, sobretudo da subtileza e multiplicidade de significados e cambiantes da sua obra, da obliquidadade que pode torná-la difícil, da sua sensibilidade “porosa” ao universo, do seu espírito aberto a tudo o que sente. Ambos utilizam a

memória de certos momentos para evocar um passado intimamente relacionado com o presente.

No grupo de Bloomsbury, já referido no capítulo II. 2 e no qual podemos dizer que Virginia “cresceu” intelectualmente, a escritora encontrou no filósofo G. E. Moore e nos críticos de arte Roger Fry e Clive Bell, bases filosóficas e estéticas que poderão ter sustentado o seu trabalho. G. E. Moore era o mentor desta elite e o aspecto da sua filosofia mais marcante para o estudo da problemática do momento é a noção de “states of consciousness” e de “organic whole”. Para poder avaliar correctamente o “valor intrínseco” ou o grau de qualidade (”goodness”) de qualquer coisa é necessário considerar que as suas partes devem ser formadas por um todo orgânico altamente complexo. A percepção de um objecto belo é uma totalidade composta por um lado pelo estado de consciência e por outro pelo objecto em si. Os bens mais valiosos que podemos conceber serão os estados de consciência identificados com as “relações

humanas ou com o fruir de um objecto belo”15. Moore utiliza para descrever esses

estados o termo “diáfano”16 - uma variante da imagem de William James de “halo” ou

“penumbra” que envolve a parte consciente da mente. Virginia apresentará uma imagem semelhante na descrição do “moment of being” como “a luminous halo, a semi transparent envelope”17.

Um outro elemento do grupo, John Maynard Keynes descreve a noção de “states of mind” de uma forma bem interessante:

These states of mind were not associated with action or achievement or with consequences.They consisted in timeless, passionate states of contemplation and communion, largely unattached to ‘before’ and ‘after’. Their value depended, in accordance with the principle of organic unity, on the state of affairs as a whole which could not be usefully analised into parts.18

A questão do peso da influência de Moore não encontra unanimidade por parte da crítica. John Mepham, por exemplo, defende em Virginia Woolf - a Literary Life19

que a escritora não foi de modo nenhum sensível à filosofia daquele autor e que a sua prosa poética e cheia de significados ambíguos nada tem a ver com a preocupação com a verdade e a clareza de Moore, referindo para o provar excertos de diários e cartas.

Clive Bell, no seu livro Art20 introduz a expressão “significant form” afirmando que, quando um qualquer indivíduo tem “uma visão súbita da paisagem como uma forma pura”, nesse momento vê “com os olhos de um artista”. Depois explica que quando um artista autêntico olha para os objectos, apercebe-se deles como formas puras, relacionadas entre si e sente uma emoção. Estes são os seus momentos de inspiração em que procura expressar o que sentiu. Existe aqui, tal como Beja refere, uma enorme semelhança com a descrição que Joyce faz do terceiro momento de apreensão do objecto estético.

Para Roger Fry a criação começa com a visão penetrante do artista, que procura a verdade e a beleza, mas também transmite os seus estados de espírito. O problema central deste consiste em relacioná-los com a visão e chegar a uma obra de arte una e coerente que também apresente a realidade com novos significados. A transmissão dos próprios estados de espírito baseia-se na “vida da imaginação”, que Fry compara a um espelho e distingue da “vida actual”. Segundo ele, quando assistimos a um acontecimento a nossa “vida actual” reage à cena enquanto a nossa “vida imaginativa” a encara como uma representação do acto de existir distanciando-se emocionalmente e privilegiando a observação e a percepção (cf. os contos “The Lady in the Looking- Glass” e “An Unwritten Novel” analisados no capítulo V). A arte é o factor que estimula e controla essa nossa “vida imaginativa” e a unidade é, como já sugerimos, um elemento essencial na contemplação da obra de arte. Esta deve resultar de uma transformação, ou seja da criação de estruturas que partem de objectos naturais mas constroem uma realidade emocional sem referente concreto. A arte não é uma cópia do

mundo real mas uma transfiguração dele feita pelo artista. Esta teoria é adaptada à literatura por Charles Mauron, também já referido no capítulo II. 2, que Virginia conheceu e a cujas conferências assistiu. Mauron considera que existem “volumes psicológicos” em literatura - uma sensação, uma emoção, um estado de espírito, qualquer realidade psicológica, que o autor possa descrever - que correspondem aos volumes plásticos da arte visual, entre os quais o artista estabelece relações significativas. Estes momentos (“moments of the spirit”), as personagens, as situações e as suas complexidades são, segundo Mauron, tudo o que a literatura abarca21. Virginia Woolf terá herdado de Fry e de Bloomsbury a preocupação de examinar a experiência individual comunicando-a aos outros e a crença de que a compreensão do mundo emocional e interior do homem se poderia fazer através da arte.

Neste âmbito referiremos um último autor cujo pensamento teve enormes repercussões, quer sobre Virginia, quer sobre toda a geração pré-modernista e modernista: Walter Pater. Perry Meisel, no seu excelente e pormenorizado estudo do tema, começa por tentar reconstruir as circunstâncias biográficas em que Virginia teria,

No documento UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA (páginas 173-200)

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