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Capítulo IV – Análise dos filmes: Os Cafajestes, A Falecida e O Desafio

4.1. Os cafajestes

4.1.6. Imagens femininas X imagens masculinas

O tratamento irreverente dispensado às mulheres é aparentemente invertido, em uma cena na qual a dupla explicita que “uma mulher de classe, deve

ser conquistada com flores”: Jandir quebra o vidro de uma floricultura com a coronha do revólver, e Vavá faz enormes malabarismos para conseguir entregar orquídeas a uma mulher, com ar jovial e alegre, que passa dirigindo um carro luxuoso. Numa manobra em que os dois carros ficam lado a lado, em alta velocidade, Vavá se equilibra perigosamente no capô e oferece, com um elogio – “toma, gostosa” – as orquídeas. Pergunta, aos gritos e de maneira bem humorada, qual o telefone do cachorrinho da moça, fazendo-a sorrir displicentemente sem dar muita importância ao fato e sair na frente, acelerando. Um deles diz: “é assim que se conquista uma mulher de classe”. Aqui há, a meu ver, representações de uma ironia, um deslocamento de significados. Noutras palavras, a idéia segundo a qual “mulheres são flores”, ou a associação entre a delicadeza atribuída às flores e a delicadeza atribuída à figura feminina, essas idéias pertencem a outro “quadro”, a outro referencial de mulher. Assim, eles deslocam a frase, o conjunto de palavras e, recorrendo a outras linguagens (em que a gestualidade tem uma força especial), imprimem nessa frase o sentido de deboche, de um certo sarcasmo (permanecendo a dominação masculina), formulam um “elogio” que pode ser visto também como um tipo de “agressão”. Frente a esse quadro, chama a atenção o semblante de Leda, observando silenciosamente a atitude dos dois homens, e também dirigindo seu olhar para a moça do carro. Sua expressão é de raiva e despeito. Assim, se uma “mulher de classe” deve ser conquistada com flores, uma mulher “sem classe” pode ser desconsiderada, já que não se comporta como uma “mulher decente”. Esse “de classe” aí, pode se associar também a uma suposta riqueza ou a “poder aquisitivo” mais elevado, uma vez que a mulher passa em um carro de luxo. (O grande sonho deles é o “ter”; não se pode esquecer).

Em outra cena, a câmara focaliza a estátua de uma mulher, inclinada e fincada no meio do mar (simulando a estátua da Liberdade); segundo Leda, reza a lenda que somente quando por ali passar uma “mulher honesta a estátua acaba de cair”; um dos homens comenta que cada um ou cada país tem a torre de Piza que merece. Aqui, vemos um contraponto: estátua da liberdade, no caso significando maior liberdade que pode ser desejada pela mulher; mas, ao mesmo tempo, as mulheres não são honestas. A estátua encontra-se envergada porque

as mulheres não são “direitas”; ou seja, a estátua inclina-se diante do peso de suas ações, compreendidas como transgressoras, inadequadas. Transmite-se, aqui, a idéia, segundo a qual, a possível liberdade almejada traz conseqüências intoleráveis, a ponto de fazer estremecer – no caso simbolizado pela inclinação da estátua – os valores sociais. O que significa quando “passar uma mulher honesta”? Por que ela está inclinada? Pode-se pensar em alusão a um tempo em que as mulheres tentam mudanças de comportamento, tentam romper com certos valores – anos 60, queima de soutiãs, etc – e isso tudo é visto por certos homens (e mulheres) como prática de adultério, infidelidade, ameaça à estrutura familiar, à autoridade paterna, enfim, ameaça à ordem vigente.

É sugestiva a quantidade de mulheres presente neste filme: além das personagens centrais, temos a prostituta das cenas iniciais; os manequins da vitrine; a moça que vinha andando na rua e recebe um tratamento irreverente; a mulher do carro de luxo, a máscara de um rosto feminino; o modelo fotográfico; as duas mocinhas interioranas; a mulher meio deitada de maiô preto; a estátua inclinada de uma mulher; fotografias de mulheres nuas; a passagem de um enterro que Vavá supõe ser de uma moça que morreu virgem; notícias sobre Brigitte Bardot.

Essa notícia sobre a atriz é transmitida pelo rádio, na seqüência final, e reporta-se à contribuição de seus filmes para o orçamento francês. O locutor anuncia: “Saigon. Sem Brigitte Bardot o orçamento francês estaria em dificuldades. Afirma o Jornal do Vietnã que o êxito das fitas de B.B. permite que a França obtenha enormes somas de divisas”. À época, a imagem da atriz estava inteiramente associada a sensualidade e sexualidade. Por este exemplo, percebemos que há uma diversidade de representações das figuras femininas, assim como, também predomina, por parte das personagens masculinas, um tratamento marcado pela irreverência, insensibilidade e humilhação. Por seu turno, os traços que compõem as personagens femininas não são homogêneos: elas reagem diferentemente às diversas situações, até porque elas interpretam identidades diferentes, configuradas diferentemente. Trata-se mesmo de “figuras

femininas” e não de “a figura feminina”, pois esta não existe. É nessa perspectiva, qual seja, de atribuição de contradições e ambigüidades do enredo e imagens, que são construídas as figuras femininas.

Assim, os diversos e variados tratamentos dos homens em relação às mulheres, percebidos através do enredo e da associação de imagens contribuem para reforçar a idéia segundo a qual “o filme revela o mau caráter do protótipo do carioca, associados no deboche, no engano e na violação das mulheres”. Como acontece, por exemplo, com o tratamento dispensado à prostituta; às personagens centrais; a uma moça que, ao cruzar com eles, ouve a voz de Vavá gritando, “ela está de calcinha preta, que eu vi”; às jovens que, inadvertidamente, entram no Forte em que os dois se encontram, e são “sabatinadas” por eles. Jandir, com o catecismo que havia tirado das mãos de uma delas, faz inúmeras perguntas, de forma irônica, a respeito de determinados princípios religiosos. À outra, Vavá se acha no “direito” de indagar sobre sua vida pessoal:

- Onde você mora? Você tem pai? O que eles fazem? – Meu pai é pescador. – O que você almoçou hoje? Quanto ganha seu pai? – Depende da pesca; minha mãe ajuda lavando roupa. - Você é virgem?. Diante da hesitação da moça, Vavá insiste: “é ou não é? Foi na praia, foi o namoradinho?”. Ela se sujeita a esse interrogatório e responde. “Foi, sim senhor”.

O homem invade a intimidade da moça, e ela, humildemente, o trata como “senhor”. Interessante acentuar que essa mesma moça, ao chegar ao forte, não se intimida diante deles, pergunta se eles têm fósforo, fala com um tom de voz firme. Mas, no momento dessa “invasão”, fica acanhada, e responde em voz baixa. Mais uma vez, reafirma-se ou indica-se quem tem força, quem manda.

Aqui se percebe que o filme constrói diferentes representações do feminino. Socialmente, há todo um conjunto de valores de acordo com os quais “a mulher” estaria colocada em determinados lugares, comportando-se de determinada maneira, exercendo determinadas práticas. Estaria aí concebida uma figura

abstrata, genérica, totalizante, de “a mulher”. Em relação a essa figura, também são pensados lugares no plano da intimidade (como esposa, como mãe, como filha), portanto, no plano da vida privada. E, a estas imagens são associadas noções de pureza, imagens da mulher virgem, pura. Neste filme, a representação da virgindade, vem perpassada por contradições e ironia: “você é virgem?”; “Vilma não é mais virgem”; “Eu sempre achei que esse negócio de virgindade faz mal a saúde. Vai ver que a pobrezinha morreu porque era virgem”. Simultaneamente, são construídas também outras imagens, cujo espaço de “permanência” seria o lugar público: a “mulher da vida”, a prostituta, a “mulher-amante”... Estas, por sua vez, evocam diferentes formas de transgressão. Os Cafajestes veicula representações de comportamentos masculinos (e femininos), na interação entre essas figuras e representações da configuração de dramas vivenciados por homens e mulheres enquanto “atores” de um contexto social.