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Capítulo IV – Análise dos filmes: Os Cafajestes, A Falecida e O Desafio

4.1. Os cafajestes

4.1.9. Jandir perde sua arrogância

- Vavá, você já dormiu no trem da central, fazendo “pingue-pongue” a noite toda, indo até Campo Grande sem parar? É fogo! As janelas não têm vidro, entra um arzinho encanado a noite inteira que não deixa ninguém dormir. E fome, Vavá, fome, já passou? Sabe estender a mão para pedir? Sabe cortar o frio com jornal? Roubar? O que você sabe para ser pobre, rapaz? Vavá responde: Posso trabalhar. – Você? – E você, sabe fazer o que? – Eu já estou até aqui, oh! Casca de batata, lixo. Comigo é diferente; sempre tive menos do que tenho. Você está entrando na fossa assim: olha a sua mão, só serve pra isso, pra segurar um copo de uísque.

A personagem Jandir, sempre representada como possuidora de atitudes frias e insensíveis, diante da vida e das mulheres, nesse diálogo traz alguns indícios de elementos reveladores de uma outra dimensão de suas atitudes. Jandir expõe suas experiências e sua revolta diante da vida, e seu relato poderia evocar frieza e “coragem” no enfrentamento dos dissabores da vida, de sofrer fome e frio e, ainda assim, continuar “lutando” pelo que ele quer. Vavá, sim, é fraco, covarde, dedicando-se, a vida toda, a “segurar um copo de uísque”. A tonalidade8 de sua 8A noção de tato significa, entre outras definições, o cuidado de falar sem causar ofensas. No processo comunicativo, o “tato” refere-se a elementos verbais, que são os acentos e entonações. “As palavras estão sempre saturadas de acentos e entonações”. A entonação de Jandir revelou, naquele momento, um homem preocupado, interessado por Leda, exatamente aquela que seria, depois, violentamente desrespeitada por ele. No cinema, o tato se expressa através dos elementos extra-verbais do discurso lingüístico. No cinema sonorizado, isso é possível, pois, além de ouvirmos “as palavras, com seu acento e entonação (também), testemunhamos a expressão facial ou corporal que acompanha as palavras: postura de arrogância ou resignação, a sobrancelha erguida, o olhar de intimidação ou de ironia, a olhadela irônica que modifica o sentido ostensivo de

voz, por sua vez, o denuncia, revelando um homem magoado e ressentido com suas experiências: “Sempre tive menos do que tenho”. Percebe-se neste depoimento a maneira pela qual os dramas pessoais se vinculam aos dramas sociais, como essas duas dimensões estão intimamente articuladas. Trata-se, aí, de situações enfrentadas que dizem respeito a questões sociais – fome, condições de vida sub-humana, sem ter onde morar, sem ter como sobreviver - responsáveis por uma situação de desamparo diante de vida.

Essa seqüência, transcorrida em um descampado, marca, a separação de classe social entre as duas personagens, simbolizada por uma cerca de arame. (Logo no início do filme essa diferença de classe social é apontada, num momento em que Jandir pede para dirigir o carro, e isso é negado por um simples gesto de Vavá. A vergonha de Jandir é percebida por sua expressão facial). Jandir é focalizado em primeiro plano ao fazer suas queixas; do outro lado, também “dentro do foco”, encontra-se Vavá, que apenas escuta; ao fundo, também com nitidez, observamos as imagens de um fotógrafo que tira fotos de um modelo. Nesse cenário, estabelece-se uma oposição entre o que ouvimos e o que vemos; enquanto Jandir fala, observamos o esforço do fotógrafo em examinar a luz para tirar fotos de um modelo. Depois, Jandir e Vavá encontram-se do “mesmo lado” , como a indicar uma identidade de interesse, expresso, agora, na execução de um plano a ser aplicado à prima deste último.

A seqüência final é composta de um único plano, sendo a personagem focalizada, de frente, pela câmera. Jandir abandona o carro e, firme e impassível, caminha pela estrada9: qual o significado do gesto de Jandir? Significa o

abandono de algo tão almejado como alcançar status social? Acalentou o sonho “de dirigir um conversível”. Poderia ser uma sugestão de uma mudança de

um enunciado”(STAM, 1993, p. 159).

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No momento do lançamento do filme, o produtor Jece Valadão cortou essa cena, segundo ele, por motivos financeiros: “aquela caminhada” encarecia o filme, que já se arrastava em sua realização para além do prazo acordado. Isso foi motivo de agressão física entre ele e o diretor Ruy Guerra, conforme revelou Jece Valadão em uma entrevista concedida a Pedro Bial, no Canal Brasil, em 2005. Aqui nos interessa sublinhar o inconformismo manifestado pelo cineasta, dada a significação que esse segmento desempenha no filme.

perspectiva ou de mentalidade, de uma transformação da personagem, de uma outra concepção de mundo, depois da experiência do dia anterior? Ou, poderíamos pensar em algo bem mais prosaico, tal como a simples busca de gasolina? Poderia, assim, se pensar que sua “condição de cafajeste” (de alguém sem caráter, que gosta de se dar bem), estaria negada, a partir dessas últimas imagens? Ele estaria livre dessa “pecha”? Quando Leda encontra-se ao seu lado, no carro, demonstrando uma infinita tristeza, Jandir confirma sua atitude de insensível, de durão, de frio, de alguém que não se rende aos sentimentos.

A caminhada em linha reta indica uma direção, um rumo determinado, ao contrário dos constantes deslocamentos das personagens ao longo do filme. Mas não está explicitado, aí, “um recado didático”, indicando uma mudança de concepção de mundo da personagem. Não se sabe se seus anseios de ascensão social foram negados pelo fato de abandonar o carro, considerando que não existe uma mensagem fechada. Há, apenas, a idéia de “que é preciso caminhar”, de que existem outras possibilidades, embora não sejam explicitadas, já que “nada confere direção a sua trajetória” (XAVIER, 1983).

A caminhada de Jandir é acompanhada por notícias – nacionais e internacionais – transmitidas pelo rádio, abordando os mais variados temas: de Bogotá, sobre futebol, referindo a “boa atuação do quadro do Palmeiras, que derrotou o time oficial do país; Punta Del Este: o Chanceler San Thiago Dantas proferiu uma verdadeira aula de direito internacional e firmou os seguintes pontos: o governo brasileiro está alinhado ao campo da democracia (...) Reconhece a Cuba ou a qualquer outra nação, o direito de escolher o sistema ou o seu próprio governo; Recife: Fome no Nordeste; 50 mil favelados fazem hoje a marcha da fome”.

As notícias podem significar que o filme está alinhado aos grandes problemas sociais, enquanto os problemas pessoais, os dramas íntimos vivenciados pelos quatro personagens não têm tanta importância. As notícias relativas ao Brasil, além do futebol – paixão do brasileiro – tratam de política, de democracia, de fome, temas privilegiados pelo Cinema Novo. Poder-se-ia

perguntar se o filme estaria dizendo: diante de tantos problemas importantes e graves, as questões pessoais, as experiências relativas à intimidade, são de menor importância. Por outro lado, poderíamos perguntar por que escolher como enfoque exatamente a vivência dos dramas íntimos? Uma possível resposta é estabelecer um vínculo entre os dramas pessoais e os dramas íntimos: eles estão articulados.