• Nenhum resultado encontrado

A transformação e a metamorfose indicam algo que deixou de ter sua funcionalidade no presente e após sua desativação pode novamente ser ativado em outro tempo. Portanto, se inicialmente falamos sobre o reconhecimento de alguém que não víamos há muitos anos, e que, apesar das várias transformações podemos reconhecer através dos traços essenciais que permaneceram, gostaríamos de chamar a atenção para algumas questões que aproximam a arte de Kiefer ao universo romântico. Para isto é muito interessante perceber que para o artista todo seu

45

pensamento se une a uma única questão – sempre de alguma forma ligada ao ciclo natural da vida, de decadência e renascimento -, que então é revelada entre os fragmentos da história, recolhidos e resignificados.

Kiefer nos esclarece como certos objetos e materiais o fascinam. Percebemos que as paredes das torres de concreto que constrói são moldadas em containers, também utilizados para a construção de algumas “casas”, como forma de abrigar suas obras. Porém, o significado da utilização destes containers ultrapassa seu aspecto formal. Os containers são, para Kiefer, fascinantes:

Nômades, eles atravessam o mundo inteiro. Eu os compro usados, danificados ou já utilizados. E a ideia é a mesma que então eu trabalho nas fábricas desativadas, como eu fiz na Alemanha e como o faço em Barjac. Lá, entre seus muros, foi concentrada a vida de centenas de milhares de trabalhadores, através de dezenas de anos. Isto toca muito minha obra. Também, os containers me permitem lembrar os continentes do mundo inteiro e de operar uma transmissão através do uso que eu faço dele. (KIEFER, 2007, p.58 – tradução nossa).

Portanto, para Anselm Kiefer há sempre algo que permanece e que se mostrará transformado no futuro. Ao utilizar os containers como molde para cada uma das estruturas de concreto que formam suas torres, o artista comenta que, ao colocar uma peça sobre a outra, procura uma maneira de dar a impressão de um “equilíbrio instável”, algumas vezes permitindo inclusive que uma torre desmorone, pois o artista não considera as ruínas como coisas desastrosas, para ele é “muito pelo contrário o começo da reconstrução de um ciclo, o tempo circular” (KIEFER, 2007, p 63). O artista ao afirmar que tudo se transformará em ruína, reafirma o curso natural da vida. Em algumas de suas reflexões, frequentemente cita a frase do profeta Isaías “O mato crescerá sobre vossas cidades” 12, tema de uma série de obras assim como título do documentário produzido em seu ateliê em Barjac pela diretora Sophie Finnes13.

12

Em minha dissertação de mestrado, defendida em 2010, há várias referências de Kiefer a esta frase do profeta Isaías. Portanto ao citar a série Lilith, temos uma referência direta às ruínas. Lilith é uma figura da mitologia judaica considerada como a protetora das cidades em ruínas. Na dissertação “Anselm Kiefer: Paisagem, Memória e Ruínas nas Megalópolis”, sugere reflexões sobre as ações humanas e sua influência na natureza, a partir da analogia com Lilith e seu poder de destruição ante às grandes metrópoles do mundo, em que a imagem a cidade de São Paulo servirá como modelo. Portanto, Kiefer busca em um mito que

46

Fig.5 - Anselm Kiefer, Lilith, 1987/1989 - óleo, laca, chumbo, cinzas, papoula, cabelo e argila sobre tela, 380 x 560 cm, Coleção Hans Grothe. Fonte: Catálogo Anselm Kiefer obras da coleção Grothe – Palma de Mallorca.

Este tratamento do tema evoca, em acordo com Isaías (34-14), o castigo divino das cidades orgulhosas e a morte das civilizações urbanas que inspiram em 1996 o livro “O mato crescerá sobre vossas cidades” [...] Nós reencontramos esta atualização do mito que constitui uma dimensão central de inspiração de Kiefer, mas a presença de Lilith dá a esta atualização um sentido mais preciso, cujo comprometimento está de acordo com a concepção que Kiefer faz de sua arte. (ARASSE, 2007, p. 292, tradução nossa, apud PIVA, 2010, p.129).

pertence ao passado remoto, uma visão para o presente e para o futuro. Nosso rosto é dirigido para o passado, que ao invés de uma cadeia de acontecimentos, nos faz ver uma catástrofe única que também está dirigida ao presente, “que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”. (BENJAMIN, 1994, p.226 apud PIVA, 2010, p.144).

13

47

Frequentemente, as obras de Kiefer fazem referências ao céu e à terra, aos subterrâneos profundos e às estrelas, a um passado arcaico e ao momento presente, revelando-nos uma constelação de infindáveis caminhos. Para Karl Erik Schollhammer14 (2012) “o contemporâneo abre a possibilidade de uma relação anacrônica entre diferentes tempos históricos que ameaça as fronteiras e o encadeamento entre passado, presente e futuro”.

O papel das imagens, no entanto é complexo. Operam dialeticamente não só como expressão de uma força latente, mas também como catalisadoras dessa força em sua operação na memória histórica. Imagens que não pertencem propriamente ao passado podem nesse sentido atualizar e reviver o passado de modo anacrônico e descontínuo. Eis o papel específico das fórmulas patéticas (Pathosformeln), que para Warburg condensavam figuras e gestos, conteúdos e expressões, carregando emoções e afetos primitivos que pudessem irromper na continuidade histórica ao manifestar simultaneamente algo original, novo, e a retomada e repetição do passado. (SCHOLLHAMMER, A sobrevivência de Aby Warburg- Caderno Prosa e Verso - O Globo 08/09/2012).

Portanto, o conceito de imagem dialética se concentra sobre questões ambíguas e propõem um estado de suspensão para as imagens. A imagem – que se apresenta no momento presente - condensa o que passou e o agora. Não se trata de um passado que se reafirma sobre o presente ou o contrário, a imagem é chamada de dialética por seu estado de suspensão.

Nesta pesquisa trataremos as obras de arte como imagens, por não termos aqui outra maneira de apresentá-las, nunca deixando de valorizar a obra de arte original e a riqueza incontestável do contato direto com a mesma. Relacionaremos algumas questões, dentro do que nos propomos investigar - a permanência do romantismo na arte contemporânea -, não somente na obra de Anselm Kiefer, mas, nosso objetivo é partir de evidências discutidas neste capítulo inicial para então estendê-las a artistas brasileiros. A aproximação de algumas imagens, como

14 Karl Erik Schøllhammer é professor associado e Diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio. É doutor em

Semiótica e Literatura Latino-americana pela Aarhus Universitet (1991) e atua na área de Letras, principalmente na literatura comparada e na teoria da literatura com ênfase nos estudos visuais e nas questões estéticas ligadas à interface entre a literatura e as outras artes.

48

parte da metodologia a ser empregada para constatação desta tese, nos dirigirá aos estudos de Aby Warbug, especificamente ao termo Nachleben.

Buscando uma “outra visão da temporalidade histórica” Schollhammer (2012) cita como fundamental a ideia proposta pelo termo Nachleben15. Nachleben foi o termo que Warburg utilizou para indicar a permanência do substrato de uma cultura anterior como um conceito de ressurgimento ativo, revitalização e ativação de ideias consideradas extintas. Seria algo que desapareceu e que ressurge em outro momento, então revitalizado e com nova atualidade. Seria o conceito de após-vida, que será de grande contribuição para esta pesquisa.

Portanto, se as imagens possuem uma após-vida, elas se movimentam e produzem infinitas reflexões e possibilidades de conexões entre o momento atual, o passado e mesmo sobre as incertezas do futuro.

Samain (2012, p.21) busca saber “como existem as imagens, como vivem, como nos fazem viver. Ou ainda, quais são suas maneiras de nos fazer pensar?” acrescentando ainda “como a imagem nos provoca a pensar, nos convoca a pensar”.

Portanto mergulharemos nos questionamentos que propomos aqui, pautados nesta “provocação” ou “convocação”. Inicialmente analisaremos algumas obras de Caspar David Friedrich - pintor de grande representação do período romântico alemão e, faremos algumas relações com determinadas obras de Anselm Kiefer. A aproximação entre os dois artistas têm sido ressaltada por diversos autores, pela própria referência que Anselm Kiefer dirige a este pintor romântico em algumas de suas obras. Porém, procura-se com este trabalho traçar novas relações. Procura-se, portanto, na fusão entre passado e presente, a direção para um entendimento, sobre quais eram os motivos que levaram os românticos a valorizar determinadas características e excluir outras, como vivenciaram em sua época as inúmeras transformações

15 O interesse em prosseguir a pesquisa sobre a permanência de aspectos do romantismo presentes na arte

contemporânea foi ativada, em certos aspectos, a partir de palestras de renomados especialistas que tive a oportunidade de acompanhar durante o III Colóquio Internacional Nachleben escrita e imagem em Aby Warburg e Walter Benjamin, ocorrido em Belo horizonte no ano de 2012.

49

ocorridas nos campos político, econômico, social e religioso, e como isto é revelado em suas produções.

Assim lançaremos um olhar mais atento às obras de Caspar David Friedrich que espelha veementemente a concepção romântica da arte e é referência para Anselm Kiefer, como comentado anteriormente, em determinados momentos de sua produção16. Assim, destacaremos imagens de obras em que Kiefer não tem a intenção de fazer referência ao pintor romântico, para então aproximá-los. Assim seguiremos o rumor próprio da cultura alemã, que parece guiar algumas buscas em comum existente entre os dois artistas e, que podem ser reveladas através da obra de arte.

Segundo Samain (2012) “toda imagem é portadora de um pensamento, isto é, veicula pensamentos”, sobre este aspecto podemos crer que há uma permanência não de forma integral, mas através de fragmentos que permaneceram de uma época à outra. Quando pareciam ter desaparecido ressurgem novamente, transformados pelo tempo, metamorfoseados. Assim como exemplificado inicialmente através da ideia de uma pessoa que deixamos de encontrá-la por um longo período de tempo, e então nos surpreende, reaparecendo em outra época, em outro contexto.

16

Em “Anselm Kiefer e a poesia de Paul Celan” (2007, p.35), Andrea Lawterwein faz uma rica análise ao relacionar as obras de Caspar David Friedrich (“Caminhante sobre um mar de nuvens”, 1818) e Anselm Kiefer (Ocupações, 1969).

50

2.3 -

A Paisagem Romântica e as Novas Formas de Olhar: O Sublime e seus