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O contato direto com as esculturas de Frans Krajcberg nos traz a sensação de estarmos ouvindo a própria voz do artista. Sua busca incessante de resgate da natureza - com função mais ética do que estética - reflete-se através do material calcinado transformado em objeto artístico. Cada uma das obras deixa transbordar seu clamor, de sensibilidade e esperança, para conscientizar o mundo sobre “o caos da caminhada desumana em direção à destruição da natureza”. (PIVA, 2014, p.184).

Seu grito ecoa por entre o silêncio de suas esculturas reunidas nos pavilhões - projetados pelo arquiteto Jaime Cupertino - no Sítio Natura, onde hoje se encontra a maior parte da produção

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do artista. Guardadas em uma grande estrutura redonda coberta com telhado de sapê, obras de grande porte e de altura significativa, chegam quase a alcançar o teto elevado da construção.

Neste local, as esculturas encontram-se dispostas muito próximas uma das outras, o que impossibilita a visão de todas elas. Algumas ainda embaladas, envoltas em plástico bolha - por terem retornado há pouco tempo de algumas exposições – nos passam a sensação de quererem emitir seus sons, porém, impossibilitadas pelo material que as envolve, demonstram um estado de privação ou falta de liberdade que impede o ressoar de suas vozes.

O conjunto de obras mais impressionantes encontram-se neste barracão principal. As esculturas feitas mais recentemente parecem nos atingir de forma dramática e nos despertam à sensação de sublime descrita nos capítulos iniciais deste texto. Também invocam a posição da arte justificar-se pela abrangência da reflexão crítica.

Fig.36 - Frans Krajcberg. Esculturas, madeira e pigmentos naturais. Fonte: Sítio Natura, Nova Viçosa – BA, registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

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O material utilizado apesar de morto é matéria viva, suas formas intensificadas através do trabalho do artista e dos pigmentos naturais passam a nos questionar. Parecem mais fortes do que nós e sugerem um ar de imponência através de suas dimensões grandiosas. Todas juntas, dispostas de forma aleatória, formam um grande conjunto que parece dialogar entre si. Apesar do artista não estar presente entre elas, seu discurso de revolta pode ser escutado, algumas parecem gritar, outras nos amedrontam, outras ainda embaladas, sugerem a privação, como que exiladas de seu lugar, de sua vida. Entre o conjunto das esculturas, a que Krajcberg intitulou “Pulmão do Mundo”, com a qual o artista foi condecorado com o Prêmio Enku, no Japão em 2012, como comentado anteriormente, destaca-se entre as demais. Sua forma peculiar nos esboça uma figura humana, sugerindo pulmões tomados pelas cinzas e fumaça, o trágico e cadavérico é revelado nestas madeiras retrabalhadas, que por vezes indicam bocas, que ensaiam gritos nunca escutados.

Fig.37 - Sítio Natura – Local onde se encontram grande parte do acervo de esculturas do artista. Fonte: registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

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Como em um momento de espera, talvez o mesmo vivido pelo o artista que almeja ações concretas de preservação do meio-ambiente, estas obras aguardam seu espaço definitivo. Elas deverão ocupar, futuramente, mais cinco pavilhões a serem construídos (informação verbal) 51 - cujo projeto está em andamento pelo arquiteto Jaime Cupertino -, para a consolidação de um desejo de Frans Krajcberg, o de transformar o Sítio Natura em um Museu que levará o seu nome.

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Lú Araújo é mantenedora da Pousada Cheiro de mar no município de Nova Viçosa. Tem acompanhado e dado apoio a vários eventos e necessidades de Frans Krajcberg. Conserva em seu escritório importantes livros, catálogos e registros do artista. Segundo Lucineide, Frans Krajcberg já tem pronto os esboços de como quer as construções, e aguarda somente o projeto de execução do arquiteto. Estas informações aconteceram em ocasião de minha estadia neste local para concretização da visita ao artista Frans Krajcberg em agosto de 2014.

Fig.38 - Frans Krajcberg. Escultura, madeira e pigmentos naturais. Fonte: Sítio Natura, Nova Viçosa – BA, registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

Fig.39 - Frans Krajcberg. Pulmão do

mundo, escultura, madeira e pigmentos

naturais. Fonte: Catálogo da Exposição do Prêmio Enku, Japão, 2012.

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Dois pavilhões que podemos visualizar neste espaço - um concluído e outro em fase de finalização - revelam a mão do artista. Troncos retorcidos se entranham por toda parte inferior de sustentação de uma estrutura suspensa. Troncos feitos de cimento que, ao caminharmos por entre eles, nos dão a impressão de serem de madeira, como extensão das obras do artista, que abrigadas no interior do pavilhão parecem procurar alcançar o espaço exterior, demonstrar movimento, uma dinâmica que a própria matéria orgânica emana, o desejo de retornar à vida, à natureza. Como mãos suplicantes tornam-se o espelho da indignação do artista ante as queimadas, aos desmatamentos e à falta de conscientização do homem, que ao destruir a natureza destrói a fonte de sua própria subsistência.

O segundo pavilhão, um pouco menor, não possui nenhuma obra exposta, pois ainda encontra-se em construção. As duas construções, porém, são como grandes esculturas, suas formas orgânicas de troncos e folhas, assim como suas curvas sinuosas, sugerem seu surgimento do solo de areia, que se erguem como uma planta que cresce em direção ao alto, exposta ao movimento do vento, ao calor do sol e ou à transparência da chuva.

Todos os detalhes da construção têm a marca do artista, as escadas que alcançam o piso superior acompanham o mesmo movimento dos troncos que se retorcem nas curvas da arquitetura.

Fig.40 - Sítio Natura – Pavilhão já concluído que abriga parte do acervo de esculturas e pinturas do artista. Fonte: Sítio Natura, Nova Viçosa – BA, registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

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Fig.42 - Sítio Natura – Pavilhão em fase de finalização que abrigará parte do acervo de obras de Frans Krajcberg. Fonte: registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014. Fig.41 - Visão do Sítio Natura, pavilhões construídos para abrigar as obras do artista Frans Krajcberg. Fonte: Sítio Natura, Nova Viçosa – BA, registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

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Fig.43 - Sítio Natura, interior do pavilhão que abriga esculturas, pinturas, fotografias e livros do artista Frans Krajcberg. Fonte: Sítio Natura, Nova Viçosa – BA, registros próprios em ocasião da visita a Frans Krajcberg em agosto de 2014.

Fig.44 - Sítio Natura, escultura de madeira, pedaços de raízes e de madeira. Fonte: registros fotográficos próprios, agosto, 2014.

Fig.45 - Ossada de três Baleias Jubarte, próprias da região, recolhidas e conservadas no Sítio Natura. Fonte: registros fotográficos próprios, agosto, 2014.

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Ao entrarmos no pavilhão já concluído [Fig.40 e Fig.43], temos a visão das obras que expostas refletem os vários momentos da trajetória de Krajcberg. As raízes, os quadros de terras e de pedras, as impressões de folhas, as raízes conjugadas às sombras, a fotografia iluminada de uma floresta pegando fogo e até mesmo uma estante de livros do artista, destruídos pela água da chuva que invadiu uma de suas construções de madeira.

Andando pelo espaço exterior encontramos a cada passo, alguns materiais recolhidos pelo artista em suas andanças pelas florestas e pelos campos. Resto de raízes, de cascas de árvores, troncos e até mesmo a ossada de três baleias jubarte [Fig.44 e Fig.45] encontradas na região .

Seus funcionários estão a postos, recuperando as esculturas que devem ser restauradas, assim como novos trabalhos que serão criados sob a supervisão do artista. Muito ainda poderia ser dito, porém as imagens vão mais longe que as palavras. Assim será através das imagens que nosso diálogo com Frans Krajcberg será ampliado ao final deste estudo, e a cada espectador dependerá seu envolvimento com cada detalhe da obra, como uma viagem, que em meio a um universo diferente do que estamos acostumados a vivenciar, percebemos com mais cuidado cada passagem que nos invade o olhar.

Um material sensível que nos pede a ultrapassar a matéria para nos lançarmos aos percursos que atingem novos campos de entendimento, de reflexão, nos permitindo a sensação de sermos nada, diante da grandeza do mundo e, da riqueza de formas, que a própria natureza nos entrega pronta.

Temos consciência de que os ecossistemas são instâncias provisórias e em constante deterioração. Esses aspectos de temporalidade, ganância, destruição e violência (todos silenciosos mas constantes) são discursos cada vez mais constantes nas obras de arte contemporâneas. (SCOVINO, 2011, p.41).

Os artistas a que nos referimos neste trabalho, de uma forma ou de outra, nos fazem pensar no ciclo próprio da natureza – de decadência e de renascimento, de morte e de vida. O olhar para natureza, porém, desloca-se do simples contemplar, do ciclo natural que ela emana,

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para ser assombrado por visões trágicas. Nas fotografias registradas por Krajcberg, “a paisagem reflete suas chamas em nosso olhar”, e nos faz “percorrer outros espaços, que alargam fronteiras e ultrapassam delimitações”. (PIVA, 2014, p.179).

“A obra de arte não é um produto da natureza [...] A arte é uma obra humana; seu segredo, qualquer que seja seu modo de revelação, reside na significação das razões pelas quais o homem lhes produz”. (FIEDLER, 2011, p.116 – tradução nossa).

O movimento expressivo do artista, que dá visibilidade à forma, traduz-se por uma maneira ativa, dotada de energia. Segundo Felipe Scovino (2011, p.27), “refletir sobre a obra de Krajcberg é pensar o próprio estado da arte: sua forma de atuação, sensibilização, experimentação e manifestação”. O pensamento é colocado sobre um exercício estético, “sobre o lugar do homem no mundo e sua relação com o espaço e a natureza”.[...] Questões que se referem à sensibilidade, das formas recolhidas e traduzidas de forma poética – a partir de visões trágicas da paisagem - por um artista que luta não apenas por uma constatação diante das inóspitas ações humanas em relação à natureza, mas por uma abertura maior da consciência. (PIVA, 2014, p. 178-179).

Pierre Restany (SCOVINO, 2011, p.185), em “Manifesto do Rio Negro”, nos alerta para a necessidade de uma “consciência planetária” e aponta como, muitas vezes, opta-se por apenas um dos dois sentidos que vivemos hoje a natureza: “o ancestral, legado planetário, e o moderno, aquisição industrial e urbana”. Para Restany é importante que estes dois sentidos da natureza sejam vividos.

Pode-se optar por um ou por outro, pode-se negar um em proveito do outro, mas o importante é que ambos os sentidos de natureza sejam vividos e assumidos na integridade de sua estrutura ontológica, na perspectiva da universalização da consciência perceptiva, o Eu abraçando o Mundo e tornando-se um só com ele, em consonância e harmonia da emoção entendida como a realidade última da linguagem humana. [...] O naturalismo como disciplina do pensamento e da consciência perceptiva é um programa ambicioso e exigente, que ultrapassa de longe as perspectivas ecológicas atualmente balbuciantes. Trata-se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva, muito mais contra a poluição dos sentidos e do cérebro do que do ar ou da água.

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(RESTANY, “Manifesto do Rio Negro”, Alto do Rio Negro, 1978. Na presença de Sepp Baendereck e Frans Krajcberg – MAM, 2008, p.11).

Frans Krajcberg, através de sua produção artística, nos intima a acolher ambos os sentidos procurando uma harmonia, uma integração e percepção da realidade de um mundo transformado, globalizado, uma consonância entre o Eu e o Mundo, uma busca pela conscientização do planeta. “Afinal de contas, a natureza é, e ela nos supera na percepção de sua própria duração. No espaço- tempo de uma vida humana, a natureza é a medida de sua consciência e sensibilidade.” (KRAJCBERG, 1992 apud MAM, 2008, p.7).

A obra de Krajcberg nos faz pensar como a arte pode atuar de forma incisiva sobre a reflexão. A estética como teorização do sensível, pode desempenhar um importante papel quanto ao entendimento do homem em relação ao espaço e ao uso que faz dele. A natureza incendiada revela as atrocidades que permanecem na história humana de todos os tempos. O relevo fraturado que se impõe em nossas vidas, tanto através de questões políticas como culturais, mostram o caos da caminhada desumana de destruição da natureza. (PIVA, 2014, p. 184).

Segundo Giorgio Agamben (2010), contemporâneo é aquele que vive o presente, enxerga suas sombras e as projeta sobre o passado com a esperança de alcançar respostas “às trevas do agora”. Krajcberg é contemporâneo porque “é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele [...] é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.” (AGAMBEN, 2010, p.64).

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4.4 - Carlos Vergara e as Ruínas da Opressão: