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E é também com este contraponto que a memória passa a ter importância fundamental na constituição deste plano segundo. Entretanto, pelo que se percebe nos romances, a memória do imigrante ou do permanentemente desterrado em relação à terra deixada é uma memória que não se atualiza, torna-se fixa44 pela impossibilidade de retorno. E em conseqüência disto, ela se idealiza ou tende à idealização. Como já foi dito, a memória é uma maneira do fora de lugar, do emigrado reviver o que foi deixado. Mas a idealização talvez seja a tentativa de não se perder, de não cortar completamente as raízes, fruto do medo de não saber responder a pergunta “de onde vim?” ou mesmo de não superar o trauma do desmembramento. Provavelmente por isso todos os romances analisados fornecem uma visão estática do país deixado. Da nação libanesa pouco se lembra do horror da guerra, dos tantos domínios, dos massacres que seu povo sofreu, enfim do lado triste da história do país. As memórias narradas do Líbano são em sua maioria de um espaço de jovens e crianças – isso ocorre porque os personagens imigrantes e exilados dos romances deixaram o país ainda na juventude e é desse período para trás que eles se lembram. Assim, tem-se uma imagem como de uma fotografia antiga de um Líbano das montanhas com eternas neves; do Líbano dos cedros, dos figos, dos pastores e cabras. Enfim, se mostra um Líbano rural, onírico e belo, um lugar das brincadeiras de crianças e dos primeiros amores; um país com muitas cores e intensos sabores.

44 Nesse sentido, há uma semelhança com o Orientalismo, matéria científica, que mostra o Oriente como o outro

silencioso da Europa. Esse outro oriental tornou-se fixo, fossilizado. (SAID, 2003:66) As causas desta fossilização são diferentes, mas os resultados tornam-se os mesmos. Uma pela imposição da superioridade europeía como ponto de comparação com os orientais e outra como forma de superação do trauma do exílio.

Como exemplos têm-se as lembranças de Emilie contadas ao filho Hakim e para a empregada Anastácia.

O aroma dos figos era a ponta de um novelo de histórias narradas por minha mãe. Ela falava das proezas dos homens das aldeias, que no crepúsculo do outono remexiam com as mãos as folhas amontoadas nos caminhos que seriam cobertos pela neve... Ela evocava também os passeios entre as ruínas romanas, os templos religiosos erigidos em séculos distintos, as brincadeiras nos lombos dos animais e as caminhadas através de extensas cavernas que rasgavam as montanhas de neve, até encontrar os conventos debruçados sobre abismos... a paisagem do mundo se restringe à floresta de cedros negros e ao rio sagrado que nasce ao pé das montanhas... uma outra paisagem surge como um milagre: córregos ao meio de bosques, videiras, oliveiras e figueiras... alçam o vôo rumo ao céus como as asas de uma montanha.(RCO, 89-90)

Amina (Amrik) também guarda na lembrança as imagens de sua infância, desde o momento do abandono da aldeia libanesa:

...olhei o sol nascer as encostas da montanha os picos onde ficavam os cedros a neve que parecia leite escorrendo pela encosta os olivais os cipres e nardos as fontes d’água os campos de trigo... longe ficou a aldeia do alto da colina...viajei sentada de costas na carroça olhei para trás tentei gravar na minha lembrança as cabras que via, as ovelhas, os bules dourados a imensa bandeja de barro onde vovó Farida fazia pão, o cheiro de pão e o calor do forno, o cheiro de jasmim e manjericão os campos de trigo o orvalho que eu gostava de beber nas folhas da relva, a minha infância acabava ali na estrada descendente, minha vida se tornava meu passado (Amrik, 23)

Tamina e Yussef não fogem à regra idealizante, ao tecer as lembranças do país deixado. O sujeito narrativo de Nur na escuridão, entretanto, dialoga com este tema ao dizer que o Líbano do pai não existe mais, nem mesmo em retrato pendurado na parede. Mas que não adianta dizer isso para o pai, pois o que ele quer lembrar é daquele Líbano deixado, “da Kfarssouroum de sua infância, da louca juventude, ou da Amiun da Tamina.” (NE, 161). A

maksuna (terra, casa) das lembranças dos Miguéis “dava tâmaras saborosas, uva e maçã,

O que o pai procurava – e temia jamais encontrar ao vivo – era recuperado pela memória, pela sensibilidade: o seu Líbano, o que deixara há tantos anos e só subsistia, intacto, dentro dele. Suspirava pela infância solta e selvagem, pelo puro amor incenciando duas crianças ao primeiro encontro, ... ; suspirava até pelos maus momentos, a infeliz fratura no pé jamais cicatrizada, resultante da aventura de um desmiolado, respondendo com arrogância ao desafio do centenário cedro do Líbano. (NE, 162)

Em Lavoura Arcaica a imagem que se refere ao Líbano é a da dança, nos encontros aos domingos da família com vizinhos e parentes. Deduz-se que se trata de uma família do oriente pela descrição dessa dança e pela referência à irmã como “dançarina oriental” (LA, 192); também o avô dizia sempre para os acontecimentos da natureza a palavra maktub e André referiu-se ao cântico milenar que sua mãe passou a carpir após a morte da filha como um cântico da “costa pobre do mediterrâneo” (LA, 194). Além disso, as irmãs de André tinham, segundo ele, um “temperamento mediterrâneo” (LA, 41). Resta saber o que significa ter este temperamento. De qualquer forma, juntando-se às origens do autor, oriente, língua árabe e costa pobre do mediterrâneo, tem-se o Líbano.