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Uma outra referência à imagem do oriente encontrada nos romances é sobre a tradição da narrativa oral e as Mil e uma noites. Os personagens imigrantes de Relato de um certo

oriente e Nur na escuridão parecem carregar nos genes o dom de contar histórias e têm uma

íntima ligação com a literatura de As mil e uma noites. As histórias sempre narradas remontam também às origens. Assim o faz Yussef quando conta de seu passado “numa técnica que remonta a seus ancestrais”, baseado nas fantasias e lendas que lê (NE, 18).

De repente não era apenas o seu Líbano dos tempos de criança e adolescente que lhe surgia íntegro, era todo o mundo árabe que lhe tomava o peito de orgulho, mescla de vários mundos árabes, era o Líbano de muito antes dele, um Líbano que nem existira como tal, era

um fabuloso país retirado de livros, das histórias, de narrativas orais, era um Líbano de antes do Líbano. (NE, 163)

Yussef fantasiava “com seu poder de fabulação tirado da constante leitura de As mil e

uma noites, que começara a contar desde cedo para os filhos, nos serões noturnos, e que a

todos marcaria para sempre” (NE, 105) e acrescentava sempre novos ingredientes às aventuras do transplante e da fixação na nova terra.

Também o pai da família de Relato de um certo oriente é um contador de histórias. Seus relatos da terra de origem e da vida de outras pessoas são uma mistura de trechos de personagens fictícios e reais, que têm como base As mil e uma noites. O livro é um passaporte para o seu mundo tão calado e introspectivo, passaporte que Dorner45 adquiriu. Depois de ler

As Mil e uma noites, Dorner teve acesso à intimidade do marido de Emilie, criou-se uma

cumplicidade entre os dois.

O convívio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro tornou nossa amizade mais íntima; por muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa alusão àquele livro, e que episódios de sua vida eram transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na fala do meu amigo. No início de nossa amizade, ele se mostrara circunspecto e reservado, mas ao concluir a leitura da milésima noite ele se tornara um exímio falador. (RCO, 79)

A literatura árabe e as narrativas orais são uma constante no cotidiano dos imigrantes de Manaus e comprovam o que Dorner dizia que “o tempo acaba borrando as diferenças entre uma vida e um livro46”. O pai, por exemplo, deixa tranqüilamente que relatos orais influenciem suas decisões. Por exemplo, como já foi mencionado, seu encantamento por Manaus e a decisão de ficar na cidade ocorreu devido à cúpula do teatro amazonino, que para

45 Dorner é o personagem que representa os alemães do norte. Ele é um misto de antropólogo, botânico e

fotógrafo. Através dele descobre-se um pouco do preconceito que os alemães sofreram após o fim da Segunda Guerra, os germânicos do norte pintavam seus cabelos de preto e se escondiam na floresta. Muitos morreram.

46 Interessante notar que esta afirmação termina por servir também para os livros analisados nos quais os autores

também têm origem libanesa, afinal partes e personagens que pertencem à história real destes autores são adaptadas para a ficção. E as diferenças entre a própria vida e o livro terminam por desaparecer na obra.

ele lembrava uma mesquita, mas uma mesquita de sua imaginação. Ele nunca havia visto o templo sagrado dos muçulmanos e sim escutado patrícios contadores de histórias descreverem a construção religiosa. Também o amor pela sua futura esposa tem como origem as narrativas orais dos patrícios do Amazonas: ao se fixar em Manaus, o comerciante libanês ouviu tantas histórias sobre uma moça imigrante e encantadora que se apaixonou por ela antes mesmo de conhecê-la. Seu nome: Emilie, com ela se casou e teve quatro filhos.

Muito antes do desaparecimento de Emir soube que me casaria com Emilie; os levantinos da cidade eram numerosos e quase todos habitavam o mesmo bairro, próximo ao porto. ... Os solteiros falavam de Emilie com efusão e esperança; os mais velhos recordavam a juventude, resignados e pacientes. Afinal, tinham vivido muitas décadas. Emilie era a única filha e, de tanto ouvir falar nela, enamorei- me. (RCO, 76).

Emilie, por sua vez, também contava muitas histórias do seu nostálgico oriente. Nas tardes de ócio de sua casa, encantava a empregada com histórias de além-mar. A índia Anastácia, semi-escrava na casa de Emilie, também não perdia a chance de narrar sobre o seu mundo. Um mundo da floresta que Emilie e Hakim conheciam através das histórias da serviçal. Anastácia é uma Sherazade brasileira, ela contava histórias para escapar da exaustão dos trabalhos intermináveis. Enquanto narrava sobre um mundo fantástico da floresta, estava livre dos desmandos de Emilie. Era o prêmio que recebia pelo dom de narrar. Assim como Sherazade ganhava por suas histórias sempre um dia a mais de vida, Anastácia ganhava algumas horas a mais de tranqüilidade. Um “ócio criativo” acontecia naquelas tardes de narrativas, e fronteiras de tempo, espaço e lugares sociais eram rompidas e mescladas:

...Anastácia, através da voz que evocava vivência e imaginação, procurava um repouso, uma trégua ao árduo trabalho a que se dedicava. Ao contar histórias, sua vida parava para respirar; e aquela voz trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se poupar, que inventava para escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do martírio. (RCO, 92)

A oralidade permeia todo Relato de um certo oriente. Em verdade, o livro é o resultado das gravações que a narradora fez das vozes de outros personagens, contadores de histórias próprias e alheias.

Lavoura arcaica, por sua vez, mantém a oralidade pela figura do patriarca. É ele quem

prega os sermões de cada dia. Esta oralidade é de certa forma memorialística porque para o pai os sermões têm a função de manter algo que “levou milênios para se construir” (LA, 169). É o sermão um gênero híbrido. Escrito, ele existe para ser pregado, exige os seus ouvintes, constitui-se plenamente na exortação oral. Este legado milenar, transmitido pela figura do avô, refere-se muito provavelmente às origens familiares – que têm suas raízes no Líbano - construídas, segundo ele, com muita solidez, disciplina e respeito ao tempo. Uma família formada pelo dom da paciência e da tradição e que - assim como as memórias das origens que se encontram nos outros romances - é a idealização de um passado que não existe mais. Os sermões têm a função de manter as raízes familiares vivas. Por intermédio de um discurso erudito, o pregador, numa insistência enfadonha, procura persuadir a família e transmitir-lhe o saber restrito ao código religioso. Do púlpito, que é o seu lugar na mesa, ele vocifera suratas aos filhos presos a suas cadeiras. Resultará inútil a pregação. Ao horizonte do pregador não corresponde o de suas ovelhas.

Por fim, em Amrik, não se encontra nenhum personagem com “um dom de narrar” como nos primeiros livros citados, mas a história também faz referências ao livro das Mil e

uma noites47 e à literatura árabe. A narradora, repetindo as palavras do tio Naim, diz que muitos pensam que a literatura árabe é suja por ser erótica e que a maioria das pessoas imagina que o mundo árabe é como o das Mil e uma noites.

47 Sabe-se hoje, por intermédio da tradução do livro diretamente para o português, que As mil e uma noites é “um

trabalho letrado cujo percurso foi da elaboração escrita à apropriação pela esfera da oralidade, e não o contrário”.(JAROUCHE, 2005: 28)

...mulheres astuciosas, tudo nos palácios nos jardins nos mercados nos becos nos bazares nas alcovas hmhmhmh aos beijos uiuiui goles de vinho ai paixões comentários ou virulentos ou líricos entre gritos lancinantes de desejo carícias confissões de amor odes à beleza do corpo amor pela mulher pela terra amor pelo corpo como disco da lua, se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, disse tio Naim, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e uma noite hahaha (Amrik, 31)

É como se tentasse dizer que a literatura produzida está somente na imaginação do autor e do leitor e que nada tem a ver com a sociedade que a produz. Mas sabe-se que isso não acontece. O comentário da narradora de Amrik acaba por se tornar uma justificativa para o livro, que gira em torno da personagem Amina, extremamente movida pelo erótico. Claro que a literatura não deve ser vista como espelho, mas como produto da representação social. A literatura além de refletir “questões que permeiam a vida social de um determinado período”, também “interfere, em menor ou maior medida, nas discussões e na maneira de enxergar a fisionomia dessa mesma realidade” (DALCASTAGNÈ, 1998).