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2. Virtualidades na criação da dança: mudança de percepção e a captura das micropercepções

2.4. A imanência do sentido do movimento

O que vê então o espectador? Se não contempla a dança, é porque ele próprio entra na imanência do sentido do movimento. Não vê unicamente com os seus olhos: recebe o movimento dançado com o seu corpo inteiro (GIL. 2004:98).

Receber a dança com o corpo inteiro e não apenas com os olhos, para mim, representa a atitude estética que melhor expressa a recepção da dança. “Entrar na imanência do sentido do movimento” exige esta atitude, um outro modo de ser afetado e ao mesmo tempo de afetar. A experiência impacta o corpo de múltiplas maneiras, permitindo ao espectador fluir na atmosfera criada pelos poderes virtuais desta arte.

40 Barata, André. “Da experiência mental sem consciência – Ou o problema mente/corpo para lá da consciência de acesso e da consciência fenomenal”. Disponível na internet: www.monogafias.com

Deixar-se afetar pelo movimento dançado é colocar-se no mesmo plano sugerido pelo artista, o qual não é apenas espacial, mas temporal. Entrar na imanência da dança é conectar-se à duração de tal forma que o espectador tem a impressão de poder antecipar o futuro no presente, “prevendo” o que o artista lhe mostrará. O espectador em total sinergia com o dançarino, ambos envolvidos pelos poderes da dança formam um fluxo de movimento único. O agenciamento entre a dança e a música aumenta esta sensação, pois o imprevisível do gesto ganha alguma regularidade pelo ritmo, a qual facilita a comunicação direta entre artista e espectador, provocando-lhe a potência do sentimento estético.

Mas nada disso está dado de antemão, é preciso como dissemos acima, criar as condições para que o jogo dos poderes misteriosos (Langer) que os dançarinos- improvisadores criam diante dos espectadores seja um acontecimento de arte. Esta maneira de perceber o (meta)fenômeno dança se aplica tanto ao improviso como à dança coreográfica, mas neste último caso, os poderes virtuais da dança parecem brotar da conexão, mais ou menos perfeita, entre as forças da criação do coreógrafo e os poderes de execução e de interpretação das dançarinas e dos dançarinos na apresentação da obra. Por este motivo, entendo que, neste caso, trata-se de pensar a interpretação como uma potência transformadora da obra criada pelo coreógrafo, ao passo que em uma improvisação, não há nada a ser interpretado, neste caso, trata-se precisamente da criação da obra, de como ela é intuída pelo artista e instantaneamente atualizada na apresentação.

Se as linhas de força que brotam do jogo não são potentes para criar um plano de imanência, a experiência não decola e não chega a impactar o corpo. O olhar do espectador tende a se fixar no desenho visível do movimento no plano espaço- temporal; seus olhos estão centrados na execução dos artistas, atitude que o distancia de uma percepção corporal41 total, como nos sugere José Gil, mas ainda assim são

41 Com isso não afirmo a separação entre percepção corporal e cognitiva, pois a segunda acontece a partir da primeira, como bem esclareceu Hume (1711-1776) na obra “Investigação acerca do entendimento humano” (1748): “Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade” (1989:70). Para Hume, as impressões (percepções vivas) que nascem das experiências são sempre mais fortes do que as ideias conscientes (percepções menos vivas) que delas fazemos.

impactados pelas vibrações indizíveis que circulam na atmosfera espetacular da dança (cores, texturas, sonoridades etc).

Mas como é entrar na imanência do sentido do movimento para um espectador de uma improvisação? Pessoalmente, lembro-me muito bem da estranheza que sentia quando assistia, nos anos 1980, no Brasil, aos espetáculos de dança42, ainda muito sensíveis às impactantes experiências da contracultura nos anos 1960 e 70 na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte. Minha impressão era que algo me fugia sempre, me impedindo de “entender” o que se passava nos palcos com aqueles dançarinos e o que estes queriam mostrar. Era tudo muito diferente das convenções do ballet, às quais estava acostumada. Com o tempo, este desconforto aumentou, mas naquele momento minhas experimentações em dança e teatro facilitaram que eu mudasse meu ponto de vista. Aquilo que antes era estranho, desconexo, sem sentido, passou a ser coerente, intenso e transformador. Este processo diz de minha própria dificuldade em sair do plano cognitivo e entrar nos sentidos do movimento da dança não representativa.

O que aprendi a ver com o passar do tempo foi o gesto desconectado dos significados, aprendi a ver o movimento, olhando-o diretamente em sua imanência. Aprendi a me mover junto com o dançarino, conectando-me internamente ao fluxo do movimento. O que quero dizer é que, primeiro, é preciso desaprender a ver43 e isso fica claro no estranhamento, na incompreensão necessária à mudança, para então, aprender a ver o movimento (Gil. 2005a) e entrar no sentido, na invisibilidade do fluxo da dança: olhar somente o movimento que brota do corpo do dançarino, olhar os entrelugares e intervalos daquilo que se mostra a nós. Nisto parece residir o paradoxo do olhar estético na dança, tal como o percebo: o movimento que se busca é imperceptível por natureza, ele, assim como o devir – “as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afectos” (Deleuze & Guattari.1997b:74), está abaixo ou acima do limiar da percepção comum. Entretanto, o movimento é imperceptível apenas em relação a este limiar, pois ele é algo que deve ser percebido, como afirmam Deleuze e

42 Destacaria espetáculos de dança dos seguintes coreógrafos: Alwin Nikolais, Alvin Ailey, Pina Bausch, Magui Marin, Maurice Béjart, mas também as composições coreográficas da brasileira Célia Gouvêa.

43 “Desaprender o visível para aprender um novo invisível: entre os dois, corte e descontinuidade. O instante em que a cisão faz nascer a forma inédita, instante de recusa e de invenção, é um momento de caos” (Gil. 2005a:137)

Guattari: “o imperceptível é também o percipiendum”, aquilo que tem a potência de ser percebido, atualizado (1997b:75). Ver o devir-outro na dança do improvisador é ver o invisível no visível e isto nos leva ao território das micropercepções, das nuvens de sentidos, das intensidades caóticas que circulam na imanência.

Entrar no movimento é penetrar este universo do muito pequeno, da inexatidão infinitesimal, que, em nosso contexto, só pode ser intuído durante a experiência efetiva, jamais por remissão ou distanciamento. Entrar no movimento é estar perfeitamente conectado à experiência em curso, é eliminar o lapso de tempo entre pensamento e ação (Grotowski), suprimindo o intervalo entre movimento e sentido (Gil). Para que o pensamento se ajuste tão intimamente ao corpo compondo um único sentido, “o movimento deve ser livre e não depender senão de si próprio” (Gil. 2005a:192). Nada exterior ou interior é necessário, nenhuma memória, nenhuma explicação, a dança fluindo diretamente de seu plano de movimento, em sua própria imanência.