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Capítulo 3 – Experimentação, acaso e repetição

4. Nos entrelugares do corpo-dançarino e da música

A mistura é filha do experimentalismo que surge da ação lúdica e da infinita curiosidade do artista contemporâneo, mas também decorre de suas investidas em outros saberes e fazeres. Mesmo que não esteja consciente do que procura nestes outros territórios, ele poderá se surpreender quando a criação se mostrar com pinceladas, sonoridades, movimentos que não estavam previstos em seu território de ação direta.

A mistura não é a soma, nem tampouco uma multiplicação de partes definidas de sensações vividas, e não resulta algo verificável do ponto de vista quantitativo, mas, e nisto reside sua autenticidade, em uma experiência de excesso que extrapola o campo perceptivo usual e rotineiro. Não há, portanto, uma porção de uma

sensação que se mistura à outra, como um simples acréscimo a partir da separação em partes, enfim, nada de específico de uma é misturado à outra nesta ação.

As misturas impregnaram os territórios da arte contemporânea potencializando a abertura das estruturas convencionais da Arte de maneira bastante ampla; uma expansão de fronteiras, ou melhor, uma indefinição entre fronteiras que normalmente são percebidas como limites de territórios particulares. Para o improvisador, as misturas criam brechas em sua percepção cotidiana e tornam o corpo potente para capturar os detalhes, as sutilezas mínimas que não formam nem idéias nem sensações definidas, mas conglomerados, emaranhados sensíveis, produzindo campos experimentais expandidos, diferenciados, densos e intensivos.

A brecha perceptiva presente no espaço entre sensações definidas é também a passagem para um intervalo de tempo não mensurável, tempo expandido e contraído, tempo múltiplo, tempo reversível, composto de ritmos heterogêneos e díspares. A brecha é uma passagem temporal. Assim, seu poder está menos naquilo que nos aparece pelos órgãos dos sentidos, filtrado pelas convenções do mundo objetivo e que se torna percepção comum do corpo próprio em um dado período de tempo, e mais na transmutação dos corpos no momento impreciso em que não se reconhecem mais seus limites, na passagem às micro-percepções intervalares, às misturas sutis e invisíveis pulsantes em um entre corpos.

Na dança, especialmente na improvisação de dança, percebemos a forte presença de experiências múltiplas que misturam diferentes sensações, memórias (passadas e futuras) e idéias sem conteúdo claro e preciso. São aberturas e desvios inesperados que aguardam o momento de se atualizarem e de serem exploradas pelo artista. Não são apenas possibilidades co-presentes, uma espécie de véu que envolve a experiência concreta no aqui-agora, mas virtuais que existem como forças invisíveis capturadas intuitivamente pelo artista no momento da criação e que, estando na experiência de forma não manifesta, também a determinam, contudo, sem condicioná- la.

Uma mistura potente é a que ocorre entre música e corpo. A música penetra a pele reverberando no espaço interior do dançarino-improvisador. Ela envolve e toca o corpo paradoxal fazendo-o vibrar intensamente e levando-o a saltar da reatividade ao

movimento total. Dançar o improviso é comover-se, mover-se com o outro, que neste caso, é sonoridade, ritmo, melodia e música; é se deixar afetar e também provocar afetos no outro. Misturar-se à música para encontrar o movimento do tempo. A pele é o não-lugar (porque não definido como lugar que pode ser exatamente encontrado) da mistura entre o corpo e a música, é ela que potencializa no dançarino a co-moção sensível para além da percepção originada nas sensações dos órgãos auditivos.

A pele inscreve a música num corpo-dançarino, e por isso é preciso deixar-se afetar e não apenas ouvi-la, medi-la84, compreende-la ou interpretá-la. A música passa pela pele em intensidades maiores ou menores, diferentemente dos ouvidos que são os órgãos especializados para a captação dos sons exteriores. Os ouvidos são labirintos abertos ao mundo dos sons, são por eles impressionados, reverberando internamente as vibrações externas, levando-as como impulsos para serem decodificadas pelo cérebro. A pele não faz isso. Ela não é o órgão de escuta do mundo, não “evoluiu” para esta finalidade, assim, pensar a pele como abertura do corpo ao mundo das sonoridades e ritmos é transgredir a compreensão de sua finalidade biológica e dirigir- se a uma nova perspectiva, especialmente importante para aquele que dança. A música toca o improvisador, atravessando seu corpo, reverberando nos poros sensíveis da pele, fazendo-a vibrar. Neste sentido, é possível dizer que o corpo-pele do improvisador (Banda de Möbius) se deixa impregnar pela textura da música, sua qualidade táctil, criando com ela uma trama sempre mutante de intensidades: concentrando e dissipando, repercutindo e abafando em um dentro e fora infinitos.

As invaginações entre música e pele provocam uma multiplicidade de sensações, misturas sensoriais que produzem sentidos não definidos, sentidos intensivos que não podem ser decodificados. Esta perspectiva abre um outro território para o corpo e para a dança, criando espaços de criação para o improvisador. Ele desloca seu olhar para estes encontros entre diferentes qualidades sensíveis, colocando-se na experimentação. Trata-se, como em Deleuze, de agenciamentos, osmoses e excessos.

84 Penso que a prática da contagem do tempo no aprendizado da dança distancia o aprendiz-dançarino de uma relação intensiva com a música. Dançar no tempo não é o mesmo que dançar o tempo: no primeiro caso, há uma racionalização da relação do movimento corporal com a música que pode levar a uma subordinação do movimento do corpo pela música ou vice-versa, já no segundo, percebe-se um real agenciamento entre corpo- música-dança, um encontro potente que possibilita ao improvisador capturar e ser capturado pelo tempo.

Deixar-se afetar é exceder, colocando-se em estado de presença: estar desperto e aberto ao mundo no aqui-agora da experiência não para responder a um estímulo, mas para criar o novo, para aumentar as potências do artista para dizer o novo. E esta não é uma experiência corriqueira para a qual estamos normalmente preparados. Trata-se de uma disposição para acolher sem julgar, para integrar-se ao outro sem garantia de bons resultados. É o risco sempre eminente e estimulante a que se propõe o improvisador: arriscar a perder as formas, perder a cabeça, abdicar das certezas que alicerçam os conhecimentos, esquecer de si mesmo na experimentação de um não-eu, que já não é o sujeito da experimentação, mas o espaço em que esta acontece.