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Sendo Capital Imperial e “vitrine” da nação, bem como um dos principais portos brasileiros para os contatos internacionais, a cidade do Rio de Janeiro, e em particular, o seu mercado de trabalho, atraiu e abrigou muitos estrangeiros. Na realidade, como afirmou a historiadora Lená Medeiros de Menezes, considerando a história do Brasil independente, “a imigração urbana foi um fato presente desde os primórdios dos processos de migratórios”333

. Na cidade do Rio de Janeiro, essa vertente da imigração, teve seus primeiros impulsos com a vinda da Corte Portuguesa, em 1808, intensificando-se nas décadas seguintes. Apenas para se ter uma ideia desse processo na primeira metade do século XIX, pode-se resgatar a estimativa da historiadora Gladys Sabina Ribeiro para meados da década de 1830, segundo a qual os prováveis 7 mil estrangeiros existentes na cidade, em sua maioria portugueses (5 mil), constituíam cerca de 30% do total de trabalhadores livres urbanos do Rio de Janeiro334. Contudo, foi a partir da segunda metade dos anos oitocentos que a imigração se ampliou substancialmente, ganhando um caráter massivo nas últimas décadas do século e aprofundando-se no início do século XX.

332 Sobre o conceito de “cidade-capital” ver: NEVES, Margarida de Souza. Uma capital em trompe l’oeil.

O Rio de Janeiro, cidade-capital da República Velha. MAGALDI, Ana Maria; ALVES, Claudia; GONDRA, José G. (org.) Educação no Brasil: história, cultura e política. Bragança Paulista: EDUSF, 2003. p. 253-285.

333 MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e

expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. p. 64.

334 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos

A intensificação dos movimentos imigratórios a partir de meados do século XIX, tanto no campo como nas cidades, teve estreitas relações com o fim definitivo do tráfico de africanos, em 1850, e o surgimento de preocupações sobre o futuro da escravidão no Brasil. Desde então, colocou-se de maneira mais evidente, para setores dominantes, dirigentes e intelectuais, uma intensa discussão em relação à ação do Estado e à imigração e/ou colonização335. Esse debate envolvia não apenas discursos que defendiam a substituição da mão de obra escrava e sua necessidade para a economia do país, como também questões relativas ao futuro social e cultural da Nação no que se refere ao caminho mais eficaz para o progresso e a civilização336. Todavia, em consonância com desenvolvimento dos ideais de imigração, ocorriam em diferentes lugares do mundo inúmeras ondas imigratórias, as quais estavam integradas à dinâmica global de movimentos populacionais que caracterizou a expansão capitalista, em sua integração mundial de mercados. Tais fluxos de imigrantes trouxeram para o mercado de trabalho livre brasileiro – que se expandia – milhares de homens e de mulheres de diferentes procedências, mas em especial da Europa, que fugiam do desemprego e da miséria no velho continente.

Por sua centralidade no quadro nacional, a cidade do Rio de Janeiro seria, nesse contexto, um dos ambientes onde logo se evidenciou os resultados reais dos crescentes e diversos movimentos imigratórios. Sendo assim, um dos fluxos mais notórios ocorridos a partir de meados do século XIX foi o da maciça entrada de imigrantes portugueses no Brasil e, em particular, na urbe carioca337. Segundo alguns historiadores, são vários os fenômenos que explicam a emigração portuguesa naquele contexto, mas todos eles

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Boa parte desse debate envolveu as diferenciações entre a chamada “imigração dirigida” (que requeria subvenções oficiais que permitissem o pagamento das despesas para vinda dos candidatos à imigração e uma série de cuidados relativos ao acesso a terras públicas, para impelir os imigrantes a permanecerem nas áreas produtoras) e a “imigração espontânea” (que visava “reestruturar a propriedade, a produção e sociedade rural” e atrair imigrantes que estivessem aptos a se tornarem proprietários e pudessem desenvolver uma agricultura camponesa). De qualquer maneira, estariam excluídos de uma ou outra forma de “imigração desejada”, os imigrantes proletários e todos aqueles considerados “marginais”. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850 – 1872. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, jul. 1988. p. 31-32.

336 Ibid., p. 31; MENEZES, Lená Medeiros de. Entre o ideal e o real: Os discursos sobre a imigração no

Brasil e o enfrentamento da ‘desordem’ (1870-1930). In: ______; TRONCOSO, Rogélio de la Mora (org.). Intelectuais na América Latina: pensamento, contextos e instituições. Dos processos de independência à globalização. Rio de Janeiro: UERJ/LABIME, 2014. p. 649-650.

337 LEITE, Joaquim da Costa. O Brasil e a imigração portuguesa (1855-1914). In: FAUSTO, Boris (org.).

seriam resultado direto ou indireto de profundas transformações econômicas e sociais advindas do desenvolvimento do capitalismo industrial338. Entre os principais fatores que tornaram a imigração uma possibilidade real para muitos portugueses estavam: o crescimento populacional; o avanço da produção capitalista no campo (com a queda do padrão dos pequenos proprietários, a divisão de terras comunais), o qual gerou uma enorme massa de trabalhadores não absorvíveis pelo mercado de trabalho; as crises conjunturais relacionadas, por exemplo, ao movimento das exportações ou aos limites da indústria artesanal; a expansão de vias férreas que facilitavam o acesso aos portos; e a proximidade cultural e linguística com o Brasil339. Consequentemente, a constante e crescente entrada de portugueses no porto do Rio de Janeiro fez com que, até 1920, “os lusitanos representa[ssem] cerca de ¾ da população estrangeira fixada na capital”340.

No que concerne à entrada dos portugueses no mercado de trabalho da cidade do Rio de Janeiro, em grande parte oriunda de localidades do Porto ou de aldeias do norte de Portugal, nota-se a presença de alguns tipos bem comuns de trabalhadores341. Muitos deles eram os chamados caixeiros, geralmente menores de idade ou jovens, que chegavam para trabalhar, em alguns casos temporariamente, em estabelecimentos comerciais ou de prestação de serviços, inserindo-se em círculos de solidariedade de parentes ou de conhecidos. Outros eram artesãos ou operários fabris, que vinham em busca de empregos, dado os limites na produção manufatureira lusitana342. Da mesma forma que a inserção de trabalhadores portugueses no mercado de trabalho carioca se deu também em outros setores, como no de transportes e de cargas, onde eram

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SERRÃO, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa. Análise Social, Lisboa, vol. VIII, n. 32, p. 597-617, 1970; PEREIRA, Miriam Halpern. A política portuguesa de emigração (1850-1930). Bauru: EDUSC; Lisboa: Instituto Camões, 2002. p. 19; MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890- 1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. p. 69-70.

339 MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e

expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. p. 69-70.

340 Ibid., p. 73. 341 Ibid., p. 71.

342 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no

Rio de Janeiro, 1850 – 1872. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, jul. 1988. p. 34-35; Eulália M. L. Lobo. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2001. p. 21.

numerosos os carroceiros e os cocheiros portugueses343. Mas compondo parte desse grande contingente de proletários urbanos, de origem lusitana, que se formava na cidade a partir de meados do século XIX, havia um sem-número de trabalhadores domésticos.

Embora, à primeira vista, seja difícil mapear o processo de inserção de imigrantes portugueses no serviço doméstico na cidade do Rio de Janeiro, é possível encontrar algumas pistas. Nesse sentido, um primeiro exemplo aparece evidente no pronunciamento realizado por Joaquim Antonio de Azevedo344 sobre os esforços para a colonização no Brasil, em uma sessão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional345, em dezembro de 1870. Ao fazer referência a informações obtidas de autoridades ligadas ao Consulado Português e às colônias de imigrantes na província do Rio de Janeiro na década de 1860, o autor do discurso afirmou o que se segue a respeito da imigração portuguesa na cidade do Rio de Janeiro:

O serviço doméstico e o exercício de pequenas indústrias eram até há bem pouco tempo exercidos no país pelos escravos, no entanto, a imigração espontânea, feita pelos portugueses, tem ido pouco a pouco conquistando esses serviços, a ponto de hoje não se encontrar nas pequenas industrias um só escravo. [...] ainda um outro serviço, que era privativo das pretas, está hoje sendo substituído em grande escala por mulheres brancas, qual o de amas de leite.346

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TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalhadores: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870 – 1906). – Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio/Casa Civil/ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2013. p. 265-267.

344 Joaquim Antonio de Azevedo (1819-1878), filho de pais trabalhadores, foi ourives, sendo nomeado

adido, em 1848, à contadoria geral de revisão do Tesouro Nacional, onde permaneceu por várias décadas, alcançando o cargo de conferente na Alfândega da Corte. Filiou-se à Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e lá exerceu a função de secretário-adjunto, ao mesmo tempo em que participava de inúmeras atividades da sociedade. Cf. MIZUTA, Celina Midori Murasse. O pensamento do comendador Joaquim Antonio de Azevedo acerca da educação, industrialização e civilização. Revista Travessias, Cascavel, vol. 6, n. 2, p. 321-333, 2012.

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A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) foi fundada em 1827 e em 1833 foi criada a sua revista, com o título O Auxiliador da Indústria Nacional. Entre os temas mais discutidos por este periódico estavam aqueles relacionados à questão da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. Além de incentivadora da indústria – conceito que era entendido de forma ampla, como um conjunto de operações que concorrem para a produção de riquezas – a SAIN foi o principal veículo de divulgação científica e tecnológica, organizando exposições nacionais, além de contribuir para o estabelecimento de várias instituições como a Sociedade de Colonização (1835), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) e o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1860). GUIMARÃES, Lúcia. Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 679-680.

346 Colonização chinesa (discurso pronunciado por Joaquim Antonio d’Azevedo, em 1 de dezembro de

Ainda que o discurso de Joaquim Antonio de Azevedo possa apresentar algum exagero, ao afirmar “não se encontrar nas pequenas indústrias um só escravo”, é certamente válida a sua observação acerca do aumento no número de portugueses que se inseriam no serviço doméstico a partir de meados do século. Até porque essa não era uma percepção solitária, pois outros contemporâneos fizeram observações sobre o assunto. Este é o caso de alguns viajantes que estiveram no Rio de Janeiro entre os anos de 1850 e 1870. Charles Expilly, por exemplo, em relatos sobre sua experiência na capital na década de 1850, afirmou que “depois da supressão do tráfico de negros, começa o tráfico de brancos, que é florescente hoje em dia”347. O autor, então, explicava em seu livro que:

Ocasionalmente, dois, três, quatro vezes por mês, o ‘Monitor de negócios’ – o Jornal do Commercio – publica em suas colunas, um anúncio assim concebido: ‘O público é avisado de que o barco português Amizade acaba de entrar em nosso porto com uma carga de colonos do Porto, São Miguel e Faial. Encontra-se entre os colonos, trabalhadores, meninos para quaisquer serviços, jardineiros, trabalhadores de todos os tipos, bem como amas, cozinheiras e criadas domésticas. Aviso para aqueles que querem feitores (comandantes, gerentes) e criados livres; O capitão do Amizade traz um sortimento completo que entregará a preços razoáveis. O barco está ancorado na ponta da Ilha das Cobras348.

Anúncios como esse descrito por Expilly eram, de fato, publicados com relativa frequência na imprensa carioca, em particular no Jornal do Commercio. Mas é interessante observar que, em alguns desses avisos, como o que o viajante faz referência, encontram-se detalhes importantes sobre a origem dos imigrantes que estavam disponíveis para o serviço doméstico. Note-se que, embora fossem portugueses, o anúncio aludido por Expilly informa que os chamados “colonos” provinham do “Porto, São Miguel e Faial”. Ou seja, muitos daqueles imigrantes vinham das ilhas portuguesas do arquipélago de Açores. Esse é um detalhe interessante, pois a imigração portuguesa direcionada para o serviço doméstico parece ter se constituído, em grande parte, por pessoas originárias daquela região do território português. Não por acaso o uso da designação “das Ilhas”, para identificar imigrantes vindos dos Açores, passou a ser frequente em anúncios de aluguel de trabalhadores domésticos publicados

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EXPILLY, Charles. Le service domestique – La traite des blancs. In: ______. Le Brésil tel qu’il est. Paris: Arnauld de Bresse, Libraire-Éditeur, 1862. p. 208. (Grifos do autor). Tradução minha.

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em grandes jornais diários, como Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro349, entre os anos 1850 e 1870:

Uma moça das Ilhas deseja-se arranjar para tomar conta do governo da casa de alguma senhora viúva, ou de pouca família; quem precisar dirija-se à Ilha das Cobras, porto de Moçambique, n. 100350.

Aluga-se uma senhora das Ilhas, de 30 a 40 anos de idade, esta senhora acha- se desarranjada desde o dia 15 do corrente, por ter saído para o Porto a família a quem a mesma senhora servia; na Rua de Bragança, n. 34, e agora acha-se para tratar na Rua de S. Pedro n. 89351.

Um homem das Ilhas, de 50 anos de idade, deseja arranjar-se em alguma casa particular de guarda-portão, ou em alguma chácara ou jardim; quem dele precisar dirija-se à Rua das Flores, defronte do n. 78352.

Uma senhora viúva, de boa conduta, chegada há pouco tempo das Ilhas, deseja arranjar-se em alguma casa de família, para coser ou tomar conta do governo da casa; a dita senhora tem uma filha de 12 a 13 anos, que já cose alguma coisa, e deseja leva-la em sua companhia, mas se não convier a qualquer pessoa que precise só da mãe, também se arranjarão separadas; a menina é própria para companhia de uma senhora sozinha; a que convier dirija-se à Praça da Saúde n. 59353.

Precisa-se de moça das Ilhas para lavar roupa; na Rua de Matacavallos n. 3, chácara354.

Casal – Um casal ultimamente chegado das Ilhas dos Açores deseja arranjar- se para uma boa casa; onde a senhora preste serviços à família e o homem cuide de chácara, jardim, ou outro qualquer serviço de casa; trata-se na Rua de D. Manuel, n. 46355.

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O Diário do Rio de Janeiro circulou na cidade de junho de 1821 a outubro de 1878. Foi fundado por Zeferino Vito de Meirelles e constituiu-se o primeiro diário e jornal informativo a circular no Brasil. Segundo Werneck Sodré, “o Diário, ocupava-se quase tão somente das questões locais, procurando fornecer aos leitores o máximo de informação. Inseria informações particulares e anúncios: aquelas tratavam de furtos, assassinatos, demandas, reclamações, divertimentos, espetáculos, observações meteorológicas, marés, correios; estes tratavam de escravos fugidos, leilões, compras, vendas, achados, aluguéis e, desde novembro de 1821, preços de gêneros”. Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 50-51.

350

ANÚNCIOS, Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano XXXIII, n. 12, 18 jan. 1854, p. 4. (Grifos

meus). 351

ANÚNCIOS, Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ano XXXVII, n. 74, 17 mar. 1857, p. 4. (Grifos meus).

352 ANÚNCIOS, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano XXV, n. 17, 17 jan. 1850, p. 4. (Grifos meus).

353 ANÚNCIOS. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, ano XXVI, n. 41, 10 fev. 1851, p. 4. (Grifos meus).

354

ANÚNCIOS. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano XXXVII, n. 242, 02 set. 1862, p. 4. (Grifos

meus). 355

Além disso, provavelmente como consequência da volumosa entrada de trabalhadores originários das ilhas portuguesas, no período seguinte, estabeleceu-se certa associação entre o trabalho, em geral, e o serviço doméstico, em particular, e tais imigrantes. Isso fica evidente na fala de outro viajante, como foi o caso do holandês Josef van Halle, que, em livro publicado em 1876, deixou claro aspectos da ideologia do trabalho e o viés depreciativo da forma como se concebiam as relações existentes entre o serviço doméstico e alguns tipos de trabalhadores.

Quantas vezes não tenho eu ouvido nas minhas viagens, moços ricos e mesmo pobres, exprimirem-se a respeito do trabalho dizendo: o trabalho é feito para os burros, os escravos e as pessoas grosseiras da sociedade, vindas de Portugal, Açores e outros lugares da Europa para servir-nos e para o que são bem pagas356.

Considerando o exposto, é preciso salientar o fato de que grande parte dos imigrantes portugueses oferecidos para o serviço doméstico serem oriundos de regiões específicas do território insular lusitano, pode ter, na verdade, ligações com práticas ilegais de agenciamento e de transporte de trabalhadores estrangeiros. Segundo o historiador Luiz Felipe Alencastro, a imigração açoriana relaciona-se com redes organizadas de contratação e de translado de estrangeiros, que funcionavam de longa data entre os portos brasileiros e portugueses. Tais redes teriam se estabelecido por volta dos anos 1830 e 1840, quando ocorreu uma reativação dos circuitos de tráfico de africanos, com a decretação do fim do comércio legal de escravos, em 1831357, e a criação de sociedades de colonização, que visavam o transporte de colonos estrangeiros para o Brasil. Sendo assim, muitos imigrantes, em particular os oriundos da região insular dos Açores, que chegavam ao Rio de Janeiro por volta das décadas de 1850 e 1860, vinham por intermédio de circuitos ilegais de transporte marítimo, os quais eram, em muitos casos, resultado da reorganização de operações anteriormente promovidas por negociantes ligados ao tráfico negreiro.

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HALLE, Joseph A. A. van. Impressões de minhas viagens no Brasil. Rio de Janeiro: Veritas- Actualidades, 1876. p. 20. Apud, SOARES, Luis Carlos. O “povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: 7 LETRAS/FAPERJ, 2007. p. 81.

357 A Lei nacional de 7 de novembro de 1831 declarava livre os escravos oriundos de fora do Império e

proibia a entrada de escravos no país, prevendo penas para quem vendesse, transportasse ou comprasse africanos recém-chegados. Cf. BRASIL. Lei de 7 de novembro de 1831. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/ legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-norma- pl.html>. Acesso em: 02 dez. 2015.

De acordo com Luiz Felipe Alencastro, a partir da década de 1830 houve uma “sobreposição entre o tráfico de escravos e o tráfico de engajados”. Segundo o autor, o termo ‘engajado’ apareceu em documentos oficiais brasileiros a partir de 1835 e era utilizado para designar os estrangeiros, geralmente açorianos, vinculados a contratos específicos de trabalho358. Isso porque boa parte dos imigrantes portugueses ligados ao chamado “engajamento” estariam submetidos a uma espécie de “servidão por dívida”. Em troca das despesas de transporte marítimo – geralmente fixadas em um valor maior que o usual –, os imigrantes negociavam o seu “passe” com os capitães e representantes das embarcações que viam em direção ao Brasil. Estes capitães, por sua vez, estabeleciam contratos com brasileiros para a exploração do trabalho dos estrangeiros por um período determinado de tempo, de modo que estes pudessem reembolsar, com a prestação de serviços, as despesas de transporte e de sustento durante a travessia atlântica. Segundo Alencastro, os imigrantes portugueses engajados vieram para o Brasil por meio de um procedimento migratório particular, que envolveu “a reciclagem do grande comércio negreiro luso-brasileiro”359. Essa tese foi formulada pelo autor após pesquisa em documentação portuguesa que revelou a existência de conhecidos traficantes de escravos “transportando engajados açorianos para o Brasil”360; bem como relatórios consulares do início dos anos 1850 que afirmavam que “a navegação de Portugal procurou suprir com emigrantes do Porto e dos Açores o vazio deixado pela extinção do tráfico negreiro”361.

Por não terem recursos para o pagamento das dívidas contraídas para a viagem em direção ao Brasil, muitos imigrantes portugueses e, sobretudo, açorianos vinham como engajados362 e tinham como destino serem colonos em fazendas do interior ou se estabelecerem como trabalhadores urbanos em espaços como os da cidade do Rio de Janeiro. No caso do engajamento, havia, em geral, duas formas mais conhecida de

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Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no

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