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1.1 Definindo o trabalho de servir

1.1.1 Trabalho ou serviço doméstico?

No caso das opções para se nomear adequadamente as relações de trabalho de “tipo doméstico”, as possibilidades em língua portuguesa geralmente se restringem às noções de “trabalho doméstico” ou “serviço doméstico”. Embora à primeira vista, e à luz de uma perspectiva contemporânea, essas expressões não apresentem muitas diferenças, um olhar mais detido talvez possa revelar algumas questões que caracterizam um termo como mais apropriado do que outro para tratar do tema em análise. Em primeiro lugar, é preciso pontuar que, se na produção historiográfica brasileira não há uma clara diferenciação a esse respeito, o que se justifica até mesmo pelo fato do tema estar ainda ganhando espaço na produção histórica nacional; de outra parte, na produção historiográfica internacional, utiliza-se amplamente a designação “serviço doméstico”. Autores em língua espanhola, italiana, francesa e, especialmente, inglesa, costumam utilizar o vocábulo correspondente em cada idioma para “serviço” de modo a qualificar as relações de trabalho doméstico. E, certamente, isso não se dá de maneira aleatória.

Um ponto a se considerar a esse respeito é que a expressão “serviço doméstico” parece ter sido mais utilizada no passado do que “trabalho doméstico”. Em diferentes documentos de época, o que se encontra quando se estuda o tema é a ampla utilização da designação “serviço doméstico”, o que é percebido tanto em documentos em língua

78 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba:

portuguesa, como em outros idiomas, como francês, inglês e espanhol79. Ademais, pode-se aventar a hipótese de que o uso do termo “serviço doméstico”, para identificar não só as relações de trabalho doméstico, como todo um universo social formado por seus trabalhadores, se consagrou oficialmente entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Isso porque, por um lado, como se terá oportunidade de discutir, foi aproximadamente naquele longo contexto histórico – com variações de um lugar para outro – que o setor do mundo do trabalho composto pelos domésticos ganhou maior visibilidade pública, sobretudo por meio da imprensa. Visto como problema ou enfrentando um período de crise, o chamado “serviço doméstico” foi, naquele momento, recorrentemente tratado em impressos de diversas naturezas, como em periódicos, livros ou manuais femininos80. Por outro lado, “serviço doméstico” tornou-se categoria ocupacional em recenseamentos, especialmente em arrolamentos populacionais feitos acerca da estrutura ocupacional de determinados países ou regiões. Em decorrência de dificuldades como a classificação ocupacional feminina e infantil, os problemas relacionados à construção dos parâmetros censitários e às indefinições em torno das ocupações, a categoria “serviço doméstico” foi mantida em vários recenseamentos do século XIX e do século XX81.

Ao se olhar, por um momento, para esse ponto em particular, é preciso levar em conta algumas questões. Do ponto de vista internacional, é evidente, como discutido por

79 Alguns exemplos expressos em títulos de documentos são: HENDERSON, Helen Iselin. The Problem

of Domestic Service. Farand Near, v. 4, n. 45, 1894. p. 126. Disponível em: <http://tinyurl.galegroup.com/ tinyurl/HQJH7>. Acesso em: 10 ago. 2014. MME, M. Des Améliorations Du Service Domestique. Le Bulletin Continental, n. 10, 1879. p. 76. Disponível em: <http://tinyurl.galegroup.com/ tinyurl/HS4H0>. Acesso em: 11 ago. 2014. BIBLIOTECA de Castilla y León. Cartilla de sirvientes: reglamento para La vigilância del servicio doméstico. Ayuntamiento constitucional de Segovia. Segovia: Imp. de F. Santiuste, 1892. Disponível em: <http://bibliotecadigital.jcyl.es/i18n/consulta/registro.cmd?id=1141>. Acesso em: 06 maio 2015.

80 A historiadora francesa Michelle Perrot, indica alguns exemplos de produções literárias e artísticas

francesas que se tornaram conhecidas mundialmente e cujas personagens principais eram criados domésticos, como: o conto Um coer simple, de Gustave Flaubert (1877); o romance Le journal d’une

femme de chambre, de Octave Mirbeau (1900); e a HQ Bécassine, em La Semaine de Suzette (1905).

Cf. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. p. 118. No caso brasileiro, Sônia Roncador apresenta um interessante estudo literário e histórico acerca das representações das criadas domésticas na obra de Júlia Lopes de Almeida, que incluía tanto romances, como contos e manuais domésticos: RONCADOR, Sônia. As criadas de Júlia: empregadas domésticas no imaginário literário da Belle Époque brasileira. In: ______. (org.). A doméstica imaginária: literatura, testemunhos e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasília (DF): Editora da Universidade de Brasília, 2008. p. 17-76.

81 HIIL, Bridget. As mulheres, o trabalho e o censo: um problema para historiadores da mulher. Vária

Raffaella Sarti, que a classificação dos trabalhadores que prestavam serviços domésticos envolveu muitas complexidades nos primeiros recenseamentos europeus82. Considerando o estudo de Matthew Woollard sobre a classificação dos criados/empregados domésticos na Inglaterra e no País de Gales, entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, nota-se que a categoria “serviço doméstico” tornou-se, algumas vezes, uma forma utilizada pelos recenseadores ingleses para identificar uma série de ocupações que por si já apresentavam indefinições e problemáticas sociais83. A esse respeito, o autor afirma que foram numerosas as variações na forma como os sistemas de classificação apresentavam as profissões que constituiriam a categoria ocupacional “serviço doméstico”, o que, segundo ele, teria relações com os obstáculos existentes para definir quem seria ou não trabalhador doméstico na época (estariam incluídos nesta categoria trabalhadores agrícolas, parentes e agregados, donas de casa e mulheres “do lar”?). Para Woollard, as diferenças no processo de classificação expressariam, até mesmo, as mudanças sociais ocorridas em torno daquele setor ocupacional, que formava um dos mais importantes da economia e da sociedade inglesas naquele período84.

Além desse, pode-se indicar como o exemplo informações trazidas pela historiadora Cecília Allemandi, em estudo sobre o serviço doméstico em Buenos Aires na segunda metade do século XIX e primeiros anos do século XX. A autora afirma que

82 SARTI, Raffaella. Who are servants? Defining domestic service in Western Europe (16th - 21st

Centuries). In: PASLEAU, Suzy; SCHOPP, Isabelle; SARTI, Raffaella (org.). Proceedings of the Servant Project. Liège: Ed. da Univérsité de Liège, 2005/2006. v. 2. p. 3-59. Disponível em: <http://www.people.uniurb.it/RaffaellaSarti/3.%20Raffaella%20Sarti-Who%20are%20servants-

Proceedings%20of%20the%20Servant%20Project-Final%20Version.pdf>. Acesso em: 24 maio 2015.

83

WOOLLARD, Matthew. The Classification of Domestic Servants in England and Wales, 1851–1951. In: PROCEEDINGS OF THE SERVANT PROJECT, 2., 2002, Oslo. Seminar... Oslo: 2002.

Disponível em:

<http://privatewww.essex.ac.uk/~matthew/Papers/Woollard_ClassificationofDomesticServants.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2015.

84 WOOLLARD, Matthew. The Classification of Domestic Servants in England and Wales, 1851–1951.

In: PROCEEDINGS OF THE SERVANT PROJECT, 2., 2002, Oslo. Seminar... Oslo: 2002. Disponível em: <http://privatewww.essex.ac.uk/~matthew/Papers/Woollard_ClassificationofDomestic Servants.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2015. Cabe aqui mencionar que estudos anteriores já apontavam para as complexidades na construção de categorias ocupacionais promovidas pelos censos. Para alguns, “serviço doméstico” ou “empregado doméstico” poderiam ser categorias “guarda-chuva”, cobrindo diferentes tipos de ocupações ou caracterizando um subemprego. Cf. HIGGS, Edward. Women, occupations and work in the Nineteenth Century Censuses. History Workshop Journal, n. 23, p. 59- 82, 1987, apud. HILL, Bridget Irene. Algumas considerações sobre as empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e do Terceiro Mundo de hoje. Varia História, Belo Horizonte, n. 14, p. 22- 33, set. 1995. p. 26-27.

nos censos argentinos do período são inúmeras as dificuldades para se delimitar as profissões constituintes do serviço doméstico85. De acordo com Allemandi, isso se deveu, em grande parte, ao fato de que a denominação “serviço doméstico” por vezes condensava profissões pertencentes a distintos setores de atividade, como no caso de cozinheiros e ajudantes de cozinha (que poderiam trabalhar tanto em domicílios como em estabelecimentos comerciais ou de serviços) ou dos cocheiros (que poderiam ser tanto particulares quanto da rede de transportes urbanos)86. E assim como em outros lugares do mundo, no Brasil, a categoria classificatória “serviço doméstico” foi caracterizada por indefinições e, consequentemente, dúvidas sobre os resultados alcançados nos arrolamentos populacionais – ainda que inexistam estudos sobre o assunto. Nesse caso, pode-se apenas lembrar que tal categoria esteve presente em todos os primeiros recenseamentos brasileiros, ou seja, os censos de 1872, 1890, 1906 e 1920.

Segundo a historiadora Eulália Lobo, considerando a classificação socioprofissional do censo de 1870, restrito à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o serviço doméstico, que era a segunda categoria mais numerosa – depois daquela formada pelos “sem profissão definida” –, poderia encobrir uma espécie de “desemprego disfarçado”87

. Já no primeiro recenseamento geral do Brasil, de 1872, observa-se que além do grupo profissional denominado de “serviço doméstico”, encontra-se a categoria constituída pelos “criados e jornaleiros”, que provavelmente abrigava trabalhadores remunerados que estavam na condição de servir, embora nem sempre fossem considerados “domésticos”88

. Além disso, nos primeiros recenseamentos brasileiros, muitas imprecisões foram encobertas no que diz respeito a essa categoria ocupacional, como no caso das donas de casa que podem ter sido classificadas como pertencentes ao grupo do “serviço doméstico”, mas que não necessariamente eram trabalhadoras que prestavam serviços em outros domicílios. Um indicador da existência desses problemas encontra-se nas orientações que circularam na imprensa quando da

85 ALLEMANDI, Cecilia L. El servicio doméstico en el marco de las transformaciones de la ciudad de

Buenos Aires, 1869-1914. Diálogos, Maringá, v. 16, n. 2, p. 385-415, maio/ago. 2012.

86 Ibid., p. 401.

87 LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial

e financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978. vol. 1, p. 235.

88 IBGE. Recenseamento do Brasil em 1872. Rio de Janeiro: Tip. G. Leuzinger, [1874?]. 12 v.

Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=225477>. Acesso em: 21 maio 2015.

tentativa de recenseamento de 1910, que não se realizou. Em julho de 1910, no jornal carioca O Paiz, foram publicadas instruções para a maneira como a população e os recenseadores deveriam preencher as questões do censo. Entre essas orientações encontrava-se uma que claramente fazia referência aos problemas de definição do serviço doméstico: “[...] em relação às mães de família, as filhas de família, por exemplo, que não devem declarar como sua ocupação “serviço doméstico”, ficando esta designação exclusivamente reservada aos criados ou fâmulos, assalariados ou não”89

. Confusões à parte, é possível concluir que a expressão “serviço doméstico” tornou-se, de certa forma, “oficial” no sentido da identificação de determinado segmento ocupacional ao longo dos anos oitocentos e no início dos novecentos, em grande parte do Ocidente. Mas, voltando à questão da preferência pelo uso do termo “serviço doméstico”, como forma de denominação das relações de trabalho doméstico, uma terceira possibilidade a ser considerada, e talvez a mais importante, seja a de que essa pode ser uma maneira mais efetiva de diferenciação entre os tipos de “trabalhos domésticos” existentes. Ou seja, entre o trabalho doméstico que é realizado nos domicílios por um ou mais membros de um núcleo familiar para a subsistência desse mesmo grupo social; e o trabalho doméstico que é realizado por terceiros no domicílio alheio, por meio de atividades de asseio, de cuidado e de manutenção de um núcleo familiar que não é o seu de origem. Neste último caso, como esclarece a socióloga colombiana Magdalena Léon, o “trabalho doméstico” se converte em “serviço doméstico”, que pode ou não ser remunerado monetariamente, dependendo do contexto histórico e da formação social90. O uso da designação “serviço doméstico” pode assim auxiliar na compreensão e na distinção de trabalhos que, embora sejam de natureza semelhante, são marcados por relações sociais diferentes.

No âmbito do pensamento social, o debate sobre a natureza do trabalho doméstico, ou seja, daquele que é realizado por um ou mais membros de um núcleo familiar – majoritariamente mulheres – com finalidades reprodutivas, é antigo e

89 MIRANDA, Rodolpho. Instruções preliminares para a execução do serviço de recenseamento de 1910.

O Paiz, Rio de Janeiro, 2 jul. 1910. p. 2.

90

LEÓN, Magdalena. Trabajo doméstico y servicio doméstico em Colombia. In: CHANEY, Elsa M.; CASTRO, Mary Garcia (org.). Muchacha, cachifa, criada, empleada, empregadinha, sirvientay... más nada: Trabajadoras domésticas em América Latina y el Caribe. Caracas: Editorial Nueva Sociedad, 1993. p. 281-302.

inconcluso. Essa discussão foi levantada, sobretudo nos anos 1970, a partir da emergência do movimento feminista, em especial por feministas marxistas, que desejavam desvendar a base material da opressão das mulheres, tendo em vista o caráter feminino de realização das tarefas domésticas91. O debate inicialmente se deu no sentido de se pensar de que forma o trabalho doméstico, considerando os produtos gerados, as relações de trabalho e os seus trabalhadores, poderia ser analisado a partir do quadro teórico oriundo do pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. Foram várias as posições – muitas vezes opostas – colocadas por cientistas sociais que discutiram o assunto, e os consensos se estabeleceram apenas no que se referia às especificidades do trabalho doméstico, que não estaria sujeito “às mesmas relações de produção que a produção de mercadorias”, mas mesmo assim desempenharia um papel importante na reprodução das relações de produção capitalista92.

A partir desse debate gerado no interior do marxismo, ao longo dos anos 1970, o tema do trabalho doméstico ganhou espaço no pensamento social e em várias sociedades ocidentais ainda que grandes questões tenham ficado sem respostas. Muito se discutiu, por exemplo, se o trabalho doméstico geraria ou não mais-valia, mas pouco se avançou no sentido de refletir acerca da predominância das mulheres no âmbito do trabalho doméstico. Segundo a economista Susan Himmelweit, foi “reconhecido que a sociedade capitalista depende de uma divisão do trabalho entre a produção remunerada de mercadorias e o trabalho doméstico não remunerado, mas não se explicou por que essa divisão coincidiu com uma divisão sexual do trabalho”93

. De qualquer maneira, em decorrência desse debate, numerosos estudos empíricos foram realizados sobre o trabalho doméstico e os avanços na tecnologia doméstica, assim como cresceram as discussões em torno de reivindicações de salários para as donas de casa, que constituiriam, na visão de alguns, o setor mais explorado da classe trabalhadora.

No Brasil, esse debate foi abordado pela socióloga Heleieth Saffioti, que, na esteira de seus estudos pioneiros sobre a situação das mulheres na sociedade de

91 Cf. HIMMELWEIT, Susan F. Trabalho doméstico. In: OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom

(org.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. p. 775-777.

92 Ibid., p. 776. Ver também: Id. Trabalho doméstico. In: BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionário do

pensamento marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2012. p. 566-569.

93 Id. Trabalho doméstico. In: OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionário do

classes94, procurou estudar as relações entre o trabalho doméstico e o capitalismo95. Em estudo desenvolvido no final dos anos 1970 sobre as trabalhadoras domésticas em Araraquara, no interior paulista, a autora refletiu sobre o papel do trabalho doméstico remunerado no desenvolvimento dependente do modo de produção capitalista no Brasil. Recuperando o debate internacional, que se deu especialmente nos chamados países desenvolvidos, em que a preocupação era pensar no papel das donas de casa que se dedicam exclusivamente ao lar, realizando o trabalho doméstico de forma gratuita, Saffioti chamou a atenção para o fato de que, no caso brasileiro, esta discussão não deveria perder de vista o emprego doméstico96. Segundo a autora, a presença de milhões de mulheres em atividades domésticas remuneradas no Brasil revelaria, na verdade, “um profundo significado para o padrão de desenvolvimento do capitalismo brasileiro”97, marcado por enorme desigualdade na distribuição da renda nacional. Afinal, ao analisar um contexto em que ocorreu um acelerado processo de industrialização e uma expansão do trabalho feminino, o setor de serviços, em especial o emprego doméstico, cumpriu papel importante na absorção de parte substancial do contingente de trabalhadoras disponível que os setores mais dinâmicos da economia capitalista não conseguiram absorver.

À luz dessa análise, Heleieth Saffioti defendeu que o emprego doméstico, no modo de produção capitalista contemporâneo, seria, então, uma forma de exploração de trabalho não capitalista, mas que contribuiria para a reprodução ampliada do capital98. Ainda que tenha sido engendrado pelo capitalismo, “com o assalariamento da força de

94 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São

Paulo: Expressão Popular, 2013.

95

Id. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978.

96 Ibid., p. 193-194. 97 Ibid., p. 192.

98 Discutindo sobre a coexistência dinâmica e integrada de formas não capitalistas de trabalho com formas

de trabalho tipicamente capitalistas, Saffioti afirma: “O capitalismo não tem condições nem interesse em eliminar formas não capitalistas de atividades econômicas, já que nelas está contida uma força de trabalho absorvível, pelo menos parcialmente, pelas atividades capitalistas em momentos de prosperidade econômica, e que deverá encontrar maneiras de sobreviver quando o setor capitalista da economia repele e expulsa mão-de-obra. Nestes momentos, as formas não capitalistas de atividades econômicas possibilitam uma redistribuição parcial da renda nacional, criando as condições para a sobrevivência de certos grupos e amenizando ou pospondo a crise de realização da mais-valia”. Cf. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 184-185.

trabalho específica para desincumbir-se de serviços domésticos em residências particulares”99

, o trabalho doméstico remunerado não estaria subjugado diretamente ao capital, sendo o seu salário pago com renda pessoal100. As atividades realizadas por trabalhadores empregados em domicílios para a prestação de serviços domésticos, que resultam em bens e serviços consumidos pelo empregador e/ou sua família – diferentemente daqueles que realizam atividades domésticas em bares, restaurantes ou hotéis –, não poderiam, assim, ser denominadas como capitalistas. Nessa perspectiva, o trabalho realizado pelos empregados domésticos não seria um trabalho produtivo, pois ainda que haja um contrato para a venda da força de trabalho a uma unidade familiar, o trabalho doméstico remunerado não produz mercadorias para serem comercializadas. Contudo, segundo Saffioti, “as atividades domésticas contribuem para a produção de uma mercadoria especial – a força de trabalho – absolutamente imprescindível à reprodução do capital”, ao criar condições para sua produção e reprodução101

.

É importante considerar que, se Saffioti recuperou o debate internacional contemporâneo sobre a natureza das relações de trabalho doméstico, ela o fez pensando no significativo papel do trabalho doméstico remunerado – que a autora denomina de emprego doméstico – na economia e na sociedade brasileiras contemporâneas e nas

99 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978. p.

191.

100 Nesse ponto vale mencionar uma consideração presente nos manuscritos econômicos de Marx escritos

entre 1857 e 1858, em que o autor faz uma análise sobre a troca de prestação de serviços pessoais por renda: “Na própria sociedade burguesa, faz parte dessa rubrica ou categoria toda troca de prestação de serviço pessoal por renda – do trabalho para o consumo pessoal, cozinha, costura etc., jardinagem etc., até as classes improdutivas, funcionários públicos, médicos, advogados, intelectuais etc. Todos os criados domésticos etc. Por meio de suas prestações de serviços – com frequência, impostos – todos estes trabalhadores, do mais humilde ao mais elevado, conseguem para si uma parte do produto excedente, da renda do capitalista. Todavia, não ocorreria a ninguém imaginar que, por meio da troca de sua renda por tais prestações de serviços, i.e., por meio de seu consumo privado, o capitalista se põe como capital. Com essa troca, ao contrário, ele dissipa os frutos de seu capital. O fato de que as próprias proporções em que a renda é trocada por semelhante trabalho vivo são determinadas pelas leis de produção universais nada altera na natureza da relação”. Cf. MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 622-623.

101

Nesses termos, os empregados domésticos são alvos de um tipo de exploração específica: “Pode-se extenuar suas forças e reduzir seu período produtivo de vida, sem, contudo, converter esta ‘exploração’ em capital. Todavia, a empregada doméstica substitui na residência, muitas vezes, a dona de casa, determinada como trabalhadora do sistema capitalista. Neste caso, a empregada é vítima de uma ‘exploração’ mediada pela exploração típica do modo de produção capitalista. Com efeito, seus salários

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