• Nenhum resultado encontrado

3. Implicações (AS)Sintomáticas do HIV e da Aids

3.2. Impacto Científico: Vírus Letal!

Com o advento do HIV, é memorável o impacto que a ciência teve em sua capacidade para estudar, aprimorar e contribuir para prolongar e melhorar a qualidade de vida de pessoas que estavam adoecendo e morrendo pelo vírus, além de aperfeiçoar as condições técnico- científicas dos profissionais da saúde.

Entretanto, como afirma Greco (2008, p. 75), essa vitória científica “não se reverteu em benefício mundial, mas ficou restrita especialmente aos países centrais, industrializados, trazendo à berlinda a grande necessidade de discutir eticamente o acesso do progresso científico para todas as pessoas que dele necessitem”

É na discussão ética da ciência que se debruça o autor, especialmente nas justificativas utilizadas para diminuir as exigências éticas em pesquisa com seres humanos, principalmente em países subdesenvolvidos por serem considerados pobres e não terem o mesmo acesso aos tratamentos ideais, além da pressão em promover respostas rápidas que controlassem a disseminação da infecção.

Assim, a Declaração de Helsinque (1996) na qual expõe Greco (2008), que foi tida como um dos principais documentos éticos de referência, é contestada pela comunidade científica de modo a “autorizar” pesquisas que pudessem trazer riscos para pacientes soropositivos como em um estudo que pretendia prevenir a transmissão materno-fetal do HIV realizados em países da África, na República Dominicana e na Tailândia que em seus procedimentos estavam previstos a administração de placebo (Greco, 2008).

A partir disto, gerou-se uma tensão no campo científico no qual argumentos falaciosos vieram à tona com a intenção de alterar alguns itens da Declaração de Helsinque com vistas a permitir a utilização de placebo, principalmente em países que não houvesse tratamento eficaz disponível (Greco, 2008).

Felizmente, a proposta foi rejeitada, mas nos permite visualizar as manobras do “dispositivo da Aids” em que, pautada por um regime antiético e de extrema violência a aqueles em situação de vulnerabilização, mobilizou o campo científico sobre a justificativa de “pelo bem da ciência e do controle da epidemia”, principalmente em uma época em que a infecção era tida como sinônimo de homossexualidade.

Tal associação advém da validação de uma nomenclatura (GRID – Gay Related Immune Deficiency) para a doença pelos meios científicos que só deixou de utilizada por conta da pressão exercida por grupos que lutavam pelo reconhecimento de direitos dos homossexuais nos Estados Unidos. Contudo, o campo científico ainda continuou a caracterizá-la de câncer gay reforçando, através do discurso médico, a relação entre aids e homossexualidade desde o princípio da doença (Daniel & Parker, 1991).

Demonstra-se, portanto, que o conhecimento científico foi construído sobre a linguagem e o preconceito tomou mais importância do que a própria pessoa que adoece por HIV (Camargo Jr., 1994) indo ao encontro do que Wittgenstein (1991) já elucidava de que não há como pressupor que qualquer referência a objetos possa ser feita fora do âmbito de algum tipo de linguagem.

Nesta época, homossexualidade era o termo dado à todas as orientações sexuais não heterossexuais e gêneros não cisgêneros. Assim, era incorporado nesse grupo também as pessoas trans já que o debate sobre identidade de gênero e orientação sexual ainda estava em ascensão e não haviam convenções sociais deliberadas como na atualidade. Contudo, é preciso destacar a importância que as travestis tiveram para a luta e construção de respostas para a doença (Pelúcio, 2009).

Em contrapartida, não se pode esquecer a atuação da FDA – Food and Drugs Administration (FDA-EUA), orgão responsável pela aprovação e pelo registro de medicamentos nos Estados Unidos. Em 1986, a FDA cometeu várias infrações em nome da ciência na qual alegava estar preocupada em “assegurar a qualidade dos dados” (Greco, 2008, p. 79), e não daqueles que necessitavam de medicamentos eficazes para não virem a óbito, já que a expectativa de vida era mínima como pode ser observado no filme Clube de Compras

O filme é baseado em uma história real e faz fortes críticas a FDA, em seus testes com a droga experimental AZT, pois se percebeu que com o frequente uso desta droga, ela destruía todas as células, infectadas ou não, da pessoa soropositiva. Porém, o impasse da FDA de não autorizar a compra de remédios “ilegais” nos Estados Unidos gera um colapso para as pessoas soropositivas que formam “clube de compras” que ofereceria outro medicamento vindo do México, já que estavam desamparados pelo governo dos EUA e pela FDA que considerava estas práticas clandestinas e ilegais.

Portanto, o que estaria intrínseco nestas manobras operadas pela Ciência e principalmente pela FDA considerando o contexto de surgimento do HIV e as primeiras populações diagnosticadas? É certo que o dispositivo da Aids e da Sexualidade, na tentativa de captura destes corpos considerados poluídos e sentenciados a morte, abriu o campo para as biopolíticas de extermínio de uma Ciência que estava interessada em fazer experimentos com seres humanos como se estes fossem meros ratos de laboratório, ou o que Valle (2010, p. 37) aponta em seu estudo etnográfico com pessoas soropositivas que, “as expectativas geradas pela circulação global de saberes, práticas e terapêuticas farmacológicas não impedia que houvesse, muitas vezes, a criação de uma imagem peculiar e negativa de “cobaia” da Aids”.

Grande parte destas incertezas e dúvidas científicas fazem parte do mundo atual que na tentativa de encontrar uma cura efetiva para a doença vem explorando e desenvolvendo novas tecnologias biomédicas, ao passo, que do passado citado até a presente sociedade, diversas práticas clínicas tem tomado o status de “doença crônica” para o HIV (Valle, 2010; UNAIDS, 2017), o que pode ser prejudicial para a adesão ao tratamento se considerarmos que a dinâmica do vírus não se assemelha a outras doenças crônicas como a diabetes e a hipertensão.

A única proximidade consistiria então na frequência da utilização de remédios para controle do agente patológico, mas tomando os aspectos fisiopatológicos e de tratamento da

doença, estas em nada se aproximam em termos de cronicidade. Contudo, conforme Siegel & Lekas (2002), essa compreensão gerou um impacto considerável na vida de pessoas soropositivas, diminuindo o temor sobre a iminência da morte e possibilitando a permanência de relações sociais, de trabalho e afetivas na vida.

Mas, é importante não deixar de lado a preocupação com os fatores de proteção no desenvolvimento destas pessoas, os quais podem estar contribuindo para sua saúde, bem- estar, qualidade de vida e resiliência. Ou seja, olhar para além da ingestão de remédios indo ao encontro de uma compreensão mais ampla que leve em consideração outros aspectos como vínculo com a equipe de saúde, acesso à informação, hábitos, necessidades pessoais e sociais, estigmas, preconceitos entre outros. (Lima et. al., 2015).