• Nenhum resultado encontrado

Territorialidade em Campo-Tema: SAE/Natal e Alguns Conflitos!

4. O Construcionismo Social em Diálogo com a Hermenêutica Biográfica

4.3. Percursos e Procedimentos Metodológicos

4.3.1. Territorialidade em Campo-Tema: SAE/Natal e Alguns Conflitos!

Era quinta-feira, acordei as 4h30 da manhã para visitar o Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids e Hepatites Virais (SAE)/Alecrim-Natal com o intuito de me aproximar a territorialidade do campo-tema para tirar notas e ideias que pudessem me auxiliar na construção do percurso metodológico do projeto de pesquisa, conhecer o seu funcionamento e fazer o encaminhamento do meu próprio tratamento.

Tomei um banho, troquei de roupa, preparei um rápido café e apanhei o ônibus 54 na Vila de Ponta Negra para o Alecrim às 5h15. Ao chegar na instituição às 6h30 me deparo com uma grande fila, um misto de silêncio e pequenos grupos compartilhando entre si aspectos de suas vidas e tratamentos.

Bastava uma pessoa chegar que todos os olhares se direcionavam a ela percorrendo seus comportamentos: “Quem é o último da fila?”. Assim funcionava a organização dos usuários que controlavam um a um para garantir que a ordem de chegada fosse mantida, ainda que em suas falas, sempre acontecia de alguém tentar burlar o modus operandi do grupo para passar na frente.

Todos aparentavam certo cansaço no olhar de quem estava há muito tempo esperando, eis que uma usuária reclama: “Não é certo a gente acordar 4h da manhã para vir aqui,

esperar abrir as 7h para pegar ficha para marcar consulta e muitas vezes não conseguir”.

Tais palavras geraram um sentimento de revolta entre as pessoas ao seu redor que concordaram e compartilharam do mesmo sentimento.

Sete horas, as portas da instituição se abriram e um alvoroço começou a se formar. A psicóloga do SAE se dirigiu até a porta do setor barrando a passagem das pessoas para entregar as fichas de atendimento que eram organizadas para 3 médicos, cada um incluía 10 fichas para consultas e 2 para pacientes de primeira vez.

O sistema correspondia a pegar ficha para marcar a consulta para a próxima semana, ou seja, o usuário que pegasse ficha neste dia iria marcar para a próxima quinta-feira. Além disso, cada médico tinha seu dia específico de atendimento, então para que os usuários pudessem pegar fichas correspondentes ao seu médico, teriam que ir no dia que ele atende.

A psicóloga ao se alocar na porta de entrada do setor demonstrava que o intuito era deixar entrar apenas aqueles com as fichas, os que estavam com consulta marcada ou os que precisavam resolver algo.

Todo este processo durou em média de 30 a 45 minutos. Os que conseguiram as ficham respiraram aliviados demonstrando que o esforço por ter acordado cedo tinha valido a pena. Já os que não conseguiram começaram a reclamar decepcionados e revoltados com a forma de organização do serviço muitas vezes culpabilizando os profissionais que tentaram se eximir da culpa pedindo que os usuários denunciassem o serviço, ligassem na ouvidoria para relatar o que estava acontecendo, pois se não o fizessem tudo ia continuar do mesmo jeito, visto que eles já estavam falando com a administração superior e esta não estava preocupada com o que estava acontecendo.

Logo, prontamente uma usuária disse que todos deveriam se unir para melhorar o sistema, pois todos eram iguais e estavam no mesmo barco. Que se não pressionassem, nada iria mudar.

Fiquei observando este conflito e o desespero dos usuários que relataram que toda semana era do mesmo jeito, que estavam cansados de acordarem cedo, chegar no serviço, não conseguir marcar consulta e que por isso sentiam vontade de abandonar o tratamento. Alguns

ainda disseram da relação com as médicas em que uma usuária gostaria de mudar de médica pois a que lhe tratava era muito fechada, não olhava direito para ela e era muito ríspida.

Após observar as interações entre os usuários, adentrei ao setor do SAE e conversei com alguns profissionais para conhecer o serviço, fazer os encaminhamentos para meu tratamento e para falar da minha pesquisa.

O espaço não era muito grande, a recepção tinha poucas cadeiras e muitos acabavam por ficar em pé. Nas paredes, alguns cartazes com telefone da ouvidoria, da Associação Vidas Positivas-AVIP entre outros.

No chão, uma mesinha comportava uma televisão, fichas de senhas para a farmácia, uma cesta com preservativos e uma caixa de sugestões na qual utilizei para colocar tais observações e sugestões de mudanças, sobretudo para um novo modelo de marcação de consultas.

A sala da farmácia era um tanto que pequena. Havia ainda uma sala para Assistente Social, uma para a Psicóloga e outras duas para os médicos. Soube que o serviço estava alocado no Centro Reprodutivo Dr. Leide Morais temporariamente, pois antes ele era no Hospital Giselda Trigueiro. Não me informaram o motivo da realocação.

Os profissionais com quem conversei foram prestativos na medida do possível ainda que estivessem correndo com suas atividades e atendimentos. Demonstravam preocupação e certo receio por causa do tumulto prevenindo para que a situação não se agravasse.

Conversei primeiro com a enfermeira que relatou que todos os dias era sempre a mesma coisa e que só faltam bater neles. Ao falar da minha pesquisa e sobre a temática, a enfermeira me aconselhou a falar com a Administração Superior para que eu pudesse ter autorização de coletar os dados na instituição, mas que eu poderia ter dificuldades, pois a Administração Superior não era receptiva e que os usuários ao perceberem que eu também

faria tratamento lá poderiam não entender o porquê de um usuário estar olhando os prontuários médicos.

Em um dado momento, ao conversarmos sobre o impacto do diagnóstico, a enfermeira diz que muitos ao fazerem o teste rápido acabam chorando muito, que ela tenta fazer o acolhimento, mas não garante o que a pessoa possa fazer ao sair do serviço e que por isso ela informa para a pessoa que “transmitir para outra pessoa é crime” orientando que ela voltasse para fazer o tratamento, pois isto iria lhe assegurar uma vida “quase normal”.

Terminamos nossa conversa e eu me dirigi a sala da Assistente Social, uma profissional de poucas palavras que não conversou muito comigo, percebi que não teria abertura para conversar com ela que demonstrava certo incomodo por estar trabalhando neste serviço, muitas vezes falando em tom preconceituoso e moralista sobre HIV e Sexualidade ancorados em termos como promiscuidade, grupo de risco etc.

Não prolonguei nossa conversa e caminhei até a sala da psicóloga que foi bastante receptiva e em tom de desabafo começou dizendo que é difícil passar por isso todos os dias, mas que ela sozinha não consegue fazer muita coisa, que é complicado ver as pessoas indo embora do serviço sem conseguirem suas consultas.

A profissional salientou que hoje as coisas estão diferentes, que o preconceito não é mais tão acentuado, que se as pessoas se cuidarem podem ter uma vida com mais qualidade, mas que fica difícil com o sistema da forma que estava, porém sabia que seus usuários estavam de olho no serviço como que numa espécie de controle social. Relatou ainda que este caos no período da greve em Janeiro de 2017 foi ainda pior, que só faltaram quebrar a instituição.

Terminei minhas tarefas neste dia e voltei outros dias me deparando com as mesmas situações de manhã, fila, tumulto e dificuldade para marcação de consultas. Inclusive fiquei algumas vezes sem conseguir marcar consulta tendo que chegar cada vez mais cedo.

A tarde o serviço era um tanto que vazio, as pessoas iam lá geralmente para pegar medicação na farmácia que atendia prontamente ou quando havia atendimento médico.

De início os horários da farmácia eram regulados abrindo alguns dias de manhã e outros a tarde por conta da falta de profissionais de farmácia, porém com a reinvindicação dos usuários para a contratação de mais profissionais, a farmácia conseguiu manter os dois horários em funcionamento de segunda à sexta.

Percebi nas falas de alguns usuários que para além desta falta de profissionais, alguns passaram pela falta de medicamento causando certa preocupação sobre o que isso acarretaria no seu tratamento.

As observações informais aconteceram entre Abril e Novembro de 2017. Aos poucos fui percebendo que os usuários foram se articulando com o intuito de melhorar o serviço. Ao que me parece, estes conflitos duraram ainda mais alguns meses tendo seus resultados em Abril de 2018 em que o serviço começou a implantar um novo sistema para marcação de consultas baseados no modelo de retorno semelhando-se ao que muitos usuários estavam sugerindo e ao que coloquei na caixa de sugestões.

O usuário sai da sua consulta e já pode ver uma data para agendar a próxima consulta, seu retorno, e então com uma semana mais ou menos antes do dia da consulta ele liga ou vai até o serviço para confirmar a consulta.

Durante todo este percurso, considero a presente experiência como crucial para definir o percurso metodológico da pesquisa, para definir o processo de mapeamento dos participantes paras as entrevistas e para a elaboração do roteiro da entrevista da pesquisa que pudesse dar base para um plano de análise.