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(05) CORTAR-COM-FACA

9. Felipe e Monteiro (2001) em seu livro Libras em Contexto, voltado a professores que ensinam Libras, demonstram vários contextos em que

2.3 QUESTÕES SOCIOLINGUÍSTICAS

2.3.2 Impacto da educação formal na Libras

Resgataremos a memória da educação de surdos, assim como as filosofias educacionais seguidas no Brasil e no mundo, na tentativa de buscar o que a sociedade considerava aceitável para os padrões da época em que o oralismo era dominante. Acredito ser este um tópico importante, pois revela como o Português sempre esteve interferindo sobre a Libras através dos ideais e do modo de atuação dos profissionais ouvintes que educavam os surdos.

Os surdos foram discriminados e marginalizados desde os tempos mais remotos da sociedade, sendo já na antiguidade assassinados por seus pais (BERTHIER, 1984, p.165), ou vistos apenas como oráculos de

comunicação dos deuses (STROBEL, 2009, p.18), mas nunca como seres humanos iguais aos ouvintes.

O monge Ponce de Léon (1520-1584) foi o primeiro a se interessar pela educação desta população com a intenção de integrá-los na sociedade e dar-lhes cidadania, que em sua visão só poderia ser obtida através da “fala”, entendida como uso da voz. Este monge se dedicava a ensinar a fala para os filhos de nobres para que pudessem herdar os bens da família, o que não poderia acontecer se o surdo não utilizasse a língua oral (MOURA, 2000). Após isto, diversos estudiosos se propuseram a buscar meios de educar os surdos, a grande maioria acreditando na total supremacia da língua oral, como único meio de abstração e obtenção de conhecimento.

Uma exceção a essa supremacia da língua oral foi o trabalho do Abade Charles Michel de L’Epée, mais conhecido como abade L’Epée (1712-1789), em Paris. Ele conheceu duas irmãs gêmeas surdas que se comunicavam através de uma língua de sinais e, a partir disso, iniciou e manteve contato com os surdos carentes e humildes, procurando aprender seu meio de comunicação e considerar seriamente a língua de sinais. Em 1760 o abade L´Epée, iniciou a instrução formal com as duas surdas a partir da Língua de Sinais que se falava pelas ruas de Paris utilizando para esse fim além da Língua de Sinais, a datilologia (alfabeto manual) e sinais criados artificialmente por ele. O êxito desse trabalho o levou a dar prosseguimento à sua abordagem.

Em 1775, L'Epée fundou a primeira escola pública para o ensino da pessoa surda, em Paris. Para o abade, o essencial na educação de surdos era a possibilidade que possuíam em aprender a ler e a escrever por meio da língua de sinais, pois essa seria a melhor maneira de expressarem as suas ideias, devido à mesma ser a essência de seu processo pedagógico (SILVA et al., 2006). O processo de aprendizagem proposto previa que os educadores teriam que aprender os sinais com os surdos, com o objetivo de ensinarem a língua falada e a escrita do grupo socialmente majoritário, isto é, dos ouvintes (LACERDA, 1998).

Com base na observação de grupos de surdos, o abade desenvolveu um método educacional denominado de "sinais metódicos", apoiado na língua de sinais da comunidade de surdos. O sistema de sinais metódicos era formado por uma combinação dos sinais dos surdos com sinais inventados pelo abade. Isso aconteceu porque, embora L’Epée tivesse percebido a importância da língua de sinais para o surdo, ele também tinha a crença equivocada de que essa língua carecia de gramática, e por causa disso criou sinais para diversas palavras do

francês que não tinham correspondentes na língua de sinais dos surdos franceses. Em 1776, L’Epée publicou um livro para relatar as suas técnicas e em 1789, quando morreu, ele já tinha fundado 21 escolas para surdos na França e na Europa (LACERDA, 1998), e sua abordagem iria influenciar a educação de surdos de inúmeros países em diversos continentes.

O Brasil foi um dos locais que tiveram essa influência da tradição criada por L’Epée. Segundo Campello (2011), Dom Pedro II em parceria com o Ministro de Instrução Pública, Drouyn de Louys, e o embaixador de França no Brasil, Monsieur Saint George, se preocuparam com a questão dos deficientes auditivos e planejaram, então, dar educação aos então chamados “surdos-mudos”. Foi então que o Conde e ex-diretor do Instituto de Bourges na França, Ernest Huet, foi convidado para criar o Instituto Imperial de Surdos Mudos (IISM), atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES) com sede no Rio de Janeiro. O Instituto reuniu surdos de diferentes localidades no Brasil na forma de internato, permitindo assim o florescimento da Libras no Brasil.

Diniz (2011) em sua pesquisa também faz reflexão à educação dos surdos e os impactos desta na língua de sinais, recordando o dicionário de LSF criado em 1875 com o nome de Iconografia dos Sinais dos Surdos-Mudos, de Flausino José da Gama. Ele era desenhista e se interessou pela versão francesa dessa obra, ilustrada por Pierre Pélissier, professor e poeta surdo do Instituto de Jovens Surdos-Mudos de Paris (IJSMP). Assim, fez uma adaptação da obra para o Brasil, apenas trocando as palavras em francês por palavras em português (CAMPELLO, 2011). Percebe-se que os surdos brasileiros foram levados diretamente a considerar sinais franceses e começar a utilizá-los para sua escolarização, embora os surdos brasileiros devam também ter trazido sinais originais de suas cidades-natal para o INES.

Entretanto, os avanços a respeito da adoção das línguas de sinais na educação de surdos foram interrompidos após a decisão do Congresso de Educação de Surdos de Milão, em 1880, onde especialistas de todo o mundo recomendaram o abandono das línguas de sinais nos ambientes escolares e adoção do método oralista puro, por considerarem este superior ao método sinalizado. E no Brasil não foi diferente: a língua de sinais, que estava sendo usada ininterruptamente por décadas foi ignorada, se impondo a obrigatoriedade da comunicação oral (ROCHA, 2007).

Essa situação acabou por prejudicar imensuravelmente a Libras, pois a partir deste fato a sociedade passou a desvalorizar e desprezar a

língua. Entretanto, a língua não morreu. Isto porque os alunos continuavam a utilizá-la clandestinamente pelos corredores das instituições, o que possibilitou seu desenvolvimento linguístico. Assim, a Libras continuou se espalhando por todo país, ao ser levada pelos alunos internos que passavam as férias em suas cidades do interior ensinando os surdos que lá moravam (ROCHA, 2007). Nesse período, a oralização passou a ter grande importância na história dos surdos, pois todo surdo que frequentava a educação formal era obrigado a oralizar, o que constituiu outra forma de interferência do Português na experiência linguística dos surdos.

Assim, desde o final do século XIX até a segunda metade do século XX, o oralismo predominou como corrente educacional de surdos no mundo. Após cerca 100 anos, porém, a língua de sinais começa a ser um pouco mais valorizada com o surgimento da abordagem conhecida como Comunicação Total, onde o objetivo era o desenvolvimento do ser humano através de todas as formas de comunicação, mas que ainda assim, não rompiam com a necessidade da língua oral (PERLIN e STROBEL, 2006).

A comunicação total fazia uso de diversos recursos, como os manuais, orais, e até mesmo auditivos para atingir seu objetivo: a comunicação do individuo surdo, tanto com seus pares, como com os ouvintes. A grande ideologia por trás da comunicação total era de que os aspectos cognitivos e emocionais dos surdos não poderiam ser negligenciados em prol da aquisição da língua oral. Foi um período de maior liberdade para a comunidade surda, pois era permitido o uso da língua de sinais, mas ainda assim o uso da língua oral ainda era muito requisitado. Segundo Capovilla (2000) os métodos para a língua falada objetivavam a língua escrita, o que demonstra claramente que a língua de sinais não era vista ainda como capaz de permitir o aprendizado da língua escrita através dela. Além disso, a comunicação total estimulava o uso simultâneo de sinais subordinados à estrutura da língua oral, isto é, enquanto se falava português, realizavam-se sinais supostamente equivalentes às palavras e estrutura dessa língua. Esse período então promoveu um alto nível de interferência da língua oral sobre a língua de sinais no contexto escolar, uma interferência possivelmente maior do que no período do oralismo, onde as duas línguas eram utilizadas em contextos separados.

A língua de sinais só foi reconhecida como um sistema linguístico independente, completo e de valor com a difusão da educação bilíngue a partir dos anos 1980. Nela, a língua de sinais deve ser adquirida como primeira língua por ser a língua natural dos surdos,

isto é, sem empecilhos para aquisição de todos os surdos, e a mesma serve como mediadora linguística (língua de instrução) para a aquisição da segunda língua, utilizada pela sociedade majoritária, seja ela na modalidade oral e escrita ou apenas na escrita.

Contudo, a transição entre os modelos antigos e o novo modelo bilíngue não tem sido simples, pois toda a estrutura educacional está ainda enraizada nas abordagens oralistas e da comunicação total. Na década de 1990, ao refletir sobre melhorias em sala de aula, o INES criou o cargo de monitor surdo, como mediador da interação entre os alunos surdos e os professores ouvintes durante o processo de ensino e aprendizagem. Esses monitores eram elo de ligação entre o corpo docente e o corpo discente, devendo ter com os dois grupos uma comunicação efetiva. Mas, no contexto de muitas escolas de surdos, a realidade ainda na década de 2000 era a de professores ouvintes que não dominavam a Libras e precisavam aprendê-la com seus próprios alunos surdos.

Por isso, ainda hoje os surdos estão lutando pelas escolas bilíngues plenas, que valorizem a Libras em pé de igualdade com o Português, para que os surdos tenham o aprendizado de qualidade das duas línguas, e não onde haja sobreposição de uma língua a outra. Na educação bilíngue, as línguas são respeitadas e utilizadas nos contextos esperados para cada uma, não gerando situações de interferência explícita na Libras pela sensação de incompletude ou até mesmo de exclusão completa dessa língua, como aconteceu ao longo de toda a história da educação de surdos.