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(05) CORTAR-COM-FACA

9. Felipe e Monteiro (2001) em seu livro Libras em Contexto, voltado a professores que ensinam Libras, demonstram vários contextos em que

2.3 QUESTÕES SOCIOLINGUÍSTICAS

2.3.1 O contato social entre surdos e ouvintes

A comunidade surda está inserida na sociedade majoritariamente ouvinte. Isto faz com que essa esteja sempre inserida na cultura e no ambiente de uso da língua dos ouvintes. Este contato frequente gera impactos diretos na comunicação dos indivíduos surdos, seja entre seus pares ou no contato surdo-ouvinte. Para que possamos melhor compreender a realidade social do surdo, devemos compreender como esta comunidade se organiza e como ela se relaciona com a sociedade majoritária.

Os autores surdos americanos Padden e Humphries (2000, p.5) afirmam que:

Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem em um determinado local, partilham objetivos comuns de seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcançar estes objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas próprias surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas surdas para alcançá-los. (PADDEN E HUMPHRIES, 2000, p.5)

Os surdos tinham que encontrar alguma estratégia para interagirem com as demais pessoas, pois a necessidade de comunicação com seus pares e com ouvintes era e ainda é uma necessidade existencial do ser humano. A todo o momento esta necessidade emerge a partir de requerimentos das mais diversas ordens práticas como trabalho, lazer, educação ou simplesmente pela necessidade de socialização, como ter que conversar com alguém.

Sabemos que o Brasil é um país de enormes dimensões, diversificado e as comunidades surdas estão espalhadas por várias cidades em todas as regiões. Dentro dessa grande diversidade, percebemos ao longo da história o desenvolvimento de alguns perfis de

pessoas surdas relacionados aos seus contextos de vida e a seus interesses sociais, como por exemplo:11

a) Surdos das cidades de médio e principalmente grande porte combinavam de se encontrar em diversos lugares estratégicos, tais como nas associações e organizações esportivas de surdos. Eles se reuniam porque tinham uma língua em comum: a Libras. Promoviam festas, campeonato, desfiles, campanhas em prol da Libras. Com isto, os surdos sempre encontravam outros surdos de cidades ou estados diferentes e esses espaços surdos tem sido importante fonte de desenvolvimento da Libras;

b) Surdos que têm uma vida social mais em comum com pessoas ouvintes, não necessariamente ligadas às associações de surdos, tais como frequentadores de igrejas, clubes ou até mesmo bares. Muitos deles são proficientes em Libras, mas também há nestes ambientes muitos surdos oralizados, isto é, que utilizam a língua oral para se comunicar. Porém, esses contextos em geral não são espaços com objetivo de promover o modo de ser surdo, como as associações são, o que faz com que as características dos surdos frequentadores desses espaços sejam diferentes dos surdos mais politizados das associações; c) Surdos que são de cidades do interior ou zonas rurais, que não têm contato com a comunidade surda e em geral vivem isolados em meio ao mundo ouvinte. Esses surdos em geral utilizam os gestos caseiros, mímicas e pantomimas para se comunicarem por não terem tido acesso a uma comunidade surda usuária de Libras. São grupos que não costumam ter muita instrução formal (escolar) e por isso permanecem à margem da sociedade em grande medida;

d) Surdos oralizados que não utilizam e não se identificam com a Libras e preferem interagir com outros surdos oralizados e com pessoas ouvintes.

A convivência social do surdo irá depender do grupo em que ele está inserido. No caso dos surdos que participam de associações de surdos, é de se esperar que a língua utilizada mais fortemente seja a língua de sinais, uma vez que a luta pelos direitos surdos e o direito a utilizar sua língua natural normalmente está vinculado nas associações, que tem a luta pela Libras como um de seus focos. O segundo grupo,

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Esta é uma classificação geral sobre os perfis mais comuns. Entretanto é importante mencionar que muitos surdos transitam de um grupo ao outro, participando assim de diferentes categorias. Por exemplo, um surdo oralizado que frequenta associações de surdos, fazendo uso da língua de sinais, mas que também possui amigos ouvintes, estando inserido, então, nos dois mundos.

que se relaciona a surdos que participam de outros grupos que não associações, como por exemplo, grupos de igreja, permitem maior flexibilidade do uso das línguas, uma vez que não há imposição nem tentativa de convencimento a respeito da melhor língua a ser utilizada, já que o foco do grupo é outro que não a língua ou questões específicas da vida dos surdos.

Já o terceiro grupo fala a respeito dos surdos isolados em pequenas comunidades. É um grupo que merece atenção, pois os surdos não estão gramaticalmente estruturados, fazendo uso de gestos caseiros e mímicas, o que permite uma comunicação restrita com sua família e amigos. Por último temos o quarto grupo, que é o grupo dos surdos oralizados, que possuem a língua oral como primeira língua e convivem diretamente com ouvintes, e caso tenham a língua de sinais também, ainda assim a interferência da língua oral sobre a língua de sinais é possível.

Refletindo então sobre as diversas comunidades entre os surdos usuários da língua de sinais ou não, fica claro que desde o seu nascimento, as pessoas surdas estão em contato contínuo com pessoas ouvintes, e diariamente experimentam situações comunicativas com pessoas que não compartilham em parte ou integralmente o conhecimento da língua de sinais.

Sabemos que ter um mediador linguístico não é a realidade de muitos surdos, como por exemplo, aqueles que moram no interior do país e que tenderiam a ter uma comunicação baseada em gestos e sinais caseiros. Por isso, pode-se perceber que apesar das barreiras impostas à comunidade surda para a sua comunicação, os usuários da Libras sempre buscam estratégias facilitadoras da troca comunicativa, o que enriquece a língua de sinais e promove o conhecimento de sua estrutura e suas variações.

Contudo, a grande questão a ser abordada é o contato entre a comunidade surda na sociedade majoritariamente ouvinte. Infelizmente existe a falta de conhecimento e de informação da sociedade sobre o que é a surdez e sobre a língua de sinais, o que diminui o interesse dos ouvintes em desvendar a população surda.

Dentro de um viés de desconhecimento, abrem-se lacunas para a criação de mitos e crenças que pouco descrevem a realidade da maioria dos surdos, como por exemplo, a crença de que os surdos são deficientes mentais, como cita Moreira (2007), nos casos de surdos que tiveram um grande atraso linguístico-cognitivo que foi tomado como caso geral da comunidade surda. Este tipo de crença só faz com que os ouvintes se

desinteressem pela comunidade surda, o que aumenta a falta de desejo em se comunicar com um surdo ou até mesmo de aprender a Libras.

Num ambiente receoso como este, só resta à comunidade surda se adaptar a uma sociedade ouvinte para que seja aceita, visto que o contrário ainda não é uma possibilidade de curto prazo. Desta forma, os surdos são educados de forma a possuírem a melhor compreensão possível das duas línguas: a língua utilizada pela sociedade e a língua de sinais.

Entretanto, o surdo sempre será uma minoria - sempre será visto como aquele que deve se adequar a sociedade e não o contrário. Desta maneira, fica clara a forte dominação da língua oral sobre a língua de sinais, e neste contexto de dominação as pessoas surdas se vêem pressionadas para suprir as necessidades comunicativas que diariamente vão surgindo na sociedade. Em muitos contextos, como por exemplo, surdos querendo facilitar a compreensão de ouvintes sobre a Libras, ou ouvintes pouco proficientes tentando se comunicar com surdos, as pessoas buscam aproximar a estrutura da língua de sinais à estrutura da língua oral. Assim usos da Libras marcados pela interferência da língua oral vão fazendo parte do cotidiano de vida dos surdos.

O contato entre a língua oral e a língua de sinais é um fenômeno diário que ocorre, na maioria das vezes, a partir da necessidade do surdo em se comunicar com o ouvinte. Essa troca pode influenciar as duas línguas, mas como existe atrelado a isso uma relação de poder de uma sociedade majoritária sobre a minoria surda, os impactos são muito maiores na língua de sinais. Este fenômeno linguístico deve ser reconhecido e analisado a fim de ser conhecer como as línguas de sinais são modificadas a partir das línguas orais.

Essa variação linguística faz surgir uma identidade entre os grupos, pois cada um deles possui características linguísticas, sua cultura, seus comportamentos. Os quatro grupos gerais mencionados (surdos usuários da Libras de espaços de surdos tais como associações; surdos usuários da Libras de espaços mistos tais como igrejas; surdos isolados em pequenas cidades; e surdos oralizados) acabam constituindo diferentes identidades e modos de ser, e essas identidades se revelam também nas diferentes línguas de sinais faladas por esses diferentes grupos.

Devido à falta de inclusão social, o ideal para o desenvolvimento do surdo é o modelo surdo filho de pais surdos, pois a criança adquire a língua de sinais como primeira língua, a experiência visual e os conhecimentos sociais da surdez da sua própria cultura no local familiar. Porém, como a grande maioria dos surdos nasce em famílias de

ouvintes, a interação com a sociedade ouvinte acontece inevitavelmente. Além disso, nem sempre a família é bem orientada sobre o papel da língua de sinais na vida do surdo. Por causa de toda a grande diversidade de contextos em que os surdos se desenvolvem, nós surdos devemos respeitar as diferentes identidades e não podemos discriminar as opiniões individuais, pois as escolhas são feitas pelas famílias visando o bem estar de cada um.

No caso particular dos surdos protetizados, implantados ou oralizados, existe uma tendência a um contato maior com a língua oral, a língua da maior parte da sociedade, uma vez que a compreensão da mesma será para este grupo mais fácil do que para surdos que não possuem as mesmas tecnologias ou não foram oralizados, seja por escolha própria ou da família. Por possuir um contato mais facilitado com os ouvintes, estes grupos podem sofrer maior influência do Português em sua vida, e ainda que utilizem a língua de sinais, esta pode sofrer maior impacto pela influência gramatical do português.

Este processo não ocorrerá da mesma maneira com um surdo falante da língua de sinais e usuário da língua portuguesa apenas em sua modalidade escrita - neste caso é de se esperar uma influência menor da língua portuguesa em sua sinalização, uma vez que ele não possuirá a gramática da língua oral como referência, tendendo a sinalizar naturalmente utilizando muito mais características próprias da Libras, como por exemplo, os classificadores. Entretanto, são raras as pessoas surdas que não passaram um período de sua vida em trabalho fonoaudiológico de oralização, e também como o contato com o Português escrito é muito grande, tanto na escola como na sociedade em geral, é difícil imaginar pessoas surdas sem nenhum nível de influência do Português em sua produção em Libras.