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3 O ATELIÊ DE BRAZ DO AMARAL

3.2 IMPARCIALIDADE: A “QUALIDADE EMINENTE DO HISTORIADOR”

A outra epígrafe desta tese, “a posteridade, porém, como a história, é imparcial e fria, severa mas serena”, põe em destaque a expectativa de Braz do Amaral em relação ao futuro e

207 AMARAL, Braz do. História da Bahia: do Império à República. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1923, p.

275. UFBA, FFCH, Biblioteca, Coleção especial.

208 AMARAL, Braz. Evacuação da Bahia pelas tropas de Portugal. In: ______. Recordações históricas..., p. 119. 209 AMARAL, Braz. Pelos que morreram. In: ______. Recordações históricas..., p. 107.

elucida a sua visão sobre a imparcialidade na história. Com essa assertiva, o historiador apelava para a suposta isenção garantida pelo tempo e pela história em relação ao papel de D. João no Brasil. A “mácula” lançada à memória do soberano que, para o historiador, “preparou” a independência do país e não mediu esforços para o seu progresso, deveria ser reparada. O historiador completou: “E é um dever de justiça raspar das convicções do povo prejuízos e malquerenças que caíram, como pragas, sobre D. João VI”.210 Não é objetivo deste tópico discutir os fundamentos dessa defesa de Braz do Amaral ao monarca, o que será feito em outra seção. O foco aqui é a sua convicção de que a injustiça à memória de homens de Estado do tipo de D. João seria reparada pela “imparcialidade” e “frieza” da posteridade e da história.

A “justiça da história” não tardaria em relação aos homens que aos olhos de Braz do Amaral fizeram pelo Brasil e, principalmente, pela Bahia. As “provas indeléveis” de que os seus esforços não teriam sido em vão, mesmo quando mal compreendidos, estariam em benefícios que permitiram à Bahia o pioneirismo em campos como a instrução pública superior no país, o governo constituído e até a sua “grande guerra nacional”. Com o tempo viria, para ele, a “reabilitação”: “É a confissão da posteridade deslumbrante e augusta, como o triunfo da verdade e do bem!”.211

Bastariam sentenças desse tipo para a conclusão de que, para o historiador em questão, a história é imparcial e dispõe da verdade sobre os acontecimentos, sobretudo em função das “provas” deixadas pelos documentos, dos feitos e até dos acontecimentos. É interessante, no entanto, verificar a recorrência dessa ideia em sua obra para demonstrar que não é algo de ocasião, embasa o seu pensamento.

De fato, a preocupação com a “imparcialidade” por parte do historiador, do que resultaria uma história igualmente “imparcial”, perpassa o conjunto dos textos de Braz do Amaral, aspecto que possui íntima relação com a noção de documento e de prova discutida no tópico anterior. O recurso ao documento ou à prova documental permitiria ao historiador reproduzir os acontecimentos da forma como ocorreram, eis a importância de sua “imparcialidade”. Essa preocupação, entretanto, manifestou-se em sua obra de forma ambígua. Ao tempo em que Braz do Amaral reconhecia no exercício da “imparcialidade” uma

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AMARAL, Braz do. Discurso proferido na Faculdade de Medicina da Bahia por ocasião do Centenário do Ensino Médico no Brasil. In: ______. Discursos e Conferências. Porto, Typographia Econômica, 1921, p. 93-94. IGHB, Biblioteca Ruy Barbosa.

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AMARAL, Braz do. Discurso proferido na Faculdade de Medicina da Bahia por ocasião do Centenário do Ensino Médico no Brasil. In: ______. Discursos e Conferências. Porto, Typographia Econômica, 1921, p. 97. IGHB, Biblioteca Ruy Barbosa.

qualidade intrínseca ao trabalho do historiador, era traído em vários momentos pelo exercício da sua escrita demonstrando que se trata, apenas, de uma forma datada de pensar essa relação.

A sua narrativa indica que por mais esforço que tenha feito para apresentar os fatos tais como ocorreram, compilando documentos para comprová-los, não deixou de narrar a história como se tivesse sido testemunha ocular. A riqueza de detalhes, a atenção às coisas miúdas, às vezes sem fazer referência a nenhuma fonte, dá a impressão de que não possuía um objeto racionalmente concebido. Dessa forma, não escapava ao seu tempo, julgava com as suas lentes. Por vezes, tentou separar aquilo que ficaria para lembrança, simplesmente, em função das incertezas em relação ao fato, dentro do que sobraria à posteridade.212 Outras vezes, apelou para a “imparcialidade e justiça” ao julgar, por exemplo, questões como a permanência de paulistas e mineiros no governo republicano ao longo de 33 anos, quando escreveu em 1922.213 A atenção ao que chama de “olhos da posteridade” aparece, recorrentemente, em justificativas e argumentos de Braz do Amaral, sobretudo, ao escrever sobre questões políticas ou sobre os governos da Bahia.

Em momentos diferentes ressaltou a importância do recuo no tempo para “bem julgar os fatos”. Distância temporal necessária, aos seus olhos, à imparcialidade, para que pudessem os historiadores, os homens de modo geral, estudar os acontecimentos “sem ciúmes e sem prevenções”. Por essa lógica, o período colonial, por exemplo, antes apresentado como um período de “obscurantismo e ignorância”, à distância, com “calma”, seria considerado um período de preparação dos “brasileiros ilustres que fizeram a honra da nossa pátria no primeiro quarto do século dezenove”. O tempo favoreceria os acontecimentos e os homens daquela geração, na medida em que permitiria uma leitura mais justa do passado.214 Ao finalizar o livro História da Bahia: do Império à República (1923) e explicar a diretriz traçada, de tratar da história da Bahia até o final do século XIX e princípio do XX, ressaltou a necessidade do afastamento temporal para a escrita da história: “Ainda é cedo para escrever a história dos contemporâneos!”215

Anos antes havia chamado a atenção ao que considerava o “perigo” de se trabalhar com “fatos contemporâneos”. Braz do Amaral havia citado o exemplo de David Hume, “o mais

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AMARAL, Braz do. Os Jesuítas na Bahia. Estudos Brasileiros. Ano III, v. 5, n. 13 e 14, jul./ago. e set./out., Rio de Janeiro, 1940, p. 194.

213 AMARAL, Braz do. As festas do centenário com a asfixia da imprensa, s/d., p. 21-22.

214 AMARAL, Braz do. A Constituição do Império. RIGHB. Ano XIV, n. 33, 1907, p. 4. Ver também

AMARAL, Braz do. A Maioridade. RIGHB. Salvador, n. 62, 1936, p. 257.

215 AMARAL, Braz do. História da Bahia: do Império à República. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1923, p.

imparcial escritor da Inglaterra”, que em sua História da Grã-Bretanha não tratou do período mais importante da monarquia inglesa.216 Recorreu ainda à obra de Tácito, Historiae, para falar de verdade e imparcialidade, e completou:

Devo porém declarar francamente que nem pertenço a partidos, nem

capitulo com prejuízos vulgares; e que com a narrativa dos acontecimentos

de 1821 a 1823 jamais tive em vista o despertar ideias, felizmente amortecidas, contra quaisquer indivíduos, que, encarando então pela superfície a marcha política de um governo sistemático, praticarem erros de opiniões, sempre perdoáveis: assim, pois, cumprindo patentear os fatos

históricos com a maior verdade e imparcialidade, a ninguém deve chocar a relação dos importantes sucessos daquela época, os quais, com o

volver de mais alguns anos, seriam de difícil aquisição ao futuro historiógrafo, a não os achar reunidos em um corpo metódico, visto que, constando somente até hoje de diversos papéis avulsos então impressos, e havendo desaparecido a maior parte dos registros das peças oficiais mais proeminentes, não foram já diminutos os obstáculos, que agora mesmo superei, para conseguir uma coleção desses impressos.217

Neste fragmento fica evidenciada a relação concebida por Braz do Amaral entre imparcialidade e verdade histórica, de modo a assegurar aos seus interlocutores que a ideia de mostrar os “fatos históricos com a maior verdade e imparcialidade”, os “sucessos de uma época” para não se perder no tempo, não significava tomar partido. Por essas palavras, apenas pretendia garantir à posteridade os fatos verdadeiros, que não se achavam reunidos em um “corpo metódico”. O trecho sugere que o historiador, armado com sua imparcialidade, seria capaz de coletar e reunir os acontecimentos importantes de determinada época para garantir uma história verdadeira, ou pelo menos seu uso no futuro. Nessa perspectiva, não considerava “fato histórico” como fruto da seleção feita pelo historiador, como uma escolha influenciada pelo seu tempo e lugar social. A própria consideração do que é história reflete, como ressaltou E. Carr, a posição do historiador no seu tempo.218

Em outra circunstância, ao comparar coisas do tempo em que escrevia com o tempo passado, em um texto de janeiro de 1918, em busca do que mudou e do que permaneceu, Braz do Amaral chegou a considerar a “imparcialidade” e a “justiça” as “bases morais da ciência que professamos”.219

Nestes mesmos mês e ano, em uma carta que tratava dos “conservadores no primeiro dia da República”, demonstrou certo receio de aborrecer os seus contemporâneos,

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CERQUEIRA E SILVA, Inácio Accioli de.; AMARAL, Braz do (comentários). Memórias Históricas e

Políticas da Província da Bahia. Vol. I. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1919, p. XXXVII.

217 Ibid., p. XXXVII e XXXVIII. Grifos nossos. 218

CARR, E. Hallet Carr. O historiador e seus fatos. In: ______. Que é história? Tradução de Lúcia Maurício de Alverga. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 12.

219 AMARAL, Braz. Correios na Bahia – coisas de agora e coisas de outro tempo. In: ______. Recordações

justificando, “[...] mais do que em nossos filhos, imprimimos no que escrevemos o cunho próprio do nosso sentir.”220 Em outra oportunidade, no mesmo ano de 1918, dessa vez no mês de julho, ao escrever sobre a “evacuação da Bahia pelas tropas de Portugal”, conforme título da carta publicada no Jornal de Notícia, Braz do Amaral revelou que por conta do “regime de exceção” que se dava na terra onde a carta seria impressa, não pôde escrever algumas reflexões que desejava.221

A preocupação de Braz do Amaral com a imparcialidade apareceu nos comentários e reparos feitos às obras de Inácio Accioli e Luís Vilhena. Quanto ao primeiro, afirmou nas páginas introdutórias que não era sua intenção publicar naquela hora as memórias, porque além de exigir capacidade e tempo, estavam “compiladas sem digestão”. Com relação às cartas de Vilhena, avaliou a postura desse professor de grego perante fatos da política. Quando, por exemplo, Vilhena tratou cronologicamente dos governos da capitania da Bahia, desde 1549, Braz do Amaral o criticou pela perda da “imparcialidade” e do “juízo crítico” que mantinha em cartas anteriores.222 Não surpreende a sua exigência se for levado em conta que se tratava de um homem recém-saído do século XIX. Apesar dessa compreensão acerca da história que Vilhena contava, o historiador baiano reconheceu as circunstâncias do tempo que o impediram de ser mais crítico em relação aos governos. Ainda que em sua crítica tenha se referido por algum momento ao fato de que a possível relação de amizade de Vilhena com os governadores tenha influenciado o modo como os tratou nas cartas, Braz do Amaral ao ressaltar a importância da imparcialidade remete aos “princípios de isenção” associados à historiografia rankeana.223 Afinal, como observou Sérgio Buarque de Holanda, a partir de Leopold von Ranke desenvolveu-se esse ideal de neutralidade nos estudos históricos, bem como o recurso de pesquisa e de crítica das fontes.224 Algo que Braz do Amaral colocou em prática.

Em cartas anteriores, ao elogiar a imparcialidade de Vilhena chegou a compará-lo ao “artista” que tinha a capacidade de pintar alguém sem que ele ou ela soubesse que estava servindo de “modelo”.225

A preocupação com esse elemento do que deveria ser o ofício do

220 AMARAL, Braz. Os conservadores no primeiro dia da República. In: ______. Recordações históricas..., p.

171.

221

AMARAL, Braz. Evacuação da Bahia pelas tropas de Portugal. In: ______. Recordações históricas... p. 122.

222 VILHENA, op. cit., Volume II, p. 429.

223 RANKE, Leopold von, 1795-1886. Leopold von Ranke: história. Sérgio Buarque de Holanda (Org.);

Tradução de Trude von Laschan Solstein. São Paulo: Ática, 1979, p. 13.

224Ibid., p. 16.

historiador teve centralidade nos comentários de Braz do Amaral e isso ele buscou reconhecer no autor do material que comentava:

[...] não há dúvida que sentiu (Luís Vilhena), e que estudou os males do seu tempo, descobriu-os sem paixão, e comoveu-se com eles, mostrando possuir aquelas qualidades eminentes do historiador que descreve com

imparcialidade, que discerne com superioridade de vistas o bem do mal e

domina pelo espírito os preconceitos do seu tempo.226

O historiador baiano, entretanto, violou esse princípio no exercício de sua escrita, ao tecer comentários elogiosos ao próprio Vilhena, ao ressaltar os feitos dos governadores citados nas cartas e ao defender um ou outro tema abordado pelo seu autor, mostrando que o historiador não escapa ao seu tempo e às contradições dele. Numerosos exemplos encontrados em sucessivos textos, alguns referidos aqui, serviriam para demonstrar que, embora Braz do Amaral declarasse a importância da “imparcialidade” para o que chamava de ciência, o seu próprio discurso não poderia se furtar à subjetividade e ao tempo de quem o escrevia. Embora tenha evitado, muitas vezes, penetrar em assuntos polêmicos e expressar de modo mais objetivo a sua opinião, o valor atribuído aos fatos, a seleção deles, a busca pela imparcialidade, bem como a escolha dos sujeitos da sua história mostram a incoerência e a impossibilidade dessa tentativa.