• Nenhum resultado encontrado

O imperativo da alteração constitucional

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011 (páginas 30-35)

Thomas JEFFERSON já vislumbrava o aparente paradoxo da democracia, de um poder constituinte originário que condiciona, no presente, o poder constituinte de amanhã. Por isso, sustentava que a Constituição deveria ser modificada por cada geração para garantir que o passado não vinculasse o presente. Para ele, os vínculos constitucionais seriam limitações injustificadas e antidemocráticas ao poder presente e futuro: ―no society can make a

perpetual constitution, for the earth belongs always to the living generation.‖45 Perpétuo é o poder constituinte, e não a Constituição.

publicado em 07.11.2008. Ementário volume 02340-02, p. 00249. Ao comentar este precedente, Gilmar FERREIRA MENDES: ―Foi abonado o magistério de Gilmar Ferreira Mendes, Clèmerson Clève, Marcelo Neves e Jorge Miranda no sentido de ser incogitável o controle de constitucionalidade de deliberação do constituinte originário.‖ MENDES et al, Curso..., op. cit., p. 288.

44 BACHOF, Normas constitucionais..., op. cit., p. 28.

45 AMARAL, Maria Lucia do. Constituição e organização do poder político:

constitucionalismo forte, constitucionalismo débil. Anuário Português de Direito Constitucional, Lisboa, 2006. p. 167.

Esta ideia também inspirou os constitucionalistas franceses na redação do art. 28, da Constituição de 1793: ―Um povo tem sempre o direito de rever, reformar ou mudar sua Constituição. Uma geração não pode submeter as suas leis às gerações futuras.‖ Antes, a Constituição de 1791, título VII, artigo 1º já havia firmado o mesmo princípio: ―a Nação tem o direito imprescritível de mudar sua constituição.‖

Na realidade, o problema da alteração da Constituição suscita a questão de se saber como as gerações futuras podem exercer o seu consentimento em relação à Lei Fundamental.46 ―Os homens podem – tanto nas suas existências individuais quanto na sua dimensão colectiva – imaginar para si mesmos um ser e um viver de outro modo. O tema do poder constituinte é, portanto, indissociável do tema moderno da liberdade.‖47

Na deflagração da revolução americana, Thomas PAINE preocupou-se em justificar a necessidade da previsão de um processo de reforma da Constituição tendo em vista o direito de cada geração de dispor a respeito do seu próprio destino contra o controle pela ―autoridade dos mortos‖.48

Para Thomas PAINE, o governo por meio da distância temporal equivaleria ao governo através da distância espacial, pois ambos são estranhos aos seus súditos e às imposições naturais. Logo, governar do túmulo seria a mais ridícula e insolente tirania. A tentativa de tornar uma Constituição perpétua importaria admitir o direito de controle da opinião das futuras gerações, o que equivaleria a legislar para cidadãos de outro país ou

46 Como ensina Nelson de SOUSA SAMPAIO, ―uma constituição imutável dificilmente se

pode conceber em nossos dias, pois, enquanto vigorar o princípio da soberania popular, continuará prevalecendo o direito de o povo mudar o que foi decidido anteriormente.‖ SAMPAIO, Nelson de Sousa. O poder de reforma constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Nova Aurora Edições LTDA, 1995. p. 54.

47 AMARAL, A forma da república..., op. cit., p. 36. 48 BRITO, A Constituição..., op. cit., p. 126.

continente. Para este pensador, o passado é como um país estrangeiro. Governar para o futuro é como governar para quem está distante, e ambos são ilegítimos pelas mesmas razões. 49

Os americanos foram os primeiros a adotar uma Constituição escrita e a prever um procedimento especial para alterar suas disposições. O poder de reforma teve origem na própria história pré-constitucional norte-americana. Seus antecedentes mais antigos remontam à Carta de Privilégios da Pensilvânia (início do séc. XVIII). Além disso, entre 1776 e 1787, diversas constituições estaduais americanas distinguiam o procedimento de reforma do procedimento legislativo ordinário. Os procedimentos variavam entre a exigência de maioria qualificada, a necessidade de que a emenda votada em uma legislatura fosse aprovada também pela Assembleia seguinte e o sistema de convenção.50

A vocação de permanência da Constituição exige sua mutabilidade. Como ensina José AFONSO DA SILVA, ―a modificabilidade da Constituição constitui mesmo uma garantia de sua permanência e durabilidade, na medida mesma em que é um mecanismo de articulação da continuidade jurídica do Estado e um instrumento de adequação entre a realidade jurídica e a realidade política, realizando, assim, a síntese dialética entre a tensão contraditória dessas realidades.‖51

49 A crítica a essa ideia é que, embora os ―fundadores‖ tenham vivido anos atrás, são os

fundadores daquela nação. Não se trata de uma relação entre estrangeiros, mas de beneficiários e herdeiros, pais e filhos ou comunidade entre gerações. HONIG, Bonnie. Between decision and deliberation: political paradox in democratic theory. American Policial Science Review, vol. 101, n. 1, p. 9, feb. 2007.

50 CERQUEIRA, Marcello. A constituição na história: origem e reforma. Rio de Janeiro:

Editora Revan, 1993. p. 390-391. Seguno o autor, ao contrário do que se poderia pensar, o poder de reforma, previsto na Constituição americana de 1787, não foi inicialmente pensado como uma forma de adaptar a Constituição às novas necessidades sociais, mas como uma maneira de consolidá-la, alargando o pacto político para englobar um rol de direitos e liberdades individuais. Essa consolidação tomou corpo em 1791, com a aprovação das dez primeiras emendas. Diante da extrema dificuldade inerente ao processo de emendas, o poder constituinte reformador não se mostrou historicamente eficiente para atualização das normas constitucionais. Por isso, o judicial review se encarregou de compatibilizar o texto constitucional com as alterações históricas.

51 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a

Se a permanência da Constituição é ―ideia inspiradora do constitucionalismo moderno,‖52 exigem-se procedimentos para que a Constituição se adapte como processo

público aos acontecimentos de sua época, sem detrimento do seu sentido.53 Uma Constituição imutável estará fadada a uma morte anunciada. A previsão de instrumentos para reforma constitucional funciona como garantia de longevidade constitucional.

Afinal, como sustenta G. JELLINEK, a Constituição, assim como as leis em geral, expressa um dever ser cuja transformação em ser nunca se consegue plenamente, porque a vida real produz sempre fatos que não correspondem à imagem racional desenhada pelo constituinte. O lado irracional da realidade não significa somente uma discordância entre a norma e a vida e muitas vezes se resolve contra a norma. A Constituição se estabelece como norma fundamental no curso dos acontecimentos históricos.54

Justificando a necessidade da mudança constitucional como imperativo de sobrevivência, as lições de José AFONSO DA SILVA:

A estabilidade das constituições não deve ser absoluta, não pode significar imutabilidade. Não há constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois não é ela apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo, também de progresso social. Deve-se assegurar certa estabilidade constitucional, certa permanência e durabilidade das instituições, mas sem prejuízo da constante, tanto quanto possível, perfeita adaptação das constituições às exigências do progresso, da evolução e do bem-estar social. A rigidez relativa constitui técnica capaz de atender a ambas as exigências, permitindo emendas, reformas e revisões, para adaptar as normas constitucionais às novas necessidades sociais, mas impondo processo

52 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey,

2002. p. 97.

53 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. 1a reimpressão. Mexico: Instituto de

Investigaciones Jurídicas, 2003. p. 3.

54 JELLINEK, G. Reforma y mutacion de la Constitucion. Madrid: Centro de Estudios

especial e mais difícil para essas modificações formais, que o admitido para a alteração da legislação ordinária.55

Como salienta Konrad HESSE, a Constituição transita entre a polaridade de dois elementos: a permanência e a mobilidade. A abertura e amplitude da Constituição permitem responder às mudanças históricas, assim como à diversidade das situações vitais e, ao mesmo tempo, suas disposições vinculantes gozam de uma virtude estabilizadora, capaz de preservar a vida da comunidade da dissolução de uma mudança contínua, inabarcável e incontrolável. O persistente não pode converter-se num obstáculo em que o movimento e o progresso se impõem, do contrário a mudança ocorrerá à margem da ordem jurídica. Ao mesmo tempo, a mudança não pode eliminar a virtude estabilizadora das disposições vinculantes, sob pena de restarem incumpridas as normas constitucionais e a ordem fundamental da comunidade.56

Os mecanismos de alteração constitucional devem conciliar os elementos do progresso e da estabilidade. Atuar como uma válvula de segurança, para, de um lado, evitar que a Constituição seja alterada ao sabor dos ventos, resguardando-a dos humores partidários e, de outro, não impedir que a dificuldade para reforma seja tão intensa que a força necessária para a sua realização seja suficiente para destruir toda ordem constituída.

―As melhores constituições não são as mais bem pensadas e mais bem escritas, mas as que mais exactamente correspondam à feição de um povo, demonstrada por uma longa e sincera experiência colectiva.‖57

55 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo:

Malheiros, 2002. p. 42. No mesmo sentido, Anna Cândida da CUNHA FERRAZ: "Estabilidade, todavia, não significa imutabilidade. Bem ao contrário. A eficácia das Constituições repousa, justamente na sua capacidade de enquadrar ou fixar, na ordem constitucional, as vontades e instituições menores que a sustentam. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de

mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max

Limonad, 1986. p. 5.

56 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional: selección. Madrid: Centro de

Estudios Constitucionales, 1983. p. 24.

57 CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e de direito constitucional. Tomo

Desde a perspectiva da realização do Direito Constitucional, Constituição e realidade devem andar de mãos dadas.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011 (páginas 30-35)

Documentos relacionados