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Rigidez e flexibilidade constitucional

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011 (páginas 35-41)

A dificuldade da modificação do texto da Constituição será maior ou menor conforme se trate de uma Constituição flexível ou de uma Constituição rígida. Enquanto na primeira o processo de alteração do texto é igual ao de alteração das leis, na segunda exige-se um processo mais dificultoso para sua modificação. Esta classificação é devida a James BRYCE58 e toma por critério de distinção exclusivamente o processo de alteração formal (do texto) da Constituição.

Aparentemente poder-se-ia deduzir que as Constituições flexíveis seriam menos estáveis do que as rígidas, em virtude da maior facilidade do processo de alteração do seu texto. Todavia, isto não ocorre no plano da realidade. Como sustenta Nelson de SOUSA SAMPAIO, na seara sociológica ou da realidade, uma constituição flexível pode ser de mais difícil ou lenta reforma do que outra classificada como rígida. A maior ou menor estabilidade das constituições vai além das dificuldades jurídicas para sua alteração: "uma sociedade tradicionalista, de esclarecido tato político e senso da medida, prescindirá dos freios jurídicos para a reforma constitucional, porque estes serão compensados pela existência de outros elementos estabilizadores. Num povo sem tais virtudes, há, porém, necessidade de mecanismo mais complexo para a reforma constitucional."59

58 BRYCE, James. Constituciones flexibles y constituciones rígidas. 2. ed. Madrid:

Instituto de Estudios Políticos, 1962. p. 48.

A rigidez constitucional decorre da distinção entre o poder constituinte (originário ou derivado) e os poderes constituídos. Ela permite a ―discriminação entre as do Constituinte e do Legislador.‖60 A aceitação dessa premissa levou à necessidade de se instituir uma

distinção entre as normas constitucionais e a legislação ordinária. Nessa senda, as lições de Hans KELSEN:

A estrutura hierárquica da ordem jurídica de um Estado é, grosso modo, a seguinte: pressupondo-se a norma fundamental, a constituição é o nível mais alto dentro do Direito nacional. A constituição aqui é compreendida não num sentido formal, mas material. A constituição no sentido formal é certo documento solene, um conjunto de normas jurídicas que pode ser modificado apenas com a observância de prescrições especiais cujo propósito é tornar mais difícil a modificação dessas normas. A constituição no sentido material consiste nas regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais, em particular a criação de estatutos. [...] Por causa da constituição material existe uma forma especial para as leis constitucionais ou uma forma constitucional. Se existe uma forma constitucional, então as leis constitucionais devem ser distinguidas das leis ordinárias. A diferença consiste em que a criação, isto é, decretação, emenda, revogação, de leis constitucionais, é mais difícil que a de leis ordinárias.61

De outro lado, em razão da rigidez, constitui-se uma relação de hierarquia (fundamentação/derivação) necessária entre Constituição e leis. A supremacia formal da Constituição depende da rigidez. Se a Constituição é o fundamento de validade de todos os demais atos do Estado, o Poder Legislativo não pode ter acesso à alteração das normas constitucionais. Da rigidez, decorre a ideia de um poder constituinte derivado responsável pela reforma constitucional por um meio de processo oneroso e distinto do processo de alteração das leis.

Entretanto, ainda que a supremacia formal da Constituição seja corolário da teoria do poder constituinte, as primeiras Constituições europeias, embora rígidas, não detinham

60 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no

direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 32.

61 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,

uma posição jurídica nítida de supremacia.62 Isto ocorre porque a rigidez constitui um elemento suficiente, mas não necessário para a supremacia constitucional.

Ressalta Konrad HESSE que a supremacia da Constituição, da qual emana a sua força normativa, depende, em primeiro lugar, da possibilidade de sua realização. Para tanto, é necessário que Constituição esteja colada na realidade, ou seja, não ignore o estado de desenvolvimento espiritual, social, político e econômico do seu tempo. E não só isso. Também é imprescindível a existência de uma vontade constante de todos os envolvidos no processo constitucional de realizar o conteúdo constitucional. Como toda ordem jurídica, que demanda atualização por meio da atividade humana, sua força normativa radica na disposição para considerar como vinculante seus preceitos e para realizá-los mesmo diante de fortes resistências. É imprescindível a manutenção do acordo constituinte pelos aplicadores das normas constitucionais.63

Em síntese, Konrad HESSE defende que a Constituição terá força normativa, pretensão de eficácia e capacidade para limitar o Estado se a “vontade de Constituição”

prevalecer sobre a “vontade de poder”. Esta vontade de Constituição nasce da consciência

geral e concretamente dos responsáveis pela aplicação da Constituição da necessidade e do valor específico de uma ordem objetiva e normativa inviolável, capaz de expulsar da vida estatal a arbitrariedade, e da convicção de que esta ordem não é uma lei concebida pelo intelecto à margem da vontade humana.64

Ademais, ―o acatamento à Constituição, para assegurar sua permanência, não se resolve exclusivamente no mundo das normas jurídicas, que modela e conduz à supremacia da

62 CLÈVE, A fiscalização..., op. cit., p. 32. 63 HESSE, Escritos..., op. cit., p. 28.

64 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio

Constituição. O acatamento à Constituição ultrapassa a imperatividade jurídica de seu comando supremo. Decorre, também, da adesão à Constituição, que se espraia na alma coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional. É o domínio do sentimento constitucional.‖ 65

Numa sociedade plural, composta por pessoas de diferentes crenças religiosas, filosóficas e morais, a Constituição precisa ser reconhecida como um ―mínimo ético comum‖. Sem a ―aceitação social‖, as Constituições ―não são normas, mas simples folhas de papel.‖66

A mesma ideia já podia ser encontrada em Hermann HELLER: ―uma Constituição precisa, para ser Constituição, isto é, algo mais que uma relação factícia e instável de dominação, para valer como ordenação conforme o direito, uma justificação segundo princípios éticos do Direito.‖67

Como sustenta José Adércio LEITE SAMPAIO, ―a Constituição é, em primeiro lugar, um ato de fé. Fé nas possibilidades de as formas jurídicas, assentadas em um padrão de valores e crenças positivadas, mediarem os conflitos sociais.‖68 Esta fé sustenta a fidelidade à

Constituição, que ampara não só o compromisso de não violá-las, como também a de torná-las reais que pode ser demonstrada pela experiência americana e alemã. No Brasil, segundo o autor, prevalece um sentimento contrário, de ―desvalia da Constituição‖: o da ―má-vontade de Constituição‖.69

65 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey,

2002. p. 99-100.

66 AMARAL, Maria Lúcia. A forma da república: uma introdução ao estudo do direito

constitucional. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 101.

67 HELLER, Hermann. Teoria do estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. p. 327. 68 SAMPAIO, José Adércio Leite. Teoria e prática do poder constituinte. Como legitimar

ou desconstruir 1988 – 15 anos depois. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Quinze anos de

Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 59.

Nesse sentido, já advertia Pontes de MIRANDA que "nada mais perigoso do que fazer-se a Constituição sem o propósito de cumpri-la", pois não cumpri-la é estrangulá-la no nascimento.70 Nessa esteira, o Ministro Celso de MELLO destaca a perversidade da inatividade consciente da aplicação da Constituição: "a inércia estatal em adimplir as obrigações constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado, pois nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se revelarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos."71

A ausência de uma efetiva consciência constitucional ou do que HABERMAS chama de ―patriotismo constitucional‖72 alimenta a tese lassalliana de que a Constituição

escrita é uma simples folha de papel, e, portanto, não controla o Poder.73 No reverso, a prática

70 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de

1969. Tomo I. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970. p. 15-16.

71 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1484/DF - Distrito Federal. Ação direta de

inconstitucionalidade. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento: 21.08.2001. Diário de Justiça da União de 28.08.2001, p. 00030.

72 O conceito de patriotismo constitucional foi originalmente cunhado pelo jurista e

cientista político alemão Dolf STERNBERGER, à época do trigésimo aniversário da Lei Fundamental de Bonn (1979). Na década de 80, Jürgen HABERMAS desenvolveu o conceito quando interveio, pouco antes da queda do muro de Berlim, no Debate dos Historiadores, refutando historiadores alemães que justificavam o nazismo, os campos de concentração e o holocausto. A partir de um estudo da experiência americana da ‗religião cívica‘, Habermas defendia a necessidade de um patriotismo constitucional que unisse todos os cidadãos, independentemente de seus antecedentes culturais ou heranças étnicas, baseado na interpretação de princípios constitucionais universais, reconhecidos dentro do contexto de uma determinada história e tradição nacional. Tal lealdade constitucional, que não pode ser imposta juridicamente, deveria estar enraizada nas motivações e convicções dos cidadãos, é só poderia ser esperada se eles entendessem o Estado Constitucional como uma realização de sua própria história. O patriotismo constitucional alemão significava ter orgulho da superação permanente do fascismo e o restabelecimento de uma ordem baseada numa cultura política liberal razoável. Em outras palavras, tratava-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais - uma lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

73 Para LASSALLE, a Constituição real e verdadeira não é a Constituição escrita, mas os

da Constituição é fator de desenvolvimento de uma consciência constitucional em todo o povo, permitindo que todos possam perceber sua existência e suas vantagens e estarem conscientes de agir em conformidade com ela ou contra ela.74

Leciona Pablo LUCAS VERDU que a efetividade do direito constitucional não depende somente de formalizações técnico-jurídicas ou de garantismo normativo institucional, mas da vinculação moral dos cidadãos às instituições e suas normas. Esta vinculação não é puramente racional, intelectiva, mas sentida e depende de uma adesão emocional às normas constitucionais. Trata-se do domínio do sentimento constitucional.75

Nessa senda, Raul MACHADO HORTA acentua que o realismo sociológico de LASSALLE tornou-se precursor do movimento de desestima constitucional, que toma a forma de um sentimento de indiferença pelo destino da Constituição, fadada a ser uma ―folha de papel‖ a serviço dos interesses dos detentores do poder.76

Karl LOEWENSTEIN sustenta que a crise da democracia constitucional da metade do século XX encontra-se radicada em dois fatores interdependentes: a desvalorização da Constituição escrita e a atrofia da consciência constitucional. O primeiro diz respeito ao fato de que a Constituição, mesmo nos países com tradição normativa, não será cumprida tão escrupulosamente pelos detentores do poder como antes. O segundo, à alarmante indiferença do poder frente à Constituição.77

banqueiros, entre outros poderes. LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1998. p. 15.

74 DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. 4. ed. São Paulo: Saraiva,

2010. p. 65.

75 VERDU, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional: aproximación ao estudio del

sentir constitucional como modo de integración política. Madrid: Reus, 1985. p. 143.

76 HORTA, Direito constitucional..., op. cit., p. 102.

77 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel, 1976. p. 222-

223. É claro que a tudo isto se soma o mal-estar que atinge o Estado social de bem-estar decorrente da crise de legitimidade-legitimação das instituições da democracia representativa, reveladas pelos

A Constituição é o que os detentores do poder fazem dela na prática. Ela depende, em larga medida, do meio social e político em que será aplicada. Trata-se da teoria ontológica de Karl LOEWENSTEIN acerca da concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder. As constituições semânticas, que apenas formalizam a situação do poder político existente em benefício exclusivo dos detentores de fato desse poder. As constituições nominais, cujas normas não conseguem se adaptar à dinâmica do processo político, ficando sem realidade existencial. Finalmente, as constituições normativas, que dominam o processo político, cujo processo do poder se adapta às normas constitucionais e se lhes submete.78 As Constituições normativas são compreendidas, sentidas e percebidas como normas, comprovando o máximo de adesão emocional ao seu texto vigente.79

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2011 (páginas 35-41)

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